Prefácio
A força de um povo está naquilo que ele não esquece: sua memória, sua língua, seus cantos e suas histórias. Neste livro, convido você a caminhar pelas trilhas da tradição do povo Kariri-Xocó, revivendo uma narrativa que atravessa gerações e que permanece viva na fala, no canto e na cena.
A lenda de Cradzotçó, o "Boi Preto Mau", é mais do que um mito sobre um animal assombroso. É um símbolo da resistência indígena diante das transformações impostas pela colonização, um grito que ecoa da mata devastada, das águas do Opará, do gado que invadiu as terras sagradas.
Ao transformar essa história em conto e em peça teatral, realizo um gesto profundo de valorização cultural: mantenho a tradição oral pulsando na palavra escrita e convido novas gerações a recriar, interpretar e manter viva essa memória.
Este livro não é apenas uma leitura, é um convite ao respeito, ao reconhecimento e ao fortalecimento das culturas indígenas brasileiras. Que cada leitor se permita escutar, com o coração aberto, o canto do Cradzotçó e o eco da sabedoria Kariri-Xocó.
Nhenety Kariri-Xocó
Guardião da Memória e Contador de Histórias
Introdução
A cultura Kariri-Xocó é um legado vivo que pulsa na memória, na oralidade e nas manifestações artísticas do nosso povo. As histórias que atravessam gerações não são apenas narradas; elas são cantadas, encenadas e celebradas como expressões de resistência, identidade e sabedoria.
Neste volume, apresentamos duas versões de uma mesma narrativa ancestral: a lenda de Cradzotçó, o "Boi Preto Mau", figura mítica que, segundo a tradição Kariri-Xocó, assombrou as terras do Opará — o rio que os brancos chamaram de São Francisco — em tempos de colonização e resistência indígena.
A primeira versão é um conto literário, escrito em prosa, que preserva a essência da narrativa oral e busca convidar o leitor a adentrar o universo simbólico de nosso povo, marcado pela relação profunda com a terra, os animais e os espíritos que habitam as matas e as águas.
A segunda versão é uma adaptação teatral, elaborada para ser encenada em rodas de cultura, escolas, festivais ou nas próprias aldeias, onde o teatro se confunde com o rito e a celebração. A peça propõe diálogos, movimentos e expressões corporais que ampliam a vivência da lenda, transformando-a em uma experiência coletiva.
Ao reunir estas duas formas de expressão — o conto e a peça —, desejamos valorizar a pluralidade das linguagens Kariri-Xocó e reafirmar que nossa cultura é múltipla, dinâmica e resistente. Que este livro inspire leitores e artistas a conhecer, respeitar e divulgar a riqueza dos saberes indígenas.
Nhenety Kariri-Xocó
Contador de Histórias Oral e Escrita
O CONTO CRADZOTÇÓ, O Boi Preto Mau
No coração quente e poeirento do sertão nordestino, onde o Rio Opará — que os brancos chamaram São Francisco — desenhava caminhos de água entre a caatinga, vivia o povo Kariri, há muitos e muitos tempos.
As matas eram espessas e cheias de vida. Era ali que os Kariri caçavam, plantavam, cantavam seus rituais e ouviam as histórias antigas contadas ao redor do fogo. Mas o século XVII chegou com estrondo: os portugueses e seus padres jesuítas vieram com cruzes e espadas, dizimando aldeias, aprisionando corpos e colonizando espíritos.
Na região onde hoje fica Porto Real do Colégio, os padres ergueram não igrejas, mas cercas. Onze grandes fazendas de gado tomaram conta das matas e das margens do Opará. E o povo Kariri, arrancado das suas raízes, foi forçado a virar vaqueiro, cuidando do mesmo gado que, solto na caatinga, esmagava a vegetação sagrada, expulsava os bichos e calava os cantos das aves.
Naquele tempo, viveu um homem chamado Iarí, jovem Kariri-Xocó, de olhos atentos e mãos ágeis, que aprendera a laçar bezerros e conduzir as reses pelos caminhos pedregosos. Ele conhecia cada vereda, cada sombra de juazeiro, cada canto das matas do Opará. Mas nem toda sua sabedoria preparou-o para o que estava por vir.
