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sexta-feira, 18 de julho de 2025

ETÇAMYÁ UANIEÁ, Parentes Indígenas






Um Conto Sobre Parentesco 


Na aldeia às margens do rio, o pequeno Dzõ corria entre as árvores, animado com o que iria aprender naquele dia. Ele havia sido escolhido para passar um tempo com o sábio Padzú ayby eri Tokenhé, seu bisavô. Era um velho de fala mansa e olhos que guardavam muitas histórias.


Ao chegar à maloca de palha, o menino foi recebido por Dé ayby eri Nhiké, sua bisavó, que teceu para ele um colar de sementes vermelhas.


— Sente-se aqui, Dzõ, meu sobrinho, — disse o velho com um sorriso. — Hoje vamos conversar sobre nossa família, nossos Etçamyá Uanieá, nossos parentes indígenas.


Tokenhé, o avô, chegou logo em seguida trazendo raízes e frutas da mata, acompanhado de sua esposa, Nhiké, a avó bondosa que sabia os cantos antigos.


Então, a Dé, a mãe de Dzõ, chegou com seu companheiro Padzú, o pai do menino, trazendo farinha fresca. Junto deles, vinham os irmãos de Dé: o brincalhão Paidenhé, o tio, e a doce Dedenhé, a tia que sabia cuidar das ervas.


Ali perto, seus primos Dzedzé, tanto os meninos quanto as meninas — pois o nome era o mesmo para todos — jogavam peteca e riam alto, convidando Popó, o irmão mais velho de Dzõ, e Biké, sua irmã, para brincar.


Enquanto as crianças se afastavam, os adultos continuavam conversando. Dzõ escutava tudo, mesmo de longe.


— Quando Biké casar, seu esposo será o Myté, meu genro — disse Padzú, sorrindo para a filha.

— E a esposa de Popó será a Mytedéá, nossa nora — completou Dé, acariciando os cabelos brancos de sua mãe.


— E quem é o Dzacá? — perguntou o menino curioso, voltando correndo.

— O Dzacá é o sogro, pai da esposa — respondeu Tokenhé.

— E a Dzacadé é a sogra, mãe da esposa — acrescentou Nhiké, com sua voz serena.


Dzõ ficou um pouco confuso com tantos nomes. Então o Irandete, seu padrinho, chegou montado num cavalo bonito, e logo atrás vinha a Idzedeté, sua madrinha, trazendo doces de macaxeira.





— Também somos parte de tua grande família, menino — disse o Irandete.


No final da tarde, chegou o novo companheiro de Dedenhé, o Usaruntsó, noivo da filha de Dé. E a Usarunghí, noiva do filho de Paidenhé, veio junto com os pais dela. Havia festa, havia celebração.


No meio de tanta conversa, o menino perguntou:


— E quando a mulher já tem filhos e casa com outro homem, como chamamos?


Nhiké explicou:


— Esse homem é o Padzunyentá, o padrasto.

— E se for o contrário, ela é a Deyentá, a madrasta, completou Dé.


— E os filhos que não nasceram dos dois juntos? — perguntou Dzõ, curioso.

— São os Nhuraenentá, os enteados — respondeu Padzú, com carinho.


O sol se escondia atrás das montanhas quando o velho Tokenhé concluiu:


— Cada nome é mais do que uma palavra. É afeto, é memória, é laço que não se perde. Os nomes dizem quem somos entre os nossos. Lembra-te sempre disso, meu neto.


E Dzõ, com o colar de sementes no peito e o coração cheio de sabedoria, entendeu que conhecer os nomes da família era, também, conhecer o próprio caminho no mundo.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




TSEHO TÇOHÓ BYTÉ, Muitos Povos, Um Somente






Um Conto da Formação Étnica


No alto da colina, onde o Rio Opará murmura suas memórias, vivia o povo Kariri na aldeia sagrada Natiá Ebadzú. Era ali que Woroy, o Guardião das Memórias, ensinava às crianças os caminhos antigos, os cantos do tempo e os nomes sagrados das coisas.


— Aqui é onde tudo começou, meus pequenos — dizia ele, cercado de olhos atentos —. O som do nosso povo ecoava forte, como o tambor da terra.


Um dia, chegaram homens de roupas compridas e cruzes ao pescoço. Vinham de longe e chamavam-se Wareá, os padres. Trouxeram palavras novas e planos de barro e pedra.


— Venham, Kariri, vamos construir uma nova aldeia! — disseram.

Chamaram-na Natiacró, a aldeia civilizada de alvenaria.


Ymakaré, o ancião Kariri, hesitou.


— Mas e a alma da colina? E o vento do Opará?


— Levaremos conosco! — respondeu Tamin, o mais jovem dos guerreiros. — Somos raiz, não pedra. Onde pisarmos, floresce a memória.


Na nova aldeia, não estavam sozinhos. Chegaram os Karapotó, Aconã e Tupinambá. O povo Kariri os acolheu com respeito e os chamou de Popó, os Irmãos Mais Velhos.


— Vieram antes de muitos. São troncos da mesma árvore — disse Woroy.


Anos se passaram. Outros vieram do Maní — terras distantes, além dos rios. Os Natu, Xocó e Fulni-ô se aproximaram, com seus cantos e sementes.


— São nossos Etçamyá, Parentes de Sangue — disse Ymakaré com um sorriso. — Chamaremos de Iwobohó, Irmãos Menores, pois chegaram depois, mas são parte de nós.


A aldeia-mãe, Natiadé, cresceu com todas essas chegadas. Crianças nasciam com nomes de diferentes línguas, corações misturados como frutas na mesma cuia. Havia casamentos entre os povos, alianças seladas com dança, farinha e canto.


— Estamos nos tornando Byté Bihé, Um Somente — cantava Tamú, a guardiã da língua. — Cada povo, uma nota. Juntos, somos canção.


E assim foi. A terra se tornou Cuná, de todos, para sempre. A língua se fez ponte. A cultura, semente que floresce em muitas cores.


Tseho Tçohó Byté — muitos povos, um só coração batendo forte sob o céu do Opará, Somos Kariri-Xocó originário pluriétnico, muticulral e plurilinguístico.





Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





quinta-feira, 17 de julho de 2025

BOHÉ SUBATEKIÉ, A Transmissão do Conhecimento






Um Conto Sobre Conhecimentos 


Na aldeia de Natiá, onde as árvores da caatinga se curvam ao vento e os rios cantam histórias antigas, o jovem Tiré, de olhos curiosos como os de um beija-flor, caminhava ao lado de seu avô Duboré, um dos últimos Duboherí – mestre da sabedoria ancestral.


Era o dia da grande fogueira. Ao entardecer, todos se reuniam ao redor do fogo sagrado para ouvir histórias, aprender os ofícios e cantar os cantos do povo. Ali começava mais um ciclo de aprendizado. Era o Bohé, o momento de ensinar. Era o Subatekié, a semente da sabedoria sendo entregue de coração a coração.


— Tiré, hoje tu vais aprender como os antigos caçavam com arco e badoque — disse Duboré, oferecendo ao neto um pequeno galho reto da jurema-branca. — Mas antes, escuta o canto do vento. Ele te mostra por onde corre o veado, por onde salta a cutia.


Tiré pegou o galho, cheirou a madeira, e seu avô sorriu. Ali não era só o arco que estava sendo passado. Era o olhar, o silêncio da espera, o respeito pela floresta.


Enquanto isso, a avó Inhaná, mulher sábia das panelas e da cura, ensinava às meninas mais novas a modelar a argila: potes, panelas, pratos, tudo ganhava forma sob as mãos das anciãs. Ela dizia:


— A argila é como a nossa memória. Mole no começo, mas firme quando queimada no fogo da vida.


No roçado, o tio Kauiri mostrava aos rapazes como plantar o milho e a mandioca. Fazia o gesto com as mãos, enquanto dizia:


— O solo escuta o nosso coração. Se plantar com raiva, ele se fecha. Se plantar com amor, ele brota até no tempo seco.


Mais adiante, sob uma árvore grande, a jovem Yaratá ajudava as crianças a confeccionar bonecas de milho, arcos de brinquedo, e pinturas com urucum. O riso das crianças se misturava aos sons dos maracás e buzos, que os adolescentes aprendiam a construir com o velho Tamoré, o fabricante de música.


À beira do rio, pescadores experientes mostravam como usar a kuwú, o jereré, e as tarrafas, enquanto contavam histórias dos peixes encantados e da mulher-água que só aparece em noites de lua cheia.


E à noite, sob o luar, o contador de histórias Paraní se levantava. Sua voz era macia como o vento da madrugada, e dizia:


— Tudo isso que aprenderam hoje, crianças, é só metade do saber. A outra metade está no sonho. Dormir também é aprender.


Assim se formava o conhecimento do povo Kariri-Xocó. Não havia caderno, mas havia memória. Não havia prova, mas havia prática. E a aldeia inteira era escola, onde cada canto ensinava algo: das conchas e ossos dos animais, colhidos pelos catadores de ornamentos, às danças sagradas do Toré, aos cantos que ecoavam no corpo pintado.


Tiré, que começou o dia ouvindo o vento, dormiu nessa noite com o coração cheio. Sonhou que era um grande Duboherí, ensinando à próxima geração.


E assim o ciclo continuava.


No povo de Natiá, ensinar era viver.

E viver era não deixar morrer o que os ancestrais plantaram com tanto amor.




Autor : Nhenety Kariri-Xocó 




BOHÉ WOROBÜ, Ensinar Contar






Um Conto Sobre Aprender a Contar


Era fim de tarde na aldeia. O vento soprava suave entre as palhas das malocas e o cheiro do mingau de milho se misturava ao som dos pássaros voltando para seus ninhos. Sentada à sombra de um juazeiro, a menina Tainá observava a avó Mainá trançar um cesto de folhas de carnaúba. Seus olhos brilhavam de curiosidade.


