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sábado, 28 de junho de 2025

O ESTRONDO QUE CHEGOU PELA TERRA






Na quietude da manhã, quando o canto dos pássaros ainda dava o tom da aldeia e o cheiro da terra molhada subia como incenso dos antigos, um barulho diferente chegou ao território Kariri-Xocó. Primeiro, veio como um tremor leve, depois, como um ronco que não cessava. As crianças paravam de brincar para escutar; os mais velhos trocavam olhares, lembrando das histórias dos tempos em que a terra era livre de ferros e motores.


Era o ano de 1969, e Porto Real do Colégio, último ponto de Alagoas antes do rio São Francisco, se preparava para ser cortado por um caminho novo. A BR-101, um sonho de progresso para muitos, vinha avançando desde o sul do estado, devorando quilômetros de terra batida até alcançar o chão sagrado dos Kariri-Xocó.


No começo, tudo parecia um espanto. Máquinas imensas, com nomes que ninguém conhecia — pá carregadeira, scraper, motoniveladora, trator de esteira — tomaram conta da Rua dos Índios. O velho prédio da antiga fábrica, que antes abrigava apenas silêncio e poeira, se transformou num quartel de engenheiros, motoristas e peões. Ali se estabeleceu o coração da obra no trecho de Porto Real do Colégio.


Mas o que surpreendeu mesmo foi ver os próprios indígenas, de mãos calejadas e espíritos fortes, vestindo uniformes e assinando carteiras de trabalho. Em 1970, muitos foram chamados a integrar a obra. Tinham agora um salário, um novo modo de sustento — sem que isso apagasse a lembrança do Toré, do canto e do conselho dos mais velhos.


Durante meses, as gigantes de ferro cruzavam a aldeia, levantando poeira, abrindo caminho, mudando o horizonte. Era estranho, mas também promissor. Famílias viam a renda melhorar, os mercados se enchiam, os filhos ganhavam calçados novos e o sonho do estudo parecia mais próximo.


Quando a estrada ficou pronta, uma nova fase se iniciou. O DNER — Departamento Nacional de Estradas de Rodagem — chegou, trazendo mais empregos. Homens e mulheres Kariri-Xocó passaram a cuidar da estrada, como se fosse também parte de sua história. Com vassouras, enxadas e atenção, mantinham viva a BR-101, como se quisessem dizer: "Também somos parte deste caminho."


Os anos passaram, e muita coisa mudou. Mas aquele tempo de construção, de mistura entre tradição e modernidade, deixou marcas que ainda brilham na memória da aldeia. Hoje, os anciãos falam aos mais jovens sobre a chegada da estrada como se fosse um capítulo da grande história dos Kariri-Xocó — uma história de resistência, adaptação e sabedoria.


Pois o povo indígena, mesmo quando integrado ao tal progresso, não esquece a força que vem da raiz, da terra e da palavra ancestral. A estrada cortou o chão, mas não apagou os cantos.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 



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