Páginas

domingo, 25 de maio de 2025

O CONTO DA TRAVESSIA, A Formação da Comunidade Kariri-Xocó






O dia amanhecia preguiçoso quando a grande canoa Caiçara, de dois panos estendidos ao vento, deslizou pelo curso sereno, mas imponente, do Rio São Francisco. O céu era uma tapeçaria esgarçada de nuvens claras, refletidas nas águas esverdeadas. A bordo, os Xocós remavam com força e silêncio, enquanto as pequenas canoas de pesca acompanhavam a embarcação-mãe, como filhotes fiéis a um ventre seguro.


Há três dias haviam deixado a Ilha de São Pedro de Porto da Folha, na Província de Sergipe, forçados pela violência dos fazendeiros que, com suas cercas e armas, tomaram a terra que fora sua desde sempre. A aldeia fora invadida, os roçados arrancados, as tabas incendiadas. O cheiro acre da fumaça ainda estava entranhado nas roupas e na memória.


Inocêncio Muirá, o mais velho entre os guerreiros Xocós, fitava as margens distantes, o rosto endurecido, mas o olhar perdido em lembranças:


— Nossa terra ficou para trás... — murmurou para si, e então apertou o remo com mais força, como se assim pudesse vencer a tristeza.


Ao seu lado, a esposa Tertuliana, carregando o filho Kayé de meses preso às costas com um pano trançado, sussurrou:


— E para onde vamos, Inocêncio? Encontraremos paz?


O ancião demorou alguns instantes antes de responder, olhando para o horizonte, onde o rio se alargava.


— Vamos para onde nossos parentes Kariri nos esperam. Lá seremos acolhidos. Lá, nossa raiz encontrará outra raiz, e de ambas nascerá uma nova árvore.


Durante a travessia, paravam nas ilhotas escondidas entre a vegetação. Os homens pescavam com redes artesanais, enquanto as mulheres cozinhavam o peixe e colhiam frutos silvestres. As crianças corriam entre as pedras, brincando, ignorantes da dor dos adultos.


Numa dessas paradas, à beira de uma ilha sombreada por ingazeiras, um dos jovens guerreiros, Zé Maromba, ergueu os olhos para o céu avermelhado do entardecer e disse:


— O rio é largo, mas o nosso espírito é mais forte.


Inocêncio assentiu, e os demais, silenciosamente, retomaram a jornada ao amanhecer.


No terceiro dia, finalmente avistaram as margens da Província de Alagoas. A névoa baixa começava a se dissipar quando o perfil da Aldeia de Colégio se desenhou no horizonte: algumas casas de taipa com telhados de palha, árvores frondosas, e o movimento discreto de pessoas junto ao rio.


Ao desembarcarem, foram recebidos por uma figura imponente e serena: o pajé Manoel Paulo, líder espiritual dos Kariri. Ele se adiantou, abrindo os braços em sinal de acolhida. Sua voz, grave e pausada, rompeu o silêncio:


— Sejam bem-vindos, parentes Xocós. Esta terra também é de vocês.


Inocêncio se aproximou, curvou levemente a cabeça, e respondeu com respeito:


— Gratidão, pajé Manoel Paulo. Viemos com o coração ferido, mas com a esperança viva.


Manoel Paulo colocou uma das mãos calejadas sobre o ombro de Inocêncio e, olhando em volta para os demais, declarou:


— Aqui, vocês podem construir suas casas, pescar nas mesmas águas, e celebrar seus rituais. A floresta é grande e generosa. O Rio São Francisco é testemunha de nossa aliança.


Guiados pelo pajé, atravessaram a pequena vila e chegaram à Rua dos Índios, onde as famílias Kariri já viviam em casas de palha e barro. As mulheres Kariri vieram ao encontro das visitantes, oferecendo água fresca e pedaços de mandioca assada. As crianças se misturaram, brincando como se já fossem amigas de toda a vida.


À noite, ao redor da fogueira que lançava sombras dançantes sobre as árvores, os dois povos se reuniram. O pajé Manoel Paulo tomou a palavra, erguendo uma cuia de cauim:


— Que esta bebida sagrada celebre nossa união. Kariri e Xocós, agora, são um só.


Todos beberam, e então o velho pajé virou-se para Inocêncio:


— Vocês podem erguer aqui sua Taba do Ritual, podem cantar, dançar e rezar como sempre fizeram. Este lugar será também a morada de seus encantados.


Com os olhos marejados, Inocêncio respondeu:


— Assim será, pajé. Nossa cultura não morrerá. O que nos arrancaram lá, vamos refazer aqui, com nossas mãos e com o apoio dos irmãos Kariri.


Nos dias seguintes, os Xocós começaram a construir suas casinhas de palha ao lado das dos Kariri. As mulheres trançavam folhas de carnaúba com destreza, enquanto os homens fincavam os paus de sustentação no chão fértil da floresta. Logo, a Taba do Ritual foi erguida, ampla, circular, com espaço para as danças sagradas, para os cantos que ecoariam pelas matas e pelo rio.


Certa manhã, o pajé Manoel Paulo e Inocêncio Muirá ficaram lado a lado à beira do rio, olhando as águas seguirem seu curso. O pajé comentou, com um meio sorriso:


— Assim como este rio, nós seguimos em frente, sempre.


Inocêncio, com o olhar firme, respondeu:


— E sempre voltamos à nossa origem, mesmo quando a terra muda.


Dessa união nasceu uma nova aldeia, uma nova identidade: a Comunidade Kariri-Xocó. Os tambores ecoaram novamente, agora mais fortes, misturando as tradições, os saberes, os cantos e os sonhos de dois povos irmãos.


E as águas do São Francisco seguiram testemunhando a resistência e a permanência daquele povo, enquanto as crianças corriam livres pela floresta e os mais velhos ensinavam aos jovens que, mesmo diante das maiores perdas, a cultura e a memória nunca se deixam arrancar.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 



Consultado por meio da ferramenta ChatGPT (OpenAI), inteligência artificial como apoio para elaboração do trabalho da capa no dia 25 de maio de 2025.



Nenhum comentário:

Postar um comentário