— Mainá... como é que a gente aprende a contar na nossa língua? — perguntou, com a voz doce de quem carrega sede de aprender.


A anciã sorriu com ternura, seus olhos guardavam memórias antigas.


— Ah, minha netinha, vou te ensinar do jeito que aprendi com minha mãe, e ela com a mãe dela... Isso se chama Bohé Worobü, o ensino de contar. Nosso povo sempre usou o corpo para aprender, porque o corpo é a nossa primeira escola. Olhe aqui minhas mãos — disse, estendendo os dedos finos e firmes — elas são chamadas Mysã. E os nossos pés, que nos carregam pelo mundo, são os By. Com eles, a gente chega até o número vinte.


Tainá sorriu, prestando atenção enquanto a avó começava a mostrar:


— Um dedo é bihé...


A menina repetiu com alegria:


— Bihé!


— Dois é wacháni... três, wachanidikié... quatro, sumarã orobae... — e a avó continuava, apontando para cada dedo.


— Cinco? — perguntou Tainá, contando os dedos da mão.


— Ah, cinco já é especial. Dizemos: mŷ bihé misã saí, que quer dizer "levar uma mão para ele". — Mainá riu, tocando a mão da neta.


— E se eu quiser dizer seis?


— Então acrescentamos mais um dedo à mão. Dizemos mŷreprí bubihé misã saí, levar uma mão com mais um dedo para ele.


— E sete?


— Sete é mŷreprí wacháni misã saí, uma mão mais dois dedos. E assim por diante...


Enquanto ensinava, Mainá pegava pequenas sementes e colocava uma a uma sobre o cesto, ajudando Tainá a visualizar os números.


— Quando a gente chega em dez, dizemos mŷcribae misã saí, levar todas as mãos para ele. E se usamos também os pés, chegamos a vinte: mŷcribae misã idehó ibŷ saí, levar todas as mãos incluindo os seus pés para ele.


Tainá ficou maravilhada.


— Então se eu estiver com minha prima, nós duas juntas, podemos contar até quarenta?


— Exatamente! — respondeu Mainá, orgulhosa. — Nosso povo sempre foi criativo. Se tiver mais pessoas, podemos contar o mundo inteiro com as mãos e os pés.


As duas riram juntas. O sol começava a se esconder no horizonte, tingindo de ouro o céu do sertão. Naquele instante, Tainá não aprendeu só a contar. Aprendeu que números também carregam memória, afeto e ancestralidade.


E assim, sob o juazeiro, uma geração passava seu saber à outra — como o rio que segue, levando consigo a canoa dos antigos.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




quarta-feira, 16 de julho de 2025

TAYU NUNÚ UANIE, Dinheiro Na Língua Indígena






Um Conto Sobre o Dinheiro 


Nas margens do rio Opará, em meio às sombras das mangabeiras e ao som dos pássaros sagrados, vivia o pequeno Jurandí, um menino curioso do povo Kariri-Xocó. Desde cedo, ele se encantava pelas histórias que sua avó Mainá, a mais velha contadora da aldeia, sussurrava ao pé do fogo.


— Vó Mainá, o que é esse papel que o homem da cidade me deu quando vendi meu colar de sementes? — perguntou Jurandí, estendendo uma nota amassada.


A anciã segurou o papel com cuidado, como quem segura um animal arisco, e sorriu com os olhos sábios.


— Esse, meu neto, é o Tayu, como chamamos o dinheiro na nossa língua. É coisa de fora... não existia no tempo de nossos avôs mais antigos.


— E para que serve, vó? — quis saber Jurandí.


— Serve pra tudo, ou quase tudo... hoje, para pegar peixe com anzol de ferro, ou para comprar farinha quando a roça não deu, tem que ter Tayu.


Mainá então puxou um saco velho de pano e retirou de dentro algumas cédulas coloridas, cada uma com um bicho diferente.


— Vê, Jurandí? Essas figuras são bichos que conhecemos bem. Este aqui, por exemplo — disse ela, apontando a tartaruga — é o Sãmbá. Ele mora nas águas como nós moramos na terra. E vale dois Tayus.


Jurandí ficou com os olhos brilhando.


— E esse pássaro branco, vó?


— Esse é a Yeendeçó, a garça dos pântanos, e vale cinco. A arara vermelha é Yeendéar, vale dez Tayus. O mico dourado, Dzicuá, vale vinte. A onça-pintada, que caminha em silêncio pela mata, é Homomocleclé, vale cinquenta. E o peixe do mar é o Mydzé, de cem Tayus. Por fim, o lobo-guará, que só aparece quando o mato está em silêncio, é o Bucuté, e vale duzentos.


— Então, vó, se eu tenho um Tayu Dzicuá, posso trocar por comida?


— Sim, neto, pode. Mas nunca se esqueça: o verdadeiro valor não mora no papel, mora na nossa partilha, na fartura da terra, na sabedoria que carregamos.


Jurandí sorriu, abraçando as palavras da avó. Ele agora sabia que o Tayu era mais do que papel: era também um símbolo da mudança, mas que poderia ser falado em sua própria língua, respeitando os animais e a vida que representavam.


Naquela noite, sentado ao redor do fogo com as outras crianças, Jurandí ensinou:


— Dois reais é Tayu Sãmbá, cinco é Tayu Yeendeçó, e assim vai...


As estrelas sorriram lá do alto.

E a língua Kariri ganhou mais um sopro de vida.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




UANIE AMÍ DZUPODÓ, A Comida Indígena Assada e Cozinhada






Um Conto Sobre a Culinária 


O sol ainda não havia subido por completo no horizonte quando a jovem Yarací se aproximou do terreiro. A fumaça da lenha queimada dançava no ar, trazendo aquele cheiro gostoso de café de barro e mandioca assando. Sua mãe, Mainú, sentada sobre o banquinho de taquara, mexia alguma coisa dentro da velha Runhú, a panela de barro que herdara da avó.


— Mainú, me conta… como era a comida de antes? Como era cozinhar sem geladeira, sem gás, sem colher de alumínio?


A mãe sorriu com doçura e bateu levemente com a colher de pau no lado da panela.


— Ah, minha filha… se tu soubesse quantas palavras cabem dentro de um cheiro… Tu tá sentindo esse? É o Seredu, bolo de mandioca que tua bisa fazia só nos dias de festa.


Yarací se sentou aos pés da mãe, os olhos brilhando.


— E como vocês cozinhavam?


— Com o fogo da terra e a paciência dos antigos. A gente tinha o Crobecá, feito da cabaça. Servia de prato, copo, cuia… Tudo em um só. E o Prebú, também da cuia de coité, era nosso prato vegetal, forte e bonito. A água a gente buscava com o Buiú, aquela cabaça média de pescoço, lembra?


— Aquela que o vô enchia no açude?


— Essa mesma. E os utensílios a gente carregava no Setu e no Tinhé, os cestos de cipó ou taquara, com ou sem alça. Pra peneirar a farinha, usávamos o Kiniki. E quando a gente queria assar carne, peixe, até passarinho, a gente afiava o Babisité, espeto de pau, e punha direto no fogo. Ou então defumava tudo no Badzuru, o moquém — e virava delícia pro dia seguinte.


— Que nomes lindos… — murmurou Yarací.


— Cada nome é uma história, minha filha. O Creyá, por exemplo, era uma técnica linda de assar tubérculo enterrado sob a terra quente. A gente assava o Madzó, o milho verde, direto na brasa. E se fosse pra ferver o Cronhahá, a espiga cozida, ia pra dentro da Runhú, com um pouco de sal e muito amor.


— E os pratos? Tinham de barro também?


— Tinham sim. O Aribá era o prato de barro grande, e o Bepi era menorzinho. Feitos pelas mãos das mulheres. A gente usava o Winá pra abanar o fogo, feito de palha de aricuri. E tinha o Ruño, o pote de barro, também moldado pelas mulheres da nossa aldeia. Cada peça tinha alma.


— E a comida?


— A comida era a terra falando com a gente. A Muicú, a mandioca, virava farinha, beiju, bolo, tapioca. A Sekiki, a carimã, era nossa base. Tinha o Guinhé, o feijão companheiro. O Udjé, os legumes da roça. E a gente plantava tudo na Uanhí, nossa lavoura. Das árvores vinham os Idzá, as frutas doces.


— Vocês faziam vinho?


— Claro. O Nhupy era nosso vinho de milho, feito com fermentação natural. Tinha também o Bydzu, um liquor doce com frutas e ervas. E se sobrasse carne, a gente salgava: virava Riné. Secava no sol, guardava no Merebá, o jirau. Às vezes, virava banquete, às vezes, só memória.


— E ralador, vocês tinham?


— Tínhamos sim, filha. O Erú, feito de madeira com dentes finos, pra ralar coco, raízes, o que fosse.


A panela borbulhou. Mainú apagou o fogo com um leve abano do Winá. Tirou o Seredu da Runhú com as mãos hábeis e serviu um pedaço no Aribá. Entregou à filha com um olhar sereno.


— Hoje você prova com a boca. Um dia vai contar com a alma.


Yarací mordeu devagar. Os olhos se fecharam. Era como se, a cada mordida, ouvisse as vozes dos antepassados, os cantos do mato, os risos ao redor da fogueira.


Ali, no quintal de barro batido, ela descobria que amí e dzupodó não eram só maneiras de preparar alimento. Eram formas de manter viva a memória do povo.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




UANIE EBADZÚ, O Indígena Originário






Um Conto Sobre Kariri Originários


Sob a luz amarela do entardecer, o fogo da aldeia crepitava no centro do pátio, enquanto os pássaros encerravam seu canto. Ali, sentados sobre esteiras de caroá, estavam um jovem curioso e o ancião da memória longa. O jovem, de nome Ysupã, tinha olhos brilhantes e o coração inquieto. Aproximou-se com respeito de Txopé, o mais velho dos contadores de história do povo.


— Txopé, posso lhe perguntar algo? — disse o jovem, enquanto se sentava.


— Sempre, meu neto — respondeu o ancião, com a voz grave como o tambor da terra.


— Como era o indígena Kariri original? Como vivia? Como se vestia? Como lutava e cantava?


Txopé fechou os olhos por um instante e pareceu voltar ao tempo de seus antepassados. Então, com voz firme, começou a falar, como quem evoca os espíritos antigos:


— Uanie Ebadzú, meu neto... O indígena originário. Ele se distinguia pelos seus gestos, sua fala, sua arte e seus adornos. Cada peça em seu corpo contava uma história. Vou te contar...


Puxou de sua memória a primeira imagem.


— No lábio inferior, usava o Tembetá, um adorno inflexível, de madeira ou espinho, que mostrava sua força e maturidade. Não era apenas enfeite — era identidade.


— Amarrado ao corpo, carregava o Dubé, o nosso aió, feito de fibras de caroá ou palha de aricuri. Ali guardava utensílios pessoais, como se levasse parte do lar consigo.


— Os homens fumavam no Paiáwi, o cachimbo feito de pau ou barro, moldado por mãos hábeis como a de um artesão da memória.


— E quando ia à mata, levava o Iarú, a flecha, enfeitada com penas, afiada como a visão do caçador. Para lançá-la, usava o Seridzé, nosso arco, curvado como a lua crescente.


— Para guardar as flechas, havia a Yaru, uma bolsa resistente feita também de caroá. Nas costas, ela dançava com o vento enquanto o guerreiro corria.


— E se o combate era corpo a corpo, usava o Tçoncupy, uma clava pesada, com o poder de abrir caminho ou defender o território.


— Para anunciar os companheiros nas quebradas, tocava o Tçuiru, feito do casco de tatu, soando como o chamado dos antigos.


— Nas festas, agitava o Buibú, nosso maracá, feito de coité. Era mais que música — era a voz da terra nas mãos do pajé.


Ysupã escutava atento, olhos fixos como se visse cada objeto surgir diante de si.


— E como se vestiam, Txopé?


— Pintavam-se, meu neto, com Bukencré, a tinta vermelha do urucum, e com Nhiró, a tinta do jenipapo, que marcava o corpo com grafismos que só os antigos sabiam interpretar. Às vezes, usavam Hebidizancró, carvão ou argila branca no rosto. Pintura é proteção e é fala.


— Homens e mulheres usavam a Sasá, saia feita de aricuri ou pindoba, balançando como folhas ao vento.


— No pescoço, pendia o Bebaté, o colar de sementes, dentes e pedrinhas. E nas orelhas, os Ubadi, brincos e botoques, enfeites de quem respeita o próprio corpo.


— Nas danças do Toré, soava o Tsereró, a gaita feita de embaúba, chamando os espíritos a dançar junto.


— Na cabeça, o guerreiro levava o Keisontsebu, o cocal de penas de aves, sinal de bravura. E nos braços, o Craraisõbó, a braçadeira de penas, leve como vento, firme como coragem.


Txopé então olhou para Ysupã com ternura:


— Ser Kariri é mais que usar cocar, mais que pintar o corpo. É viver em harmonia com os ensinamentos da terra e dos que vieram antes. Tudo o que vestimos, usamos e tocamos tem espírito. E é por isso que digo: o verdadeiro Uanie Ebadzú não se perdeu, ele vive em nós, quando lembramos e contamos como agora.


Ysupã abaixou a cabeça em respeito. O fogo lançava sombras longas no chão, como se os espíritos dos ancestrais dançassem em roda.


— Gratidão, Txopé — disse o jovem, emocionado.


— Leve tudo isso, meu neto. E quando te perguntarem sobre o indígena original, conte como eu contei. E um dia, será tua a vez de ser o ancião que guarda a memória.


E assim, a noite caiu sobre a aldeia, protegida pela sabedoria dos antigos.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




UANIE DAWÍ DEHÓ CANGHITÉ CARAÍ, Indígena Usa Coisas de Branco





Um Conto de Usar Coisas dos Brancos


Era uma manhã fresca no aldeamento quando o jovem Awasúa, de olhar curioso e pés ligeiros, despertou com os primeiros cantos dos passarinhos. Os mais velhos diziam que, antes do tempo dos brancos, tudo era diferente. Mas Awasúa era Uanie — um indígena — nascido entre tempos, entre o eco dos ancestrais e os ruídos da cidade.


Awasúa andava com o Dawí dehó, ou como diziam os antigos: “com as coisas dos caraí”. Ele aprendera, com sabedoria, a usar as boas coisas Canghité dos brancos, sem esquecer o que brotava de sua terra e de seu povo.


Naquele dia, enquanto se preparava para mais uma ida à cidade vizinha, Awasúa se olhou no Warupoá, o espelho dos olhos seu óculos. Era um presente do tio Birenó, que morava longe, mas sempre trazia novidades. Ajustou os óculos sobre o rosto e sorriu:


— Agora vejo melhor o mundo dos brancos, mas também enxergo mais fundo as raízes do meu povo.


Prendeu no pulso o seu Uché Iworó, a roda do tempo "relógio". Aprendera a ler os ponteiros com a professora Dona Terezinha, uma mulher de fora que respeitava os saberes da aldeia.


Ao sair, calçou seus Sebéby, os cobertores dos pés "sapato". Já havia cortado muito chão descalço, mas a estrada de pedra quente agora pedia proteção.


Vestiu sua Crutewõá e Crutéubi — o pano das pernas e da barriga "calça e camisa". Mesmo sendo roupas do branco, ele sabia como usá-las sem esquecer o urucum no rosto, a pintura que dizia: “sou da terra, sou dos meus”. E no pescoço, levava o Bemeradzó, colar de ferro reluzente que brilhava como os colares antigos, agora feito com outro material.


No bolso, o Tokliddaysã, o falar com o mundo na mão, apitava com mensagens. Era o celular. Ele o usava para falar com parentes de outras aldeias, ouvir cantos antigos, assistir vídeos de danças sagradas.


Montado na bicicleta, sua Ibaworóbi, seguia veloz como tatu do campo. Às vezes pegava carona na Ibáranú Uitane Iworó, a moto roncadora do primo Karapotó, e quando tinha sorte, iam até de Ibápohduá, o carro do cacique Itapó.


— Você anda com as coisas dos caraí, Awasúa? — perguntavam os mais velhos com olhos desconfiados.


Ele sorria com serenidade e respondia como ouvira dos encantados:


— Sim, ando com Dawí dehó Canghité Caraí, mas minha alma dança com os pés no chão da minha terra.


E assim seguia Awasúa, o Uanie entre mundos, ponte viva entre tempos. Como o tronco de um grande jatobá: firme na raiz, mas com os galhos estendidos para o céu.



Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




terça-feira, 15 de julho de 2025

ERÁ UANIE CANGHITÉ CARAÍ, Casa Indígena Com Coisas Boas de Brancos








Um Conto Sobre Coisas dos Brancos



Num tempo que não é nem velho nem novo, no meio de um povo onde os ventos ainda cantam os nomes dos ancestrais, havia uma aldeia onde o antigo e o moderno caminhavam lado a lado. Lá vivia Tupichá, um menino curioso, de olhos atentos e pés descalços, que adorava ouvir as histórias contadas por seu avô Aniru.


Tupichá morava com sua família numa casa diferente das casas redondas dos tempos antigos. Era uma "eracró", feita de tijolos e cimento, mas com alma de "erá". Na sala, havia uma coisa que ele chamava de Warudókli, “o espelho que fala”. Era uma TV que mostrava imagens de mundos que ele nunca viu, mas que o faziam sonhar.


— Vovô, por que a gente tem tanta coisa dos caraí aqui em casa? — perguntou Tupichá certa tarde, enquanto mexia nos botões do Pepéwahimy, o videogame.


O velho Aniru, sentado em sua rede, sorriu com paciência:


— Porque o nosso povo aprendeu a caminhar com dois mundos, neto. As coisas dos brancos entraram em nossas casas, mas não podem apagar o que somos por dentro.


Tupichá olhou ao redor. Lá estavam o Pohiesawa, a câmara de vídeo da sua irmã Jariúna, que gostava de gravar as festas da aldeia; o Craiwopiwon, que girava e mostrava filmes; e o velho Craiwonhé, o toca-discos do seu tio Kaubi, que ainda fazia dançar ao som de músicas antigas.


Na cozinha, a mãe de Tupichá usava o Crameupudu, o fogão que soprava fogo, para preparar a comida. E a Cramenunhí, a geladeira, guardava as frutas e o peixe do rio.


Ao redor da casa, os caminhos de terra vermelha estavam marcados por trilhas de Ibáranú Uitane Iworó, as motos que chegavam roncando, por bicicletas Ibaworóbi e até por um Ibákabaru, a carroça puxada por burro do velho Ti'Paié.


Mas nem tudo era novo. Na parede, o Uché Iworó, o relógio, marcava as horas, mas era o canto do Inambu que dizia quando era tempo de caçar. Em cima da mesa, havia o Tonranran Toklikli, os livros com folhas que falavam, e também os Torãkemwa, as revistas com imagens coloridas, e os Torãpisetí, os cordéis pendurados em um fio de arame que o vento adorava ler.


No quarto, Tupichá guardava com carinho suas Tsepinehekié, as bonecas que seu avô esculpiu, com rostos de madeira e olhos de sabedoria.


