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sexta-feira, 25 de abril de 2025

A POLISSÍNTESE AINDA SOBREVIVEU NO NATÚ ?


Com base nas frases Xokó anotadas por Clarice Novaes de Mota em sua publicação "Os filhos de Jurema na floresta dos espíritos: ritual e cura entre dois grupos indígenas do Nordeste brasileiro" de 2007 e também nas frases do Wakonã, juntando com cada palavra documentada desses dois e o Peagaxinã (Natú), cheguei à conclusão de se tratar de uma língua mista de Jê e Arawak. Nos elementos Jê, o mais ressaltado é o do Cayapó do Sul, mas também existe a presença de lexemas Akuwẽ e Jê Setentrional. Nos elementos Arawak, que são poucos, mas que surgem em léxicos extremamente básicos como 'cabeça, cabelo' (Xk.: tipia) , 'pé' (Xk.: wêsirê), 'arco' (sabue), 'cachorro/onça' (Xk.: bashi-u), 'casa' (Xk.: gandil'a), 'língua, voz' (Wk.: akô, aka), tudo apontando para uma origem comum no Baniwa de Maroa, compare respectivamente cada um: Baniwa: tsi-pana 'cabelo', tsi-pala 'pé' (metátese: tsi-pala > pa-tsi-la > wê-si-rê), tsawi-ta 'flechar', wachi 'onça', katsi-tsia 'andar' (andar > 'casa móvel, acampamento'), -aako 'voz, idioma'.


A pergunta é claro, que fiz no título, é se a polissíntese do Cayapó do Sul, que como afirmei, é a base mais proeminente nas frases documentadas, foi conservada na fala ? Explicarei primeiro sobre a polissíntese.


A polissíntese é a incorporação de múltiplos elementos gramaticais (pronomes, partículas de verbo, transitividade, tempo, aspecto, modo e outro afixos) em uma palavra só, um exemplo reconstruído que irei demonstrar exemplifica isso:


Matamos muitos jacarés = nê-mú-mê pá mê yâ kó-sè kè


Note a primeira palavra, coloquei nela quatro hífens para separar cada elemento lexical, ela se traduz como:


nê-mú-mê pá mê yâ kó-sè kè

nós-transitivo-eles matar eles ontem jacaré ele

'nós a eles matamos ontem, os jacarés'


Essa primeira estrutura conta como uma palavra só, pois incorpora todos os elementos da língua em um só conjunto, a diferença do sistema do Cayapó do Sul, como demonstrado no Wakonã, é que os elementos gramaticais formaram um bloco independente do verbo, onde no C. do Sul, veríamos o verbo pa 'matar', junto do nê-mú-mê-, formando nê-mú-mê-pá, mas aqui, há outro processo acontecendo, um que parece ser de influência Jê Setentrional, que é o que conhecemos como redundância, olhe para as palavras que estarão em colchetes [ ]:


nê-mú-[mê] pá [mê] yâ kó-sè [kè]

nós-transitivo-[eles] matar [eles] ontem jacaré [ele]

'nós a eles matamos ontem (passado), os jacarés'

'Matamos muitos jacarés'


Notou ? O pronome 'eles' e 'ele' se repetem três vezes ao longo da frase, essa redundância também é documentada no Wakonã, sendo de lá que extraí essa estratégia, da frase ka-li-[cê] bêlê [tsiê] [bas] kiô 'fale comigo'. Isso significa, em termos mais simples, que a estrutura, agora alterada de seu ancestral Cayapó, preservou aspectos deste ancestral, mas incorporou estratégias gramaticais do Jê Setentrional, especificamente do Apinajé, comparem a seguinte frase do Apinajé:


pa na pa a-kamə̃ krak

eu RLS eu tu-em atirar

'fui eu, eu atirei em você'


Note que pa se repete duas vezes aqui, a primeira foi para informar ao ouvinte do tempo em que a frase é dita (nesse caso no realis, isto é, presente ou passado dependendo do contexto) e a segunda informa o agente da ação, que é pa 'eu'. E para provar que o Terejê herdou esse sistema, vejam esse exemplo do Apinajé:


pa kót paj akudó

eu IRR eu.IRR desaparecer

'eu me perderei'


kót aqui indicando o irrealis (futuro, imperativo e outras formas de ações não concluídas), comparem com o bas kiô do Wakonã:


Wakonã: bás kiô = eu.IRR IRR < bas < baj e kiô < kô(t)

Apinajé: pa kót paj = eu IRR eu.IRR


Essa mistura é extremamente relevante, e discuto ela por que ela nos indica que o sistema polissintético da língua estava sob intenso contato com falas de línguas analíticas como o Apinajé, que são essencialmente, o contrário da estrutura que mostrei acima, comparem:


nê-mú-[mê] pá [mê] yâ kó-sè [kè]

nós-transitivo-[eles] matar [eles] ontem jacaré [ele]

'nós a eles matamos ontem (passado), os jacarés'

'Matamos muitos jacarés'


Características da Frase 1: Incorpora elementos gramaticais em um conjunto só, tipo sintético/polissintético.



pa na pa a-kamə̃ krak

eu RLS eu tu-em atirar

'fui eu, eu atirei em você'


Características da frase 2: Separa as partículas gramaticais em palavras livres, tipo analítico.


E visto que o Wakonã tem documentando o pronome bas 'eu.irrealis' do Apinajé, pode-se presumir que todo seu paradigma (isto é, a tabela de pronomes do Apinajé) foi pega emprestada, e pode indicar que o Wakonã livremente flutuava entre frases de palavras grandes e frases de palavras pequenas e soltas.




Autor da matéria: Ari Suã Kariri 





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