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quarta-feira, 4 de junho de 2025

DZEANIEÁ, O Conto dos Nomes Indígenas







Na beira do Opará, quando o céu começava a se tingir de cores douradas e avermelhadas, Piracy, a “mãe dos peixes”, chamava sua filha, Neêperé, para sentar-se à sombra da gameleira sagrada. O rio sussurrava seus mistérios e os pássaros voavam baixo, como se quisessem também ouvir a conversa entre mãe e filha.


Piracy, com a paciência de quem conhece os ciclos da vida, ajeitava as folhas no chão e dizia:


— Venha, minha filha. Hoje contarei mais histórias dos nossos nomes, para que nunca esqueças quem és, quem somos.


Neêperé correu, animada, sentando-se ao lado da mãe, encostando a cabeça em seu braço forte e moreno como o tronco da gameleira.


— Ontem você me falou de Piragibe, de Jaciara e de Canindé… — lembrou Neêperé com um sorriso — Quero ouvir mais!


Piracy sorriu e olhou para o rio, como quem busca nas águas as lembranças:


— Havia também Pindaíba, que caçava com astúcia e nunca voltava de mãos vazias… E Pacatuba, que sabia ouvir o silêncio das árvores.


Fez uma pausa e olhou fundo nos olhos da filha:


— Cada nome tinha um sentido, uma história, um espírito que guiava a pessoa. Nossos nomes eram nossos protetores e nossos destinos.


Neêperé ficou pensativa:


— E por que agora muitos se chamam Maria, José, Manoel...?


Piracy respirou fundo, a voz embargando levemente:


— Porque, minha filha… vieram tempos difíceis.


E então, com aquele tom que misturava ternura e força, começou a narrar como quem invoca os espíritos antigos:


— Lembro do que contava minha avó, que ouviu de sua mãe… Os homens brancos chegaram com suas caravelas enormes, cruzes pesadas e línguas afiadas. Diziam que traziam a salvação, mas também traziam o esquecimento.


Fez um gesto amplo, como quem abarca a vastidão da floresta:


— Eles eram uma mistura de muitos: íberos, celtas, lusitanos, romanos, germânicos, judeus, muçulmanos… Tinham em si o sangue de muitos povos, mas queriam que nós esquecêssemos os nossos.


Neêperé segurou firme a mão da mãe:


— Mas você não esqueceu…


Piracy sorriu, orgulhosa:


— Não. Nem eu, nem tu, nem aqueles que ainda escutam a voz do Opará.


Depois de um breve silêncio, a menina perguntou:


— Mãe… conta como foi quando proibiram nossa língua…


Piracy fechou os olhos, como quem volta no tempo:


— Ah, minha filha… Quando os padres jesuítas chegaram, muitos de nós aprendemos a língua dos Tupis para poder entender e resistir. Mas depois… no tempo do Marquês de Pombal, ele mandou que todas as aldeias se tornassem vilas, cidades… Proibiu nossas línguas, nossos cantos, nossas rezas…


Neêperé arregalou os olhos:


— Como puderam proibir?


Piracy olhou para a filha com doçura:


— Quando proíbem uma palavra, tentam cortar uma raiz. Mas raízes fortes rompem pedras, minha filha.


E então, como fazia sempre que queria que Neêperé jamais esquecesse, pegou um punhado de terra e colocou na palma da mão da menina:


— Sente… aqui está a força dos nossos ancestrais. Eles estão nesta terra, neste rio, nesta árvore… e na tua pele, no teu nome.


Neêperé apertou a terra, como quem guarda um tesouro.


Piracy continuou:


— Mesmo que tentassem nos dar nomes de outros povos — Maria, José, Antônio, Baltazar… — o espírito dos nossos nomes continuava sussurrando nas nossas almas.


Fez mais uma pausa, e olhando o rosto da filha, acrescentou:


— Teu nome, Neêperé, é um chamado. É a “voz ancestral de poder”. Não esqueças: tua missão é lembrar e fazer lembrar.


Neêperé, emocionada, assentiu com a cabeça.


— Mãe… conta mais uma história…


Piracy sorriu e puxou a filha para mais perto:


— Lembras da história de Muirá Ubi?


Neêperé abriu um sorriso:


— Aquele que falava com as árvores?


Piracy confirmou:


— Sim… Dizem que Muirá Ubi nasceu com o dom de ouvir o que as árvores diziam. Antes de cortar um galho ou colher um fruto, ele pedia licença e agradecia. Foi ele quem ensinou aos nossos ancestrais que a mata não se domina, se respeita.


Neêperé fechou os olhos, como se pudesse ouvir as árvores naquele momento.


— Um dia, tu também ensinarás isso aos teus filhos… — completou Piracy.


A menina sorriu, abraçando forte a mãe.


O sol começava a se pôr, tingindo o céu com tons de fogo e esperança.


Piracy então se levantou, estendendo a mão para a filha:


— Venha, vamos ao rio. Quero te mostrar o lugar onde minha avó, tua bisavó, me contava estas histórias, e onde um dia tu também contarás aos teus.


As duas caminharam de mãos dadas até a beira do Opará. O rio seguia, eterno, levando e trazendo memórias.


E ali, sob o céu estrelado que começava a despontar, Neêperé prometeu em silêncio que jamais deixaria os nomes se perderem.


Porque, como sempre dizia sua mãe:


“Quando um nome é pronunciado com amor, ele nunca morre.”


E assim, o espírito dos nomes indígenas continuava vivo, forte, fluindo como o próprio rio.


Os anos passaram, como as águas do Opará que nunca param de correr.


Neêperé cresceu, aprendeu a respeitar e ouvir a voz da terra, a linguagem do rio e os segredos das árvores, como sua mãe, Piracy, lhe ensinara. Casou-se, teve filhos, e quando o tempo se fez maduro, nasceu Indaiá — sua neta, flor silvestre, forte e delicada como a árvore que lhe emprestou o nome.


Indaiá corria pela aldeia, com os pés descalços, os cabelos negros esvoaçantes, colhendo flores e ouvindo os cantos dos pássaros.


Numa tarde em que o céu se tingia com as mesmas cores que um dia tingiram as tardes de Piracy, Neêperé chamou sua neta:


— Indaiá, venha cá!


A menina correu e se aninhou aos pés da avó, como fazia quando queria ouvir uma de suas histórias.


Neêperé passou a mão carinhosa pelos cabelos da neta e disse:


— Hoje vou te contar uma história muito antiga… sobre os nomes que correm em nosso sangue, como corre o rio.


Indaiá abriu bem os olhos, curiosa:


— Sobre os nossos nomes?


Neêperé sorriu, vendo nela o brilho inquieto de todas as mulheres da sua linhagem:


— Sim, minha netinha. Havia uma mulher forte, chamada Piracy, a mãe dos peixes… minha mãe, tua bisa…


E então, com a voz embargada de emoção, Neêperé contou à neta as mesmas histórias que ouvira sob a gameleira, quando também era apenas uma menina.


— Ela me ensinou que nossos nomes guardam nossas histórias, que eles falam da nossa ligação com a terra, com os rios, com o céu…


Fez uma pausa, olhando para o horizonte, onde o rio brilhava sob o sol poente:


— Mas, um dia, tentaram nos tirar isso…


Indaiá franziu o cenho:


— Quem, vovó?


Neêperé respirou fundo:


— Aqueles que vieram do outro lado do mar. Eles chegaram com suas cruzes, suas armas, suas leis… Quiseram apagar nossa fala, mudar nossos nomes…


Indaiá, aflita, perguntou:


— E conseguiram?


A avó sorriu, acariciando-lhe o rosto:


— Conseguiram em parte… Muitos de nós passaram a se chamar Maria, José, Antônio… Mas, dentro de cada um, a força do nome antigo nunca morreu.


Apontou para o peito da neta:


— Está aqui… dentro de ti.


Indaiá colocou a mão no coração, sentindo o calor das palavras da avó.


— Por isso me chamo Indaiá?


Neêperé assentiu:


— Sim, para que nunca esqueças quem és, para que continues a tecer essa rede invisível que liga Piracy, Neêperé e agora… Indaiá.


A menina sorriu, feliz, e deitou no colo da avó.


O vento soprou suave entre as folhas da gameleira, e o Opará continuou a cantar seu canto milenar.


E então, olhando o céu que começava a se encher de estrelas, Neêperé disse, quase num sussurro:


— Um dia, minha neta… tu também contarás essa história aos teus filhos, aos teus netos… E eles contarão aos deles…


Indaiá fechou os olhos, abraçada à avó, e prometeu, em silêncio:


“Nunca deixarei os nomes se perderem.”


E assim, naquela tarde banhada de luz dourada, o ciclo se completou — e seguiu adiante, como sempre seguiu, desde o tempo das origens, desde quando o Opará começou a correr.




Contado por: Nhenety Kariri-Xocó






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