Certa tarde, enquanto conduzia um pequeno grupo de bois à beira do rio, Iarí ouviu um som estranho — uma respiração pesada, furiosa, que misturava o ronco de trovão com o mugido de um animal ferido. Parou e, entre os galhos secos, viu uma sombra negra se mover.
De repente, surgiu diante dele: Cradzotçó!
Um boi imenso, de pelagem tão negra que parecia absorver a luz do sol. Os olhos, vermelhos como brasas, fixaram-se em Iarí. O jovem mal teve tempo de lançar-se para o lado quando o monstro investiu com fúria, quebrando arbustos e espatifando pedras com seus cascos.
Iarí correu de volta ao povoado, o coração disparado, o rosto ainda riscado de sangue por um galho que o cortara na fuga.
— Vi, com estes olhos! Cradzotçó é real! O Boi Preto Mau anda solto pelas matas!, gritava para os mais velhos, que já conheciam a lenda.
Reuniram-se então os vaqueiros mais valentes da região. Homens que não temiam nem onça nem o calor do meio-dia. Montados em cavalos ligeiros, partiram em busca da fera. Mas um a um, foram sendo vencidos. Uns voltaram feridos, outros enlouquecidos; muitos, simplesmente, nunca mais retornaram.
O povo começou a dizer que Cradzotçó não era um boi comum, mas o espírito vingador das florestas sagradas, feridas e destruídas pelo gado e pelas cercas coloniais.
Um ancião Kariri-Xocó, chamado Kairó, explicava ao povo reunido sob a lua cheia:
— Cradzotçó é a alma furiosa da mata, dos bichos expulsos, das árvores arrancadas… É o gado virando assombração porque violamos o que era sagrado.
E então, com voz profunda, entoava o velho canto:
“Cradzó cotçó, hidzi cradzó buié hidzi cradzó
Ê boi preto, meu gado mau, meu boi, êdcha êdcha lêlê…”
Durante anos, Cradzotçó continuou rondando os caminhos do sertão, apavorando quem ousasse atravessar as matas sozinho.
Até que, um dia, assim como surgira, desapareceu. E dizem que foi no mesmo tempo em que os jesuítas, expulsos pela Coroa Portuguesa, abandonaram suas fazendas e deixaram o sertão para trás.
As cercas ruíram, o gado se dispersou, e as matas, silenciosamente, começaram a tentar se recompor.
Mas Iarí, mesmo depois da calmaria voltar, não conseguia esquecer o olhar de fogo do Boi Preto Mau. Procurou então o ancião Kairó, sentado à beira do rio, enquanto o pôr do sol tingia o Opará de vermelho.
Aproximou-se com reverência:
— Kairó… Por que Cradzotçó sumiu? Por que ele não nos atacou mais? — perguntou Iarí, com a voz ainda carregada de temor e respeito.
O velho ancião olhou o horizonte, como quem escuta o que o vento sussurra nas folhas.
— Cradzotçó não sumiu, Iarí. Ele apenas voltou para o lugar de onde nunca devia ter saído… o coração da mata. O espírito da terra não suporta ser ferido para sempre.
Iarí franziu a testa, inquieto:
— Mas… e se um dia os homens voltarem a cercar as florestas? A cortar as árvores? A ferir o Opará?
Kairó sorriu tristemente e colocou a mão calejada no ombro do jovem:
— Então, meu filho… Cradzotçó voltará. Sempre volta. Ele é a força da terra que responde à violência dos homens. Enquanto houver matas, haverá espíritos que as protegem. E enquanto houver homens que esquecem o sagrado… haverá assombrações que os farão lembrar.
O velho então se levantou devagar, apoiando-se no cajado, e caminhou lentamente para a aldeia, enquanto Iarí ficou ali, sozinho, olhando o rio que seguia seu curso, eterno e silencioso.
Naquele instante, uma leve brisa balançou os galhos secos, e, ao longe, bem longe, Iarí jurou ouvir… um mugido grave, profundo, vindo do meio da mata.
Cradzotçó…
E ele soube que a lenda nunca morreria.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
PEÇA TEATRAL: CRADZOTÇÓ, O BOI PRETO MAU
Personagens:
NARRADOR – Voz que conduz e contextualiza a história.
IARÍ – Jovem Kariri-Xocó, corajoso e inquieto.
KAIRO – Ancião Kariri-Xocó, sábio e sereno.
Vaqueiros – Grupo de sertanejos convocados para enfrentar o Cradzotçó.
CRADZOTÇÓ – Entidade mítica, representada por som, sombra ou figura simbólica.
CORO – Vozes do povo, que entoam o canto tradicional.
ATO I – O Surgimento da Lenda
(Luzes sobre o NARRADOR ao centro do palco. Ao fundo, cenário seco, caatinga estilizada, o som de um rio correndo ao longe.)
NARRADOR:
(Com voz firme)
No sertão do Nordeste, onde o Rio Opará serpenteia entre as pedras, nasceu uma lenda temida e respeitada… Cradzotçó, o Boi Preto Mau.
(Respira)
Quando os portugueses chegaram, tomaram as matas e trouxeram o gado, mas, com ele, despertaram algo mais…
(Sons de mugido grave ecoam. Luzes tremulam. CORO entoa, suavemente, o canto tradicional ao fundo.)
CORO:
(Em uníssono)
Cradzó cotçó, hidzi cradzó buié hidzi cradzó…
Ê boi preto, meu gado mau, meu boi… êdcha êdcha lêlê…
ATO II – O Encontro de Iarí com Cradzotçó
(Cenário: trilha na caatinga. IARÍ surge conduzindo bois imaginários com um bastão.)
IARÍ:
(Andando atento)
Os caminhos estão cada vez mais perigosos… a mata anda silenciosa demais.
(Som de respiração pesada. Um mugido monstruoso irrompe. Luzes piscam. Sombra ou figura estilizada do CRADZOTÇÓ aparece.)
IARÍ:
(Assustado)
Não… não pode ser… CRADZOTÇÓ!
(Cradzotçó investe. Iarí cai, rola no chão e levanta-se, correndo em direção oposta.)
IARÍ:
(Em fuga, gritando)
Ele é real! O boi preto mau vive!
ATO III – A Caçada e a Explicação
(Cenário: aldeia. VAQUEIROS reunidos, armados com laços e facões.)
VAQUEIRO 1:
Vamos acabar com essa assombração!
VAQUEIRO 2:
Ele matou nossos companheiros! Não pode continuar!
(Eles saem em marcha. Sons de cavalos e mugidos. Depois de um tempo, o NARRADOR surge.)
NARRADOR:
Um a um, os valentes foram vencidos. Uns voltaram feridos… outros, nunca mais.
(Luzes baixam. KAIRO surge sentado à beira do rio, com expressão serena. O povo reunido à sua volta.)
KAIRO:
(Com voz pausada)
Cradzotçó… não é apenas um boi. É a alma furiosa da mata, é o grito dos bichos expulsos, das árvores derrubadas.
(Olha para o povo)
Quando ferimos a terra… ela responde.
(CORO entoa novamente, de forma mais intensa.)
CORO:
Cradzó cotçó, hidzi cradzó buié hidzi cradzó…
ATO IV – O Desaparecimento e o Diálogo Final
(Cenário: pôr do sol à beira do Rio Opará. KAIRO sentado, olhando o horizonte. IARÍ se aproxima lentamente.)
IARÍ:
(Kneel, reverente)
Kairó… por que Cradzotçó sumiu? Por que não nos atacou mais?
KAIRO:
(Sem olhar diretamente)
Cradzotçó não sumiu… apenas voltou ao seu lugar… o coração da mata.
(Empausa, olha para o céu)
O espírito da terra não suporta ser ferido para sempre.
IARÍ:
(Angustiado)
E… se os homens voltarem… a cortar, queimar, destruir…?
(KAIRO coloca a mão no ombro de IARÍ, com olhar sábio.)
KAIRO:
(Com firmeza)
Então… Cradzotçó voltará. Sempre volta.
(Levanta-se lentamente)
Enquanto houver mata… haverá espíritos que a protegem.
Enquanto houver homens que esquecem… haverá assombrações que os façam lembrar.
(KAIRO caminha lