Na beira do Opará, quando o céu começava a se tingir de cores douradas e avermelhadas, Piracy, a “mãe dos peixes”, chamava sua filha, Neêperé, para sentar-se à sombra da gameleira sagrada. O rio sussurrava seus mistérios e os pássaros voavam baixo, como se quisessem também ouvir a conversa entre mãe e filha.
Piracy, com a paciência de quem conhece os ciclos da vida, ajeitava as folhas no chão e dizia:
— Venha, minha filha. Hoje contarei mais histórias dos nossos nomes, para que nunca esqueças quem és, quem somos.
Neêperé correu, animada, sentando-se ao lado da mãe, encostando a cabeça em seu braço forte e moreno como o tronco da gameleira.
— Ontem você me falou de Piragibe, de Jaciara e de Canindé… — lembrou Neêperé com um sorriso — Quero ouvir mais!
Piracy sorriu e olhou para o rio, como quem busca nas águas as lembranças:
— Havia também Pindaíba, que caçava com astúcia e nunca voltava de mãos vazias… E Pacatuba, que sabia ouvir o silêncio das árvores.
Fez uma pausa e olhou fundo nos olhos da filha:
— Cada nome tinha um sentido, uma história, um espírito que guiava a pessoa. Nossos nomes eram nossos protetores e nossos destinos.
Neêperé ficou pensativa:
— E por que agora muitos se chamam Maria, José, Manoel...?
Piracy respirou fundo, a voz embargando levemente:
— Porque, minha filha… vieram tempos difíceis.
E então, com aquele tom que misturava ternura e força, começou a narrar como quem invoca os espíritos antigos:
— Lembro do que contava minha avó, que ouviu de sua mãe… Os homens brancos chegaram com suas caravelas enormes, cruzes pesadas e línguas afiadas. Diziam que traziam a salvação, mas também traziam o esquecimento.
Fez um gesto amplo, como quem abarca a vastidão da floresta:
— Eles eram uma mistura de muitos: íberos, celtas, lusitanos, romanos, germânicos, judeus, muçulmanos… Tinham em si o sangue de muitos povos, mas queriam que nós esquecêssemos os nossos.
Neêperé segurou firme a mão da mãe:
— Mas você não esqueceu…
Piracy sorriu, orgulhosa:
— Não. Nem eu, nem tu, nem aqueles que ainda escutam a voz do Opará.
Depois de um breve silêncio, a menina perguntou:
— Mãe… conta como foi quando proibiram nossa língua…
Piracy fechou os olhos, como quem volta no tempo:
— Ah, minha filha… Quando os padres jesuítas chegaram, muitos de nós aprendemos a língua dos Tupis para poder entender e resistir. Mas depois… no tempo do Marquês de Pombal, ele mandou que todas as aldeias se tornassem vilas, cidades… Proibiu nossas línguas, nossos cantos, nossas rezas…
Neêperé arregalou os olhos:
— Como puderam proibir?
Piracy olhou para a filha com doçura:
— Quando proíbem uma palavra, tentam cortar uma raiz. Mas raízes fortes rompem pedras, minha filha.
E então, como fazia sempre que queria que Neêperé jamais esquecesse, pegou um punhado de terra e colocou na palma da mão da menina:
— Sente… aqui está a força dos nossos ancestrais. Eles estão nesta terra, neste rio, nesta árvore… e na tua pele, no teu nome.
Neêperé apertou a terra, como quem guarda um tesouro.
Piracy continuou:
— Mesmo que tentassem nos dar nomes de outros povos — Maria, José, Antônio, Baltazar… — o espírito dos nossos nomes continuava sussurrando nas nossas almas.
Fez mais uma pausa, e olhando o rosto da filha, acrescentou:
— Teu nome, Neêperé, é um chamado. É a “voz ancestral de poder”. Não esqueças: tua missão é lembrar e fazer lembrar.
Neêperé, emocionada, assentiu com a cabeça.
— Mãe… conta mais uma história…
Piracy sorriu e puxou a filha para mais perto:
— Lembras da história de Muirá Ubi?
Neêperé abriu um sorriso:
— Aquele que falava com as árvores?
Piracy confirmou:
— Sim… Dizem que Muirá Ubi nasceu com o dom de ouvir o que as árvores diziam. Antes de cortar um galho ou colher um fruto, ele pedia licença e agradecia. Foi ele quem ensinou aos nossos ancestrais que a mata não se domina, se respeita.
Neêperé fechou os olhos, como se pudesse ouvir as árvores naquele momento.
— Um dia, tu também ensinarás isso aos teus filhos… — completou Piracy.
A menina sorriu, abraçando forte a mãe.
O sol começava a se pôr, tingindo o céu com tons de fogo e esperança.
Piracy então se levantou, estendendo a mão para a filha:
— Venha, vamos ao rio. Quero te mostrar o lugar onde minha avó, tua bisavó, me contava estas histórias, e onde um dia tu também contarás aos teus.
As duas caminharam de mãos dadas até a beira do Opará. O rio seguia, eterno, levando e trazendo memórias.
E ali, sob o céu estrelado que começava a despontar, Neêperé prometeu em silêncio que jamais deixaria os nomes se perderem.
Porque, como sempre dizia sua mãe:
“Quando um nome é pronunciado com amor, ele nunca morre.”
E assim, o espírito dos nomes indígenas continuava vivo, forte, fluindo como o próprio rio.
Os anos passaram, como as águas do Opará que nunca param de correr.
Neêperé cresceu, aprendeu a respeitar e ouvir a voz da terra, a linguagem do rio e os segredos das árvores, como sua mãe, Piracy, lhe ensinara. Casou-se, teve filhos, e quando o tempo se fez maduro, nasceu Indaiá — sua neta, flor silvestre, forte e delicada como a árvore que lhe emprestou o nome.
Indaiá corria pela aldeia, com os pés descalços, os cabelos negros esvoaçantes, colhendo flores e ouvindo os cantos dos pássaros.
Numa tarde em que o céu se tingia com as mesmas cores que um dia tingiram as tardes de Piracy, Neêperé chamou sua neta:
— Indaiá, venha cá!
A menina correu e se aninhou aos pés da avó, como fazia quando queria ouvir uma de suas histórias.
Neêperé passou a mão carinhosa pelos cabelos da neta e disse:
— Hoje vou te contar uma história muito antiga… sobre os nomes que correm em nosso sangue, como corre o rio.
Indaiá abriu bem os olhos, curiosa:
— Sobre os nossos nomes?
Neêperé sorriu, vendo nela o brilho inquieto de todas as mulheres da sua linhagem:
— Sim, minha netinha. Havia uma mulher forte, chamada Piracy, a mãe dos peixes… minha mãe, tua bisa…
E então, com a voz embargada de emoção, Neêperé contou à neta as mesmas histórias que ouvira sob a gameleira, quando também era apenas uma menina.
— Ela me ensinou que nossos nomes guardam nossas histórias, que eles falam da nossa ligação com a terra, com os rios, com o céu…
Fez uma pausa, olhando para o horizonte, onde o rio brilhava sob o sol poente:
— Mas, um dia, tentaram nos tirar isso…
Indaiá franziu o cenho:
— Quem, vovó?
Neêperé respirou fundo:
— Aqueles que vieram do outro lado do mar. Eles chegaram com suas cruzes, suas armas, suas leis… Quiseram apagar nossa fala, mudar nossos nomes…
Indaiá, aflita, perguntou:
— E conseguiram?
A avó sorriu, acariciando-lhe o rosto:
— Conseguiram em parte… Muitos de nós passaram a se chamar Maria, José, Antônio… Mas, dentro de cada um, a força do nome antigo nunca morreu.
Apontou para o peito da neta:
— Está aqui… dentro de ti.
Indaiá colocou a mão no coração, sentindo o calor das palavras da avó.
— Por isso me chamo Indaiá?
Neêperé assentiu:
— Sim, para que nunca esqueças quem és, para que continues a tecer essa rede invisível que liga Piracy, Neêperé e agora… Indaiá.
A menina sorriu, feliz, e deitou no colo da avó.
O vento soprou suave entre as folhas da gameleira, e o Opará continuou a cantar seu canto milenar.
E então, olhando o céu que começava a se encher de estrelas, Neêperé disse, quase num sussurro:
— Um dia, minha neta… tu também contarás essa história aos teus filhos, aos teus netos… E eles contarão aos deles…
Indaiá fechou os olhos, abraçada à avó, e prometeu, em silêncio:
“Nunca deixarei os nomes se perderem.”
E assim, naquela tarde banhada de luz dourada, o ciclo se completou — e seguiu adiante, como sempre seguiu, desde o tempo das origens, desde quando o Opará começou a correr.
Contado por: Nhenety Kariri-Xocó
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