Nas margens do velho rio Opará, onde o vento ainda sussurra nomes esquecidos e os cajueiros se inclinam como anciãos em oração, vivia uma jovem chamada Tainá, filha do povo Kariri-Xocó. Seu corpo, como o barro das margens, era tela viva do tempo e da memória. Cada risco em sua pele era um traço da história de muitos — não apenas dela.
Ela cresceu ouvindo as histórias dos mais velhos, que falavam com reverência dos Mekuá, os desenhos ancestrais. Contavam que eles não surgiram por acaso: vinham da junção de mundos, de encontros e dores, da mistura de povos trazidos pelo tempo e pela força da colonização.
“Meká”, diziam os avôs, “é a marca do corpo — a lembrança do Kariri Kipeá.”
“Kuatí”, completavam as avós, “são as listas do Tupi — serpentes que dançam na pele.”
Assim nasceu o grafismo Kariri-Xocó, uma arte que não se limita ao belo, mas que pulsa com o sagrado, com o vivido, com o que sobrevive.
Tainá, sentada ao lado de sua avó Nairá, mergulhava os dedos em Bunhá, o barro vermelho, e moldava potes que ganhavam vida com traços e cores.
— Essa é a Hebunhawí, minha neta — disse Nairá, sorrindo com os olhos. — Pintura de cerâmica. Do He, que é pintar, e do Bunhawí, nossa cerâmica.
— E essa outra? — Tainá apontou para o desenho em seu braço.
— Esse é o Nhiró, pintura do corpo. Do Dzubukuá, que vive em nós.
— E o tear da tia Jacira?
— Aquilo é o Heburuhu, pintura do fuso. Também do Dzubukuá.
Na aldeia de Porto Real do Colégio, chamada de Aldeia Mãe, cada linha pintada, cada pote moldado, cada corpo adornado contava não apenas a resistência de um povo, mas a sua reinvenção. Era ali que as famílias, sobreviventes de antigas dores e silêncios impostos, se reconstruíam entre cantos, grafismos e memória.
Tainá compreendeu então: o grafismo não era só um desenho. Era escudo e asa. Era raiz e flecha. Era o modo como seu povo, feito de muitos, permanecia um só. Misturado, sim. Esquecido, jamais.
E ao olhar para o céu tingido do entardecer, Tainá entendeu que sua missão seria também marcar, com traço e com palavra, a continuidade do que jamais deixará de viver:
o Mekuá — o desenho sagrado da resistência.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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