quarta-feira, 2 de julho de 2025

POHÓ DO ITIÚBA, A Várzea do Rio da Canoa

 






O velho Mainã sentava-se sob a sombra do juazeiro, à beira do terreiro, onde o vento ainda trazia o cheiro úmido do rio. Seus cabelos eram como fios de algodão do tempo, e os olhos, espelhos d’água cheios de lembrança. Ao seu lado, o pequeno Iruan, curioso e atento, ouvia mais uma história antes do pôr do sol.


— Neto, você conhece a Pohó do Itiúba? — perguntou o ancião, acariciando o cajado com desenhos entalhados.


— Não, vovô... — respondeu o menino, com os olhos arregalados. — O que é isso?


— Pohó, na nossa língua, é várzea... Do, é de... Iti, é rio... e Ubá, canoa. Então, Pohó do Itiúba quer dizer: A Várzea do Rio da Canoa. Um lugar sagrado, onde o Opará era livre e a terra cantava com os bichos.


Mainã olhou o horizonte, como quem escutava o passado.


— Lá, meu filho, era tudo vida. As águas vinham e iam, e deixavam fartura no caminho. As aves vinham de longe: marrecas, garças, paturis, mergulhões, maçaricos... Um céu voador, colorido. E os peixes... ah, os peixes! Cumatás, mandis, piaus, sarapós, jundiás, cumbás, camarões... o povo comia do rio como se colhesse da terra. Era um tempo em que a várzea alimentava mais de três mil famílias.


— Três mil?! — espantou-se Iruan, contando nos dedos como se pudesse alcançar o número.


— Isso mesmo — sorriu o ancião —. E não era só gente não. Jacaré dormia nas margens, capivara fazia festa, lontra nadava rindo, guaxinim roubava frutas, furão corria ligeiro, raposa espiava curiosa, jabuti descansava sob a sombra... Era um mundo inteiro dançando no mesmo ritmo.


Iruan ficou em silêncio por um instante, imaginando a várzea viva.


— Mas... e agora, vovô? Por que a gente não vai mais lá?


Mainã abaixou a cabeça e sua voz ficou mais baixa.


— Em 1975, meu neto, o governo desapropriou a várzea. Fez o chamado Projeto de Irrigação da Várzea do Itiúba. Dividiu em lotes. Trouxe máquinas, planos, arroz irrigado. Deram terras para umas trezentas famílias. Dizem que foi progresso...


O velho olhou nos olhos do neto.


— Mas a terra antes não era só arroz. Era floresta, era peixe, era bicho, era espírito. A várzea nos dava tudo, sem tirar de ninguém. Hoje, dizem que a cidade cresceu... mas a natureza chora.


Iruan abaixou os olhos, como se também ouvisse esse choro.


— E ninguém faz nada, vovô?


— A gente faz sim, neto. A gente lembra. A gente conta. Porque contar é manter vivo. Enquanto alguém escutar essa história, a Pohó do Itiúba ainda vive. Não nas águas, mas no coração do povo Kariri-Xocó.


O menino sorriu, como quem guarda um segredo precioso.


E ali, entre o juazeiro e a terra batida, a várzea floresceu mais uma vez — nas palavras de um velho, nos sonhos de uma criança, e no espírito de uma memória que jamais se afoga.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




VERSÃO EM CORDEL: POHÓ DO ITIÚBA, A Várzea do Rio da Canoa 



Nas terras de Porto Real,

Na beira do Opará,

Tem uma história sagrada

Que eu venho aqui contar.

É da várzea encantada

Que sabia alimentar.


Pohó do Itiúba

Era seu nome de glória.

Na língua dos ancestrais

Carrega viva memória:

Pohó é a linda várzea,

Itiúba, a velha história.


"Iti" quer dizer o rio,

"Ubá", canoa a remar.

"Do" é o que une os dois,

Pra quem quiser decifrar:

Várzea do Rio da Canoa,

Um nome pra se guardar.


Sentado à sombra do juazeiro,

Mainã, velho contador,

Chamava o neto Iruan

Com ternura e muito amor:

— Vem cá, menino curioso,

Ouve o que diz o avô.


— Lá, onde a água reinava,

A vida era uma canção.

Marreca, paturi e garça

Voavam em procissão.

E os peixes nas enchentes

Pulavam com devoção.


— Mandi, piau e sarapó,

Jundiá, bagre, camarão...

Davam de comer a todos

Naquela imensa região.

Mais de três mil famílias

Tinham fartura e pão.


— Era festa pros bichinhos,

Jacaré, lontra e furão.

Capivara, guaxinim,

Raposa em procissão.

E os jabutis sonhadores

Iam devagar no chão.


Mas veio a mão do governo

Com promessa e divisão.

Em setenta e cinco, a várzea

Caiu na desapropriação.

Virou projeto de arroz

E de irrigação.


Dividiram em trezentos

Pequenos lotes iguais.

Deram terras a famílias,

Mas tiraram muito mais.

Porque a várzea antes viva

Virou chão artificial.


— Meu neto, a terra chorou,

O rio calou sua voz.

Mas se a gente conta a história,

Ela ainda vive entre nós.

Enquanto houver memória,

A várzea nunca se vai.


Iruan olhou pro velho

Com brilho no coração.

E jurou guardar a várzea

Como viva tradição.

Pois quem escuta com alma

Faz parte da criação.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 








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