Na sala de memória da casa, repousavam o Keisontsebu, o cocal de penas usado nos rituais; os Ubadi, os enfeites da alma; o Buibú, o maracá que o avô usava para chamar o Toré; e o Seridzé e Yarú, o arco e flecha que ainda eram ensinados, não para guerra, mas para lembrar a força dos antigos.


Tupichá aprendeu que a Erá Uanie Canghité Caraí era mais do que uma casa com coisas dos brancos. Era um lugar onde as lembranças e os futuros caminhavam juntos. Onde as caixas que cantam, giram e esfriam conviviam com a sabedoria das folhas que falam, dos bonecos que brincam e das flechas que apontam o caminho do coração.


E assim, na casa de Tupichá, o tempo dançava com as rodas, as palavras se misturavam em muitos sons, e a cultura vivia — transformada, mas jamais esquecida.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 






ERÁ UANIE CANGHITÉ KENHÉ, Casa Indígena, Coisas Boas dos Costumes






Um Conto Sobre os Costumes 



Na beira do rio, quando o sol já beijava o horizonte com suas cores de fogo e silêncio, o velho Pescador Aranhen sentou-se no jirau feito de paus retos. Ao seu lado, o pequeno Iamé, neto curioso de olhos brilhantes, esperava o momento em que as palavras do avô viravam caminho.


— Vovô, me conta... como era antes da gente viver na casa de tijolo, nos costumes dos Kariri?


O velho sorriu com o canto da boca e passou a mão no colar bebaté, que ainda usava com orgulho.


— Iamé... antes de tudo isso, vivíamos nas erá, as casas nossas de palha, de barro e alma. Ali, tudo era canghité kenhé, coisa boa do costume. As casas não eram só abrigo — eram parte do nosso corpo.


E o velho começou a contar. As palavras voavam como flechas certeiras:


— Tinha a pité, rede onde o sonho vinha leve como folha de ingazeira. Tinha o bodzó, machado que ajudava a abrir caminhos e cortar madeira boa. No canto da casa, morava o bará, um balaio grande onde a mandioca dormia depois de ralada. E perto dele, a tinhé, a cesta onde tua avó trazia os peixes do rio.


— E o que é dubé, vovô?


— Ah, o aió, dubé, era nosso companheiro nas andanças. Era como se fosse uma mão que carregava o mundo nas costas. O winá, o abano, refrescava o calor de meio-dia e a prebú, nossa cuia, fazia a água cantar na boca.


Iamé arregalava os olhos.


— Tinha mais?


— Oh... muito mais, meu neto. Na parede da erá, o buruhu, fuso da tua bisa, girava fios de algodão. O woncuró, tear do tempo, costurava os panos que cobriam nossas danças. O muhé, rede de pescar, conhecia os segredos dos peixes. E a kiniki, peneira, separava o que era bom do que era casca.


Iamé já podia ver tudo com os olhos do coração.


— E as coisas que a gente já não vê?


— Sim, Iamé... existiam o runhú e o aribá, panela e prato de barro que cozinhavam o alimento sagrado. O paiáwi, cachimbo, era o sopro dos espíritos. As mulheres se enfeitavam com tereré nos cabelos, e os homens caçavam com o seridzé, arco firme, e a yaru, flecha certeira.


O menino suspirava como se ouvisse música. O Pescador continuou:


— A água morava na buiú, vasilha de barro. A carne defumava no merebá, jirau de moquem. E quando queríamos fogo, bastava o nupyté roçar pau no pau que o calor nascia. As mulheres usavam sasá, saias de ouricuri, e sentavam no seby, nossa cadeira feita de sabedoria. E ainda havia buhehó, alguidar; pycá, banco; ruño, pote; eru, ralador; e os brincos de ubadi que tilintavam nas danças da lua.


Iamé fechou os olhos. Parecia ouvir o som do winá, sentir o cheiro do runhú, e quase pôde tocar a kiniki trançada com arte.


— Mas, vovô... por que a gente não tem mais tudo isso?


O velho olhou o céu escurecendo.


— Vieram os brancos, trouxeram outras coisas. Algumas dessas nossas foram proibidas, outras esquecidas, trocadas por plástico, ferro e cimento. Mas não se perdeu tudo. Está aqui — disse ele tocando o peito — e aqui também — disse, tocando a cabeça do menino.

— Porque enquanto um só de nós lembrar, essas coisas continuam vivas.


Iamé se levantou, correu até a rede pité e se deitou sorrindo.

Naquela noite, a casa sonhou junto com ele — e todos os canghité kenhé dançaram em volta do fogo, vivos como nunca.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 











ATSEMIUCAN, Pessoa Leva Coisa Boa Para Vender






Um Conto Sobre Vendedores Ambulantes 


No tempo em que a Rua dos Índios ainda pulsava com o som dos maracás, das panelas batendo e das conversas nas portas, uma caminhante se aproximava da aldeia. Seu nome era Aparecida, mas todos conheciam como Dona Aparecida. Era assim que os mais velhos, como o Cacique Otávio Nidé, a chamavam.

— Lá vem Dona Aparecida! — dizia ele, sorrindo ao ver a mulher surgir do fim da estrada de terra, trazendo uma caminhonete com o coração cheio de histórias. Os indígenas deram o nome às pessoas ambulantes como Atsemiucan — “Pessoa que Leva Coisa Boa Para Vender”.


A palavra não existia antes no idioma, mas os anciões Kariri-Xocó a criaram juntando os saberes da língua:

Atse (Pessoa), Miui (Leva), Canghité (Coisa boa), e Taiu (Dinheiro).

Dona Aparecida carregava não só objetos — carregava o novo tempo.


Com ela vinham panelas de alumínio que brilhavam como lua cheia, talheres que pareciam de prata, cobertores, roupas, chácara, pratos belezas, perfumes fortes que lembravam flor que não nasce por aqui. E tudo era mostrado com alegria:


— Olha aqui, Dona Lurde! Panela que cozinha feijão mais rápido que fogo de lenha!


Ela ria, desconfiada.

— E paga como, mulher?


— Parcelado, minha senhora. Parcelado até a última lua do ano.


Os prestanistas, como eram chamados, não vinham apenas vender — vinham conviver. Eram recebidos com café de beiju e farinha fresca. Com o tempo, ficaram íntimos. Os nomes viraram lembrança na memória de toda uma geração: Dona Glorinha, que trazia vestidos floridos; o Senhor Pessoa, que vendia quadros de fotos e santos; Zeca do Fumo, sempre com um cigarro de palha na boca e uma piada na ponta da língua; e Francisco, que oferecia cadeiras, redes, chapéus até conselhos junto com seus produtos.


Em 1978, os Kariri-Xocó deixaram a Rua dos Índios, mas o espírito de Atsemiucan não foi embora. Hoje, as novas gerações continuam essa tradição. Agora, é o próprio povo indígena que parte para vender: levando cerâmicas, colares, cestos, bonecas de barro — e principalmente a força da sua cultura.


Atsemiucan não é mais só um nome.

É um espírito de troca, de confiança, de aprendizado entre mundos.


Por isso, todo menino que vê um caminhante chegar com um balaio de coisas boas pergunta:


— Vovô, ele é um Atsemiucan?


E o velho Kariri-Xocó, com sabedoria, responde:


— Sim, meu neto. Ele é mais que isso. Ele é parte da nossa história.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





UCHÉ IWORÓ, A Roda do Tempo







Um Conto Sobre o Relógio 



O menino Ayanã se sentou perto da sombra do grande juazeiro, onde o ancião Kamurê costumava contar histórias aos mais jovens. Era um fim de tarde morno, quando o céu parecia acender suas cores de despedida, e as cigarras ensaiavam seus cantos derradeiros.


— Vovô Kamurê, — disse Ayanã com olhos brilhantes — como era que os antigos sabiam as horas, antes de existir o relógio?


Kamurê olhou o menino com um sorriso calmo, aquele que só os que sabem escutar o tempo sabem oferecer. Alisou sua bengala feita de angico e respondeu:


— Ah, netinho... antes do relógio dos brancos, o nosso povo já conhecia o Uché, o Tempo. A gente ouvia o que a Natureza — que chamamos de Antse — nos contava.


— E como ela falava com a gente? — perguntou Ayanã, curioso.


— O Tempo se dividia nos passos da própria vida. O Kaie, o Dia, começava na Kayadé, a Meia-Noite, quando o silêncio era tão grande que dava pra ouvir o coração do mundo batendo. Depois vinha a Ycaye, a Madrugada, de onde brotavam os primeiros cantos dos passarinhos, até que o céu clareava e nascia a Caye, a Manhã. Era tempo de preparar o mingau, lavar o rosto no rio e escutar o sol.


— E depois?


— Depois, chegava o Karaí, o Meio-Dia, quando o sol ficava lá no alto feito um olho de fogo. Aí vinha a Kaiapli, a Tarde, quando as sombras começavam a crescer. Por fim, a Kayá, a Noite, trazia o descanso e os sonhos. Assim a gente media o tempo, com o que víamos, ouvíamos e sentíamos.


Ayanã pensava maravilhado. Então Kamurê continuou, com a voz mais baixa, como quem contava segredo:


— Mas um dia, os portugueses chegaram com um objeto estranho... um aparelho que fazia “tic-tac”. Diziam que era para medir o tempo. Chamavam de relógio. Nosso povo passou a chamá-lo de Uché Iworó, que quer dizer "Roda do Tempo", porque ele tinha ponteiros que rodavam feito a dança das estrelas.


— E quem foi o primeiro a ter um? — perguntou o menino.


— Ah, essa história minha mãe contava... Lá na Rua dos Índios, a primeira mulher da aldeia a pendurar um relógio de parede foi Maria Matildes, isso no ano de 1932. Dizem que ela era muito respeitada, rica para o nosso modo de viver, e o relógio dela brilhava na parede como se fosse um olho de jaguar.


Kamurê fez uma pausa, depois riu:


— E em 1969, quando eu era menino como você, lá na Escola Kariri, já tinha um relógio de parede. Era o José Tononé, indígena da FUNAI, que todo dia dava corda nele com uma chave. Era bonito de ver... o tempo girando ali dentro, feito encantamento.


— E os relógios de pulso? — perguntou Ayanã, apontando para o próprio braço vazio.


— Ah, esses vieram depois. Nos anos 70, quando nossos parentes começaram a trabalhar em obras da cidade, compravam relógios Orient e Seiko, de pulso ou de bolso. Chamamos de Uchéwo Mysã, relógio de pulso. Eram caros, mas eram tesouros de quem suava com dignidade. Cada relógio era um pedaço da luta estampado no pulso.


Kamurê apontou então para o celular de Ayanã, que ele carregava no bolso da camisa.


— Hoje, o tempo vive ali dentro. No celular, na TV, no relógio digital. Mas nunca se esqueça, meu netinho: o verdadeiro Uché ainda vive no voo do beija-flor, no calor do sol, no orvalho da madrugada. O relógio só marca o tempo. Quem sente ele passando é a gente.


Ayanã ficou quieto, olhando as nuvens rosadas no céu.


Kamurê fechou os olhos e sussurrou:


— O tempo é como o vento. Você não vê, mas sente. E quando escuta com o coração, ele ensina mais do que qualquer relógio.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




segunda-feira, 14 de julho de 2025

TORAMYSÃ, Livro de Mão que Habita a Rede







Um Conto de Memória Digital Indígena


Era o tempo em que os livros começavam a perder o cheiro da tinta e ganhavam o brilho das telas. E mesmo assim, os povos da floresta, da beira do rio e da aldeia não deixavam de escrever — apenas aprendiam a escrever de outras maneiras.


Em Kariri-Xocó, as primeiras sementes desse novo tempo foram lançadas no ano de 2004, quando surgiu a Rede Índios Online, criada com o apoio da ONG Thydewá. Ali, os saberes dos povos originários passaram a viajar por caminhos invisíveis, atravessando cidades, cabos e satélites, chegando a lugares onde os pés ainda não podiam pisar.


Mas publicar livros ainda era difícil. Papel custava, impressão era demorada. Então o presidente da ONG, Sebastian, criou um novo espaço de guardar e compartilhar saberes: o site thydewa.org, no dia 13 de julho de 2011 — um terreiro digital onde a palavra indígena poderia crescer livre.


Foi nesse mesmo espírito que Nhenety Kariri-Xocó, também membro da Thydewá, lançou o E-book “Dois Irmãos no Mundo”, em 16 de abril de 2015, nas terras de Olivença, Ilhéus, sul da Bahia. Mas como dizer “E-book” na língua Kariri-Xocó, se esse termo vinha de longe e não tinha raiz nas palavras ancestrais?


Então Nhenety criou um novo nome. Um nome que brotasse da terra e da língua do seu povo:

Chamou-o de Toramysã.

De Torarã, que é livro.

E de Mysã, que é mão.


Toramysã: o livro de mão.

Ou ainda: o livro digital, que mora nas mãos e nas telas.


Outros livros viriam também, como o Arco Digital, lançado em 2007 em Maceió, e que mais tarde também se tornou E-book. Todos eles, guardados como sementes de palavras vivas no campo fértil do site da Thydewá.


Mas esse não é apenas um conto sobre livros. É um conto sobre transformação.

Sobre como a língua dos povos indígenas precisa ser atualizada, recriada, fortalecida — para continuar contando o mundo que muda ao redor, sem deixar de ser ela mesma.


Porque Toramysã é mais que um nome novo.

É um gesto de resistência,

Um abraço entre o antigo e o moderno,

Um elo entre a memória e o toque digital.


O livro agora mora na palma da mão,

Mas sua alma continua na aldeia.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 






KAIE TSEHOÁ UANIEÁ, Dia dos Povos Indígenas






Conto Sobre O Dia do Índio



Era no tempo do calendário dos brancos, por volta do ano de 1970, quando os ventos sopravam mudanças e os espíritos dos antigos ainda cantavam no fundo da mata e das lagoas.


Na aldeia Kariri-Xocó, ali na Rua dos Índios, o sol já clareava o terreiro quando chegou a notícia: o chefe Ademir, do Posto Indígena da FUNAI, queria falar com o cacique Otávio e com o pajé Francisco Suíra. Os dois homens respeitados, com seus passos firmes e olhar sábio, foram até o chefe.


— Chamei os senhores para dizer que gostaria de fazer uma festa para vocês — disse Ademir, com a fala cheia de vontade.


O cacique Otávio franziu a testa, coçou o queixo e perguntou com firmeza:


— Festa de quê?


Ademir respondeu com entusiasmo:


— Para comemorar o Dia do Índio, agora todo 19 de abril.


O pajé Francisco Suíra, com a calma dos que escutam o vento e a terra, levantou a mão, pediu licença e falou:


— Olhe, seu Ademir, aqui nunca fizemos festa de Dia do Índio não. A escola fala disso pros meninos, mas nós nunca comemoramos.


Ademir insistiu:


— Pois é por isso mesmo. Agora vamos fazer uma festa bonita, com a aldeia toda, e divulgar na cidade. O povo precisa saber que os indígenas têm seu dia, e precisam ser respeitados.


A conversa espalhou-se como fumaça de toré. A aldeia se levantou com alegria. As mulheres prepararam os trajes, os homens cuidaram das pinturas, as crianças observavam encantadas. Cocar de penas, tangas de palha feitas do junco das lagoas, pinturas nos corpos, arcos e flechas enfeitados. Toda a Rua dos Índios foi ornada como se os encantados viessem visitar.


No dia marcado, o padre Hidelbrando rezou uma missa ali mesmo, na porta da escola. Depois, ao som dos maracás e do toré, o povo seguiu pelas ruas da cidade de Porto Real do Colégio. Visitaram os amigos, passaram pelas autoridades e foram recebidos com alegria por muitos moradores. Era como se, por um dia, a cidade parasse para escutar o coração indígena bater.


Na língua ancestral, aquele dia ficou marcado como Kaie Tseho, o "Dia do Índio". Mas os tempos mudaram, e com a Lei 14.402 de 2022, nós Kariri-Xocó passamos a dizer Kaie Tsehoá Uanieá, "Dia dos Povos Indígenas", honrando a diversidade de cada nação originária desse chão.


Mas ali, naquele primeiro dia de festa, ficou no coração do povo como o Toré do Mestre Junça — porque as tangas eram feitas do junco aquático das lagoas. Foi um dia que brilhou como fogo sagrado na memória dos Kariri-Xocó.


E assim foi escrita, não só com palavras, mas com passos, cantos, gestos e flechas, a história do nosso Dia dos Povos Indígenas.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





WAHINÉ, A Imagem Na Luz






Um Conto Sobre o Slide 



Na Rua dos Índios, quando os Kariri-Xocó ainda moravam por lá, algo diferente aconteceu num certo ano de 1974. Chegaram àquela terra quente e viva duas pessoas de longe, de um país chamado Estados Unidos. Eram o senhor Floyd e dona Hida — dois amigos sinceros do nosso povo, que logo se tornaram conhecidos e queridos na aldeia de Porto Real do Colégio, em Alagoas.


Sempre que podiam, vinham nos visitar. Andavam devagar pelas casas de barro e mato, conversavam com nossas ceramistas sábias — Indaiá, Júlia Muirá, Maria Soya, Luiza Binga e tantas outras que moldavam não só o barro, mas também a história com suas mãos.


Mas o que mais nos encantava era aquele objeto que o senhor Floyd carregava: uma caixa mágica que ele chamava de Slide. Nós, Kariri-Xocó, demos-lhe outro nome, mais bonito em nossa língua: Wahiné, “Imagem na luz”. Era feito de luz e memória, nascido do nosso idioma antigo: Waruá — imagem, e Hiné a luz.


À noite, ele ligava o Wahiné na parede branca da escola. A luz acendia, e de dentro dela surgiam imagens: nossas imagens! Crianças pescando, mulheres moldando o barro, homens no rio com as canoas, rostos sorrindo. Nunca tínhamos visto algo assim. Não era como o Warudókli, o espelho que fala — a televisão — que mostrava gente de fora. Nem como o Hinetoklité, a luz que fala no pano — o cinema — que passava histórias de outros lugares.


O Wahiné era diferente. Era nosso.


Ver-se na luz era como se a aldeia ganhasse uma alma nova. Embora as imagens não se mexessem nem falassem, ali estavam nossos passos, nossos risos, nossas vidas guardadas como lembrança de uma noite viva.


Depois, a vida mudou. Fomos para a Fazenda Modelo. O senhor Floyd e dona Hida voltaram para sua terra. Por muitos anos, não os vimos mais.


Mas a amizade não terminou. Muitos anos depois, já idosos, voltaram à aldeia. A senhora Hida reencontrou minha mãe, Indaiá, e se abraçaram com emoção. Eu, Nhenety, quis retribuir aquela amizade antiga com algo precioso: entreguei ao senhor Floyd um vocabulário das línguas Kariri Dzubukuá e Kipeá. Ele recebeu com carinho — como quem acolhe uma herança viva.


Depois disso, voltaram para os Estados Unidos. Mas o Wahiné ficou conosco, como lembrança daquele tempo mágico em que a luz trouxe nossas próprias imagens para dentro da aldeia — e nos ensinou que também podíamos existir na memória do mundo.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





sábado, 12 de julho de 2025

WARUNARU, A Figura Que Se Desloca






Um Conto Sobre Desenhos Animados


Naquele tempo antigo, quando o homem branco inventou um estranho aparelho que lançava luz num pano e fazia ele falar, os mais velhos deram-lhe um nome em nossa língua Kariri: Hinetoklité, a “luz que fala no pano”. Era o que os brancos chamavam de cinema. Ali, naquela luz encantada, surgia uma coisa diferente — uma figura que se movia sozinha, sem alma visível, mas cheia de espírito: Waruá, a “figura”.


Foi ali, nesse pano de luz, que nasceu o mistério de Warunaru — “a figura que se desloca de lugar”. Era como mágica: desenhos que ganhavam vida, imagens que falavam e corriam, lutavam, sorriam e voavam. Para os brancos, era o tal desenho animado. Para nós, era Warunaru — feito de Waruá (imagem) e Narubae (deslocar-se).


Mas naquela época, lá na aldeia Kariri-Xocó, não havia cinema. O que sabíamos era apenas por ouvir contar. O Hinetoklité só chegava bem longe, nas cidades dos brancos, onde passavam filmes de Jesus, mocinhos de chapéu e romance das gentes.


O primeiro verdadeiro Warunaru que chegou até nós não veio do pano de luz, mas sim do Warudókli, “o espelho que fala” — a televisão. Foi no ano de 1972 que esse espelho entrou pela primeira vez em nossa aldeia, carregando dentro dele aqueles pequenos seres dançantes, coloridos e vivos: os desenhos animados.


Naquela época, só um tinha esse espelho encantado: o indígena José Tononé. Sua sala se enchia de crianças todas as tardes. Sentadas no chão de barro batido, olhos brilhando, elas riam e sonhavam junto dos personagens que falavam línguas estranhas, mas que, de algum modo, pareciam entender o coração da criança.


O Warunaru daquele tempo era diferente. Era simples, com poucos traços, mas cheio de encanto. Hoje, dizem que estão mais bonitos, mais parecidos com gente, com aparência de três dimensões, como se estivessem ali na sala mesmo. Agora não estão mais só na televisão. Com os celulares e a internet, os Warunaru vivem andando com as crianças o tempo todo, dia e noite, na palma das mãos.


Os mais velhos, como eu, carregam no peito um carinho especial por aqueles desenhos antigos. Não era só diversão: era magia, era memória. Fez parte da nossa história. Era como se aquelas figuras deslocando-se pelo mundo dos brancos também deslocassem algo dentro de nós, acendendo sonhos no coração da aldeia.


E assim seguimos, entre os antigos e os novos Warunaru, entre o encantamento de antes e a tecnologia de agora — figuras que se deslocam no tempo, mas que permanecem vivas dentro de nós.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




 

WOROWAKISÍ, Histórias nas Imagens Repartidas






Um Conto Sobre Histórias em Quadrinhos 


Naquela época, o fogo ainda era o centro das noites. Em volta das chamas, acesas nos locais sagrados da aldeia, os anciãos contavam histórias como quem semeia palavras no tempo. Cada frase, um galho seco que estalava no coração dos ouvintes. Era ali, sob o céu bordado de estrelas, que o passado caminhava até nós.


As histórias vinham em forma de sons, mas também moravam nas imagens — nos desenhos feitos com jenipapo no corpo, nos traços do barro moldado, nas tramas do artesanato. Cada linha era um caminho; cada cor, uma lembrança; cada forma, uma conexão com os nossos antepassados.


Um dia, chegou o homem branco trazendo um objeto novo: o Torarã, o "livro". Trazia histórias também, figuras impressas dos povos do outro lado do mar. Aos poucos, foram mudando os formatos, pintando com mais cores, desenhando com beleza. E as crianças ficaram curiosas.


Foi em 1974 que uma novidade desembarcou na Aldeia Kariri, ali na Rua dos Índios. O chefe do Posto Indígena, o senhor Paulo Astragéssimo, trouxe em mãos pequenos livretos coloridos. Os olhos das crianças brilharam ao ver os heróis estampados nas capas. Seriam guerreiros? Seriam deuses?


— Isso aqui é "gibi", — disse ele sorrindo —, histórias em quadrinhos!


Haviam homens com poderes, habilidades fora do comum, deuses, semideuses, alienígenas e monstros. Ficamos fascinados. Agradecidos, recebemos os gibis como presentes raros. Com alegria, corremos até o velho Iraminõ, guardião da palavra ancestral.


O ancião olhou os livretos com sabedoria antiga. Passou os dedos pelas figuras como quem toca em pedras sagradas.


— Isto é Worowakisí, — disse em nossa língua. — Histórias nas Imagens Repartidas.


Explicou que vinha de Woroy (história), Waruá (imagem) e Ukisí (repartir). Assim, o nome foi dado. Assim ficou entre nós.


Desde então, não parei mais. Colecionei gibi após gibi. Descobrimos que do outro lado do Opará, na cidade de Propriá, em Sergipe, vendiam mais. E o gosto por aquelas imagens divididas em quadros foi crescendo.


Hoje, os gibis estão na internet. Podemos lê-los online, de todas as épocas. Mas naquele tempo era diferente — era raro, era tesouro. E até hoje, ainda que o papel se desgaste, as histórias nas imagens repartidas vivem dentro do nosso peito, como brasas que nunca se apagam.





Autor: Nhenety Kariri-Xocó 






sexta-feira, 11 de julho de 2025

TORÃKEMWA, Livro Fino de Imagens Coloridas






Um Conto Sobre as Revistas


Na aldeia onde o rio murmura segredos antigos e as folhas dançam ao sabor do vento, chegou um dia um objeto encantado. Tinha cheiro de tinta, papel liso, e cores que saltavam aos olhos. Era o Torãkemwa — o Livro Fino de Imagens Coloridas.


Diziam que, há muito tempo, bem longe dali, um homem chamado Gutemberg havia criado a mágica de imprimir palavras e desenhos em folhas brancas. Lá na Europa do século XV, os livros nasceram como se fossem sementes de sabedoria. Depois vieram as revistas, essas flores ligeiras, cheias de imagens, que se abriram no século XIX como um novo jeito de contar o mundo.


Mas para os Kariri-Xocó, a história começou com os passos dos capuchinhos, lá no século XVII. Eles chegaram com seus catecismos e gramáticas, tentando aprender e ensinar ao mesmo tempo. E deixaram a palavra Torarã – "livro" – plantada na terra do nosso idioma.


Foi só muito depois, quando os caminhos da aldeia se abriram para o mundo, que o Torãkemwa chegou de verdade. Era a década de 1970. As mãos curiosas das meninas e dos meninos seguravam com cuidado aquelas revistas brilhantes: Sétimo Céu, Veja, Placar, Cruzeiro, IstoÉ…


As moças sonhavam acordadas ao ver os rostos sorridentes dos galãs de novela. Os rapazes vibravam com os retratos dos craques do futebol. Havia quem colasse pôsteres nas paredes de barro, fazendo do seu canto um pedaço do mundo grande. Era festa ao redor das imagens — era encanto, era conversa, era sonho.


O nome nasceu da nossa língua: Torãkemwa, de Torarã (livro), Kempé (fino), Waruá (imagem). Um nome que guarda a alma do que se via e sentia.


Hoje, o tempo corre mais ligeiro. As imagens voam por telas de celular. Os ídolos brilham em vídeos que cabem na palma da mão. As revistas impressas dormem quietas nas prateleiras, com cheiro de passado bom.


Mas há, no fundo do coração do povo Kariri-Xocó, uma saudade que não se apaga. Uma saudade do tempo em que abrir uma revista era abrir um mundo. Um tempo em que o Torãkemwa fazia os olhos brilhar e os sonhos correrem soltos como o vento entre os coqueiros do sertão.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





TORÃPISETÍ, Livretos Pendurado no Cordão






Um Conto Sobre o Cordel


Na aldeia onde o vento conversa com as folhas e os pássaros carregam as histórias no bico, vivia um velho ancião chamado Arakuá. Seus cabelos brancos pareciam algodão de nuvem e sua voz era pausada como o bater de um tambor ancestral. Toda tarde, ele se sentava à sombra do juazeiro com um punhado de livretos amarelados, pendurados por um cordão de palha.


Certo dia, um jovem curioso chamado Itã aproximou-se, intrigado com aqueles papéis escritos em rimas, desenhos simples e capas coloridas.


— Vovô Arakuá — disse Itã, com olhos atentos — por que o senhor gosta tanto desses cordéis? E por que chama de Torãpisetí?


O velho sorriu, como quem abre a porteira do tempo.


— Ah, meu neto... Torãpisetí quer dizer “Livretos Pendurado no Cordão”. No outro lado do oceano ele veio com os portugueses chamado histórias de cordel. 

 Mas em nossa língua: Torarã, que são cartas ou livros; Pineté, que é pequeno; e Setí, que é o cordão. Esses livretos falam de tudo que mora no coração do nosso povo. Quer saber como eles nasceram?


Itã assentiu com entusiasmo.


— Então escuta, que vou te contar por ciclos, como as fases da lua...


— Primeiro, nasceu o ciclo das maravilhas, Itã. — disse Arakuá, olhando para o céu — Lá moram os gigantes, as fadas, os monstros dos sonhos. O povo contava sobre a Princesa Encantada na Montanha do Fim do Mundo, onde cada estrela era uma sentinela. Tinha também a Serpente dos Sete Olhos, que vigiava os rios secretos da floresta.


Itã abriu a boca, maravilhado.


— Essas histórias, meu neto, nascem do que a gente sente, do medo e da coragem. Os primeiros cordéis foram como cantos de encantamento.


— Depois vieram os heróis antigos. — continuou Arakuá — Aqueles de força e glória. Sansão, o fortíssimo de Deus, que derrubou colunas com as próprias mãos. E Hércules, que venceu doze desafios, entre feras e monstros. Até Alexandre, o rei que falava com magos do Oriente.


— Tudo isso em cordel? — perguntou o menino, surpreso.


— Tudo, sim. Porque o cordel é como o tambor: guarda o eco do mundo.


— Quando o coração do povo apertava de dor ou se enchia de fé, nasceram os cordéis religiosos. — disse o ancião com reverência — Tem a Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. Milagres de Padim Ciço, que curava com olhar. E São Francisco, que falou com o lobo e o fez amigo dos homens.


— Esses são os que a vovó reza de noite, né?


— Exatamente, Itã. O Torãpisetí também serve de oração.


— Depois, meu neto, veio o tempo da luta. — disse com voz firme — Cordéis que contam sobre reis desaparecidos, como Dom Sebastião, que o povo espera até hoje. Falam de Zumbi, rei dos quilombos, e de Tiradentes, que sonhava com liberdade.


— Eles também são heróis?


— Heróis do povo. O cordel lembra quem enfrentou a injustiça.


— E o nosso sertão? Ah, esse virou palco de valentia e peleja. — sorriu Arakém — Lampião e Maria Bonita desceram até o inferno em versos. Zé Sereno brigou com o coronel Libório. Cada cabra valente do sertão virou cantiga pendurada no cordão.


— Esses eu ouvi no rádio!


— Pois é, o rádio pegou do cordel o jeito de contar história.


— Por fim, Itã, veio o ciclo da vida comum. — disse Arakuá — O vaqueiro Benedito que perdeu o gado e achou o amor. A moça da roça que namorou o rapaz da cidade. Até a internet chegou no sertão e ganhou cordel!


Itã deu uma gargalhada.


— Até a internet?


— Ué, o mundo muda, mas o cordão segura tudo. É como raiz que cresce em todo canto.


O sol já caía quando Arakuá levantou um dos livretos e entregou ao neto.


— Leva este contigo, e lê em voz alta sempre que puder. Porque quando o Torãpisetí balança no cordão, balança junto a alma do povo.


Itã apertou o livreto no peito, como quem segura um segredo ancestral.


E desde esse dia, nas tardes quentes da aldeia, dois se sentam à sombra do juazeiro: o velho e o novo, juntos, segurando com orgulho os livretos pendurados no cordão.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




VERSÃO DO CONTO TORÃPISETÍ EM CORDEL



TORÃPISETÍ, Livretos Pendurado no Cordão



No canto da aldeia sagrada,

Debaixo de um juazeiro,

Um velho contava histórias

Com coração verdadeiro.

Livretos presos num fio,

Como contas de um colar,

Falavam do nosso mundo,

Do viver, do sonhar.


Itã, menino ligeiro,

De olhar cheio de atenção,

Chegou, sentou-se ao lado,

Com viva curiosidade, então:

— Vovô, por que esses folhetos

O senhor lê com paixão?

E por que chama de "Torãpisetí",

Esses versos do sertão?


O velho sorriu tranquilo,

Com sabedoria no olhar:

— Meu neto, escute atento,

Que agora eu vou lhe contar.

Torãpisetí é palavra

Da língua do nosso chão:

Torarã são livros ou cartas,

Pineté, o que é de dimensão,

Pequeno, mas muito sábio,

E Setí é o cordão!


— Esses versos que eu carrego

São o espelho do viver.

Se o povo quer se lembrar,

É no cordel que vai ler.

E vou contar-te os ciclos

Que no tempo se formaram,

Histórias feitas em rima,

Que os antigos declamaram.


— Primeiro veio o encanto,

Dos tempos encantadores:

Gigantes, monstros, fadas,

Seres cheios de valores.

Cordéis de reinos distantes,

Com princesas em prisão,

Como a da montanha mística

No fim da criação.


A serpente dos sete olhos

Guardava o rio encantado,

E quem lia esses folhetos

Ficava arrepiado.

Porque o cordel também nasce

Do medo, da fantasia,

E transforma em verso o mito,

Com beleza e poesia.


— Depois vieram os feitos

De heróis da antiguidade:

Sansão com força divina,

Hércules e sua vontade.

Doze provas ele enfrentou

Com coragem e valentia,

E Alexandre conquistava

Com poder e sabedoria.


— Quando a fé se espalhou,

Cordel virou oração,

Com a Paixão de Cristo

E o amor no coração.

Milagres do Padim Ciço,

O santo nordestino,

E São Francisco pregando

Ao lobo pequenino.


— Vieram tempos de luta,

De espadas e rebeldia.

Dom Sebastião sumiu

Na bruma da profecia.

Zumbi guerreiro do povo,

Tiradentes, o sonhador,

Também vivem nos cordéis

Como símbolo e clamor.


— O sertão virou cenário

De valentia e emoção,

Com Lampião e Maria

Levando fogo ao chão.

Zé Sereno e Coronel

Num duelo no sertão,

Cordel virou espingarda

E verso virou facão!


— No fim, veio o cotidiano

Do povo trabalhador,

Com romances, namorados,

Casamento e desamor.

O vaqueiro Benedito

Perdeu gado e ganhou flor,

E até a internet nova

Virou verso encantador!


O ancião sorriu contente,

Lhe entregou um folheto, então:

— Leve este contigo, neto,

É o saber do nosso chão.

Leia em voz alta no mato,

Na aldeia, na reunião,

Pois quando o cordel balança,

Balança a alma e a tradição.


E desde aquele momento,

Junto ao velho, com paixão,

Itã virou contador

Do livrinho no cordão.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




UCHÉ UBÁMERAPUI, No Tempo dos Vapores






Um Conto da Navegação a Vapor


Houve um tempo em que o grande rio Opará sussurrava canções diferentes. Um tempo em que as águas não dançavam apenas ao ritmo das canoas, mas também ao rugido lento e fumegante das Ubámerapui, as “Canoas de Ferro Fumegantes”, como chamávamos os vapores.


Foi no século XIX que essas embarcações surgiram, riscando o espelho do São Francisco com suas trilhas de fumaça e ferro. Os Kariri-Xocó, guardiões das margens e do tempo, viram os vapores aparecerem como bichos grandes, cuspindo fumaça, carregando gentes e mercadorias entre as cidades de Penedo, Propriá, Traipú, Piranhas, e tantas outras aldeias do Opará.


A aldeia de Colégio, onde vivíamos, ficava bem na beira do rio. E não demorou para que nossas crianças corressem à margem quando ouviam o apito cortando o ar. Nós também viajávamos nos vapores. O mundo se movia mais rápido, mas o nosso tempo seguia no compasso dos encantados.


Indaiá, anciã de fala doce e olhos de memória viva, gostava de sentar sob o juazeiro e contar os causos daquele tempo. Ela falava do vapor Encomendador Peixoto, que navegava altivo, como se soubesse seu valor, e do pequeno Penedinho, que se atrevia a cruzar o rio como se fosse uma criança arteira.


— O Encomendador — dizia Indaiá — dançava nas águas durante a procissão do Bom Jesus dos Navegantes, trazendo fé e festa aos corações ribeirinhos. O vapor se enfeitava como um santo, com bandeirolas coloridas e cheiro de flor.


Ela também contava da visita do Imperador Dom Pedro II, que em 1859 veio a bordo do vapor Pirajá, deslizando pelo Opará como quem visita um velho amigo. Parou em Penedo, saudou Propriá, olhou Traipú, e viu, ainda que com olhos de fora, a alma das aldeias Kariri-Xocó e São Pedro.


Nos porões dos vapores iam cargas de tudo: sacas de cereais, carvão negro como noite de breu, tecidos vindos de longe, bichos, ferragens, e sonhos empacotados em baús. O comércio crescia, as cidades se agitavam, mas para nós, os vapores eram também memória viva, testemunhas de uma travessia entre dois tempos.


A última viagem do Encomendador Peixoto foi no fim dos anos 1960. Seu apito ecoou pela última vez como um canto de despedida. E desde então, as águas do Opará voltaram a ser cortadas apenas por canoas, motores menores, e pelas lembranças de quem viveu aquele tempo.


Hoje, quando falamos Uché Ubámerapui — “No Tempo dos Vapores” — um silêncio cheio de saudade nos toma. Não é apenas a lembrança das embarcações, mas o retrato de um tempo em que o mundo parecia deslizar mais lentamente sobre as águas do rio.


E assim seguimos, nós, Kariri-Xocó, navegando entre o ontem e o agora, com o coração ancorado no Opará e a alma lembrando sempre... do tempo dos vapores.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





TASÍ UCHÉ, No Tempo da Enxada






Um Conto Sobre a Agricultura 


Na antiga aldeia Natiá, onde os cantos se misturavam ao vento e os passos seguiam as trilhas da floresta, os espíritos dos ancestrais ainda dançavam entre as árvores. Foi ali que chegaram os primeiros brancos, vindos de além-mar. Trouxeram consigo o brilho encantador do Waruá, o espelho, e o ofereceram como presente aos nossos antepassados. Eles viam, fascinados, suas próprias imagens refletidas como nunca haviam visto. Mas o que parecia um gesto de amizade logo se tornou um ardil.


Com o Merabodzó, o machado de ferro, os brancos derrubaram as florestas que protegiam o coração da terra. Árvore por árvore, a mata foi caindo, e o silêncio ancestral deu lugar ao estalido das derrubadas. Quando o verde já não escondia mais os caminhos, trouxeram a Tasí, a enxada. Com ela, obrigaram os nossos a lavrar a terra para plantar cana-de-açúcar. Multiplicaram-se os Wirapararã, os engenhos, como feridas abertas na terra, moendo o suor dos corpos indígenas.


Mas nós resistimos.


Nos tempos dos jesuítas, fomos reunidos nos aldeamentos, e mais uma vez, nossas mãos empunharam a enxada. Plantamos mandioca, milho, feijão e abóbora para sustentar a Missão do Colégio. Quando os jesuítas se foram, ficaram apenas os nossos – sem terra, sem floresta, sem rumo. E para sobreviver, tivemos que trabalhar para os fazendeiros da região, sustentando nossas famílias com a força do braço e o canto da alma.


Na década de 1920, o algodão se espalhou por Alagoas, e muitos de nós foram para as fazendas dos brancos. Os campos brancos de flor exigiam nossas mãos calejadas. Essa jornada seguiu até 1944, quando foi fundado o Posto Indígena Padre Alfredo Dâmaso. Com um pedacinho de chão na Colônia Indígena, ergueram-se roças comunitárias. Os mutirões ecoavam cânticos de união, de esperança, de fartura.


Em 1978, a conquista da Fazenda Modelo reacendeu o espírito dos antigos. Com a velha Tasí, continuamos a plantar nossas roças. Havia muitos agricultores na aldeia, e cada safra era um ciclo de resistência e memória. Mas o tempo passou. Os que lavraram os campos com amor e suor hoje estão velhos, e muitos já partiram para a Aldeia Sagrada.


Agora, restam poucos agricultores entre nós. O Tasí Uché, o Tempo da Enxada, ficou para trás, mas vive em nossas lembranças, em nossas histórias, em nossas raízes.


Pois cada sulco aberto pela enxada foi também uma linha escrita na terra, registrando a jornada de um povo que nunca deixou de lutar.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 






quinta-feira, 10 de julho de 2025

WANAÍ, O Sonho de Aldeia






Um Conto do Sonho


Na beira da cidade, onde o cimento engole a terra e o barulho cala os cantos antigos, vivia o povo Kariri, na Rua dos Índios, em Porto Real do Colégio, Alagoas. A vida ali era apertada, abafada, sem espaço para os sonhos crescerem. Não havia terra para plantar, nem barro para moldar os potes da tradição.


Ali, no meio da luta calada, nasceu uma menina.


O ancião Iraminõ, com os cabelos brancos como a fumaça do cachimbo sagrado, segurou a criança nos braços e disse em voz firme:

— O nome dela será Wanaí, que em nossa língua vem de warakidzã, o sonho, e natiá, a aldeia.


Wanaí, o Sonho de Aldeia, cresceu ouvindo histórias sobre tempos antigos, quando seu povo andava livre, pescava nos rios, colhia frutos da mata e cantava Toré ao redor da fogueira, com os pés firmes na terra dos ancestrais.


Durante três invernos, a esperança se enraizou como semente guardada. Em 1978, os Kariri e os Xocó, juntos como irmãos, decidiram retomar a Fazenda Modelo — antiga terra dos seus avós, tomada pelos brancos há gerações.


Foi ao som do Toré que marcharam, levando Wanaí pela mão, como se ela fosse o próprio futuro caminhando entre eles. E ela era. A menina-símbolo, a luz entre os passos, o sonho encarnado de uma nova aldeia.


Um dia, a notícia chegou: o governo federal reconheceu a luta.

A terra dos antepassados, enfim, voltaria a ser morada dos seus filhos. A Nova Aldeia Kariri-Xocó começava a nascer.


O tempo passou, como o rio corre entre pedras. Wanaí tornou-se mulher e casou-se com Nhenety, guerreiro contador de histórias. Tiveram quatro filhos, e agora, já com cabelos prateados, Wanaí e Nhenety sentam com os netos sob a sombra do juazeiro, contando as memórias vividas.


— O sonho, warakidzã, nunca morre — diz Wanaí. — Ele vive na aldeia, no barro das ceramistas, na terra arada, nas escolas que ensinam a nossa língua, nas crianças que brincam com arcos e flechas, no canto do Toré.


Hoje, a aldeia cresceu. Tem escola, tem creche, tem posto de saúde. Tem o cheiro do barro molhado das lagoas, transformado em potes e arte.


Mas acima de tudo, a aldeia tem o que sempre sonhou:

Wanaí.

O sonho que virou chão, canto, e lar.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 







WOROY IHENDZIÁ, A História das Árvores






Um Conto Sobre as Árvores 


Numa manhã tranquila, o sol surgia tímido por entre as folhas úmidas da floresta. O canto dos pássaros acordava a aldeia, e os perfumes das plantas despertavam os sentidos de quem vivia em harmonia com aquele mundo sagrado.


O menino Tairoá caminhava descalço pelo terreiro da oca grande. Seus olhos curiosos procuravam entender os gestos do avô Nakai, que todas as manhãs deixava de lado os bancos de madeira confortáveis para sentar-se numa velha pedra, bem ao lado de um enorme jatobá.


— Vovô, por que o senhor sempre escolhe essa pedra para se sentar? — perguntou Tairoá com a inocência própria de quem busca entender os mistérios do mundo.


Nakai ergueu os olhos serenos, olhou para o neto e respondeu com voz mansa, mas cheia de força:


— Ah, meu neto... Porque essa pedra aqui é sagrada. Foi nela que meu pai sentou, e o pai do meu pai, e o pai do pai dele também. O velho jatobá que está aí foi testemunha de tudo. Ele viu a história do nosso povo acontecer bem diante de seus galhos.


Tairoá sentou-se ao lado do avô e olhou com respeito para a grande árvore. O jatobá, com seu tronco grosso e raízes que mergulhavam fundo na terra, parecia guardar segredos antigos.


— Toda árvore tem uma história — continuou Nakai —. Esse jatobá viu nascimentos, viu festas, viu rezas. Já o juazeiro das roças, a bechiéá, conhece as mãos dos antigos agricultores que plantaram e colheram o alimento sagrado.


— E o velho pé de ingá? — perguntou Tairoá com brilho nos olhos.


— Esse conhece bem os pescadores do Opará. Eles se abrigavam sob sua sombra ao voltar do rio, cansados, mas felizes. Já o cajazeiro da mata... ah, ele viu os caçadores, ouviu suas preces antes das jornadas e os gritos de alegria quando voltavam com alimento para a aldeia.


Nakai fez uma pausa e olhou para o alto, como quem escuta vozes que só o coração entende.


— Cada pessoa do nosso povo tem uma história com alguma árvore. Às vezes, uma plantinha pequena, dessas que curam as dores do corpo e da alma, é a guardiã de uma lembrança. Se alguém te contar qual erva curou sua febre, aí está outra história da floresta.


— Então as árvores falam? — sussurrou Tairoá, quase com medo da resposta.


— Elas não falam como a gente, mas contam tudo para quem sabe ouvir com o espírito. Chamamos isso de Woroy Ihendziá, a História das Árvores. Não conheço todas, meu neto, mas sei que cada tronco guarda uma parte do que somos. E enquanto elas viverem, nossa memória estará viva com elas.


Tairoá encostou a cabeça no ombro do avô e, ali, sob o velho jatobá, aprendeu que as árvores são livros vivos, onde o tempo escreve com folhas, raízes e silêncio.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





BYGHITÓ, Jogar Pé Na Coisa Redonda







Um Conto Sobre o Futebol na Aldeia 


Na beira do Rio São Francisco, onde o vento sopra histórias antigas e o tempo caminha com passos de espírito, nasceu uma paixão que balança os corações como folhas nas árvores da aldeia: o Byghitó, “Jogar Pé na Coisa Redonda”.


Foi nos anos de 1950 que a novidade chegou com força a Porto Real do Colégio, cidade marcada pela presença ancestral dos Kariri. O povo ainda vivia reunido na Rua dos Índios, mas mesmo com a luta diária por respeito e identidade, seus olhos brilhavam diante daquela coisa redonda que rolava pelo chão e fazia os pés dançarem.


Na língua Kariri, chamaram o novo jogo de Byghitó — nome bonito e verdadeiro:

By, que é o "Pé".

Canghité, a "Coisa".

Totó, o "Redondo".


Naquele tempo, formou-se o primeiro time da cidade: o Colegiense. Entre os que vestiram a camisa, estava Miguel Suíra, indígena de coragem, que driblava como se estivesse traçando caminhos no mato e corria como quem foge de espírito antepassado. Não demorou para Miguel se destacar. Seus pés, acostumados com o chão batido da aldeia, fizeram história também nos campos profissionais de Alagoas.


Os anos passaram como o rio, sempre em movimento. Vieram outros times, outras camisas, e os Kariri estavam lá — firmes, chutando com força e alma. Nasceu o Cruzeiro da Rua da Aurora, onde muitos indígenas mostraram sua força. Depois veio o Kariri Esporte Clube, fundado em 1975, feito com suor, sonho e união. Mais tarde, em 1980, foi a vez do Esporte Clube Guarani, fundado por filhos da terra e do tronco ancestral.


E a paixão virou tradição.

O Guarani conquistou três campeonatos municipais — tricampeão com orgulho. O Kariri também levantou taça. E até o time PSG da Aldeia, com nome moderno, mostrou que os pés da aldeia ainda dançam bem com a bola.


Hoje, aos domingos, o campo de futebol da aldeia enche-se de vida. Crianças, jovens e anciãos se reúnem. Não é apenas um jogo. É um ritual de alegria. Um momento em que a cultura ancestral encontra o presente. Cada chute é memória. Cada gol é vitória sobre o esquecimento.


Porque para os Kariri-Xocó, o Byghitó não é só esporte.

É parte do coração.

É identidade correndo no campo.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó