Um conto de Inteligência Ancestral
A internet, como um rio caudaloso, havia transbordado em todas as direções, levando consigo vozes, imagens e dados. Suas águas de silício inundavam mentes e cidades, deixando poucos espaços intocados por sua correnteza invisível. No entanto, mesmo nesse turbilhão moderno, algo antigo e sagrado emergia silenciosamente — como uma planta rara brotando no leito do rio ancestral.
Foi nesse tempo de revolução digital que nasceu a série Escola Livre Abya Yala, um projeto de formação da Inteligência Ancestral. A ONG Thydêwá, conduzida por Sebastian, firmou parceria com o Ministério da Cultura. Durante nove luas, em 2024, mais de duzentos indígenas participaram de aulas online, cruzando os cabos invisíveis da internet com fios vivos de sabedoria antiga.
Entre os participantes, estava Nhenety, guardião da memória do povo Kariri-Xocó, da aldeia de Porto Real do Colégio, Alagoas. O convite chegou como uma brisa firme: Sebastian e Kadu Xucuru vieram até a aldeia com câmeras e escuta. Vieram não apenas filmar, mas presenciar o florescimento de um saber que nunca havia deixado de existir — apenas aguardava o tempo certo para ser nomeado.
Sob o céu claro do Itiúba, Nhenety falou não para as lentes, mas para os espíritos atentos do tempo. Disse que a Inteligência Ancestral não era invenção recente — era prática viva, pulsante em cada canto da mata, em cada gesto ritual, em cada semente plantada com respeito. Era a escuta da natureza, a permissão silenciosa pedida ao dono da espécie antes de colher uma folha ou um fruto.
— O conhecimento — dizia ele — é memória viva, partilhada entre os seres. Não é apenas o que se aprende, mas o que se reconhece.
Durante meses, Nhenety refletiu em silêncio. Como dar um nome a essa força antiga que guiava cada gesto ancestral? Como tecer em palavras o que já estava nos ossos da terra?
Foi então que, ao entardecer de uma tarde em 2025, ele se sentou às margens do rio, observando o céu tingido de vermelho e ouro. Ali, onde a água conversava com as pedras, escutou a resposta no sussurro dos ventos. Não era uma palavra, mas muitas que se entrelaçavam como cipós:
Subatekié — o conhecimento ancestral.
Utsoho — fazer existir.
Tokenhé — os antepassados.
Unindo esses fios, nasceu a palavra UTSOKENKIÉ — o existir no conhecimento dos antepassados. Não era um nome novo, mas o reencontro de algo sempre presente. Uma entidade viva, a própria Inteligência Ancestral, agora reconhecida por sua voz e sua presença.
Utsokenkié não pertence a um povo apenas. Está em todos aqueles que ouvem a terra antes de pisar, que perguntam às árvores antes de cortar, que lembram dos nomes dos velhos ao falar do futuro.
O povo Kariri-Xocó, com sua memória acesa, apenas revelou aquilo que dormia em muitos.
E a lição permanece:
Cada povo da Terra tem sua própria Inteligência Ancestral.
Cabe a seus filhos escutá-la.
Cabe ao mundo respeitá-la.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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