O velho Mainã sentava-se sob a sombra do juazeiro, à beira do terreiro, onde o vento ainda trazia o cheiro úmido do rio. Seus cabelos eram como fios de algodão do tempo, e os olhos, espelhos d’água cheios de lembrança. Ao seu lado, o pequeno Iruan, curioso e atento, ouvia mais uma história antes do pôr do sol.
— Neto, você conhece a Pohó do Itiúba? — perguntou o ancião, acariciando o cajado com desenhos entalhados.
— Não, vovô... — respondeu o menino, com os olhos arregalados. — O que é isso?
— Pohó, na nossa língua, é várzea... Do, é de... Iti, é rio... e Ubá, canoa. Então, Pohó do Itiúba quer dizer: A Várzea do Rio da Canoa. Um lugar sagrado, onde o Opará era livre e a terra cantava com os bichos.
Mainã olhou o horizonte, como quem escutava o passado.
— Lá, meu filho, era tudo vida. As águas vinham e iam, e deixavam fartura no caminho. As aves vinham de longe: marrecas, garças, paturis, mergulhões, maçaricos... Um céu voador, colorido. E os peixes... ah, os peixes! Cumatás, mandis, piaus, sarapós, jundiás, cumbás, camarões... o povo comia do rio como se colhesse da terra. Era um tempo em que a várzea alimentava mais de três mil famílias.
— Três mil?! — espantou-se Iruan, contando nos dedos como se pudesse alcançar o número.
— Isso mesmo — sorriu o ancião —. E não era só gente não. Jacaré dormia nas margens, capivara fazia festa, lontra nadava rindo, guaxinim roubava frutas, furão corria ligeiro, raposa espiava curiosa, jabuti descansava sob a sombra... Era um mundo inteiro dançando no mesmo ritmo.
Iruan ficou em silêncio por um instante, imaginando a várzea viva.
— Mas... e agora, vovô? Por que a gente não vai mais lá?
Mainã abaixou a cabeça e sua voz ficou mais baixa.
— Em 1975, meu neto, o governo desapropriou a várzea. Fez o chamado Projeto de Irrigação da Várzea do Itiúba. Dividiu em lotes. Trouxe máquinas, planos, arroz irrigado. Deram terras para umas trezentas famílias. Dizem que foi progresso...
O velho olhou nos olhos do neto.
— Mas a terra antes não era só arroz. Era floresta, era peixe, era bicho, era espírito. A várzea nos dava tudo, sem tirar de ninguém. Hoje, dizem que a cidade cresceu... mas a natureza chora.
Iruan abaixou os olhos, como se também ouvisse esse choro.
— E ninguém faz nada, vovô?
— A gente faz sim, neto. A gente lembra. A gente conta. Porque contar é manter vivo. Enquanto alguém escutar essa história, a Pohó do Itiúba ainda vive. Não nas águas, mas no coração do povo Kariri-Xocó.
O menino sorriu, como quem guarda um segredo precioso.
E ali, entre o juazeiro e a terra batida, a várzea floresceu mais uma vez — nas palavras de um velho, nos sonhos de uma criança, e no espírito de uma memória que jamais se afoga.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
VERSÃO EM CORDEL: POHÓ DO ITIÚBA, A Várzea do Rio da Canoa
Nas terras de Porto Real,
Na beira do Opará,
Tem uma história sagrada
Que eu venho aqui contar.
É da várzea encantada
Que sabia alimentar.
Pohó do Itiúba
Era seu nome de glória.
Na língua dos ancestrais
Carrega viva memória:
Pohó é a linda várzea,
Itiúba, a velha história.
"Iti" quer dizer o rio,
"Ubá", canoa a remar.
"Do" é o que une os dois,
Pra quem quiser decifrar:
Várzea do Rio da Canoa,
Um nome pra se guardar.
Sentado à sombra do juazeiro,
Mainã, velho contador,
Chamava o neto Iruan
Com ternura e muito amor:
— Vem cá, menino curioso,
Ouve o que diz o avô.
— Lá, onde a água reinava,
A vida era uma canção.
Marreca, paturi e garça
Voavam em procissão.
E os peixes nas enchentes
Pulavam com devoção.
— Mandi, piau e sarapó,
Jundiá, bagre, camarão...
Davam de comer a todos
Naquela imensa região.
Mais de três mil famílias
Tinham fartura e pão.
— Era festa pros bichinhos,
Jacaré, lontra e furão.
Capivara, guaxinim,
Raposa em procissão.
E os jabutis sonhadores
Iam devagar no chão.
Mas veio a mão do governo
Com promessa e divisão.
Em setenta e cinco, a várzea
Caiu na desapropriação.
Virou projeto de arroz
E de irrigação.
Dividiram em trezentos
Pequenos lotes iguais.
Deram terras a famílias,
Mas tiraram muito mais.
Porque a várzea antes viva
Virou chão artificial.
— Meu neto, a terra chorou,
O rio calou sua voz.
Mas se a gente conta a história,
Ela ainda vive entre nós.
Enquanto houver memória,
A várzea nunca se vai.
Iruan olhou pro velho
Com brilho no coração.
E jurou guardar a várzea
Como viva tradição.
Pois quem escuta com alma
Faz parte da criação.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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