Um Conto Sobre as Canoinhas de Brinquedo
Na velha Rua dos Índios, ainda ecoam os murmúrios do tempo na Lagoa do Cordeiro — Dzurineiró, como os antigos Kariri-Xocó a chamam em sua língua. Ali, entre as águas calmas e as memórias guardadas, resistem não só algumas moradias indígenas, mas também lembranças vivas de uma infância moldada pelas mãos da terra, da madeira e da água.
Era antes de 1978. A lagoa fervilhava de risos, brincadeiras e sonhos flutuantes. As crianças, pequenas e inquietas, se reuniam às margens para brincar de Ubapiné Dzurió — “Canoinhas da Lagoa”, como se dizia em voz clara e alegre. “Ubapiné” vinha da antiga palavra tupi “ubá”, que significava canoa, enquanto “Dzurió” nascia do reflexo das águas da lagoa onde o vento soprava histórias ancestrais.
Para dar vida à brincadeira, havia um ritual de respeito e admiração. As crianças corriam até Zé Taré, o velho mestre da madeira, um marceneiro indígena conhecido por sua sabedoria na arte de esculpir. Com mãos pacientes e olhos que pareciam ver dentro dos troncos, ele escolhia cuidadosamente raízes leves da timbaúba — aquela árvore do nome tupi cujas raízes brancas, chamadas tinga, boiavam como sonhos prontos para navegar.
Ali, nas mãos de Zé Taré, nasciam as canoinhas: pequenas, leves, moldadas com delicadeza e sempre prontas para correr as águas como se tivessem alma. As crianças então enfeitavam suas embarcações com pedacinhos de pano — velas improvisadas — ou penas de galinha e peru, recolhidas do quintal. Pintavam as canoinhas com cores vivas, traçando nelas símbolos e esperanças.
A grande corrida começava. Todos esperavam o vento certo, e com um gesto solene, as canoinhas eram lançadas à lagoa. Quem atravessasse primeiro a extensão da Dzurineiró, levada pela brisa, ganhava o orgulho de ser o campeão daquele dia. Mas, na verdade, todos ganhavam. Porque naquela corrida, mais que competição, o que corria era a memória do povo Kariri-Xocó.
Era uma forma das crianças reviverem em miniatura as canoas do grande Opará — o São Francisco — que, todos os anos, no último domingo de fevereiro, cortava as águas em homenagem ao Bom Jesus dos Navegantes. Nessa festa, os adultos deslizavam em grandes canoas de panos coloridos, revivendo uma tradição ancestral dos povos ribeirinhos.
Hoje, aqui e acolá, ainda se pode encontrar uma ubapiné esquecida, guardada com carinho por alguém que não deixou morrer a lembrança. Mas a corrida de canoas grandes ainda vive, cortando as águas do Opará como testemunho vivo da resistência e da beleza dos povos do rio.
Porque enquanto houver correnteza, vento e memória, haverá também canoinhas cruzando a lagoa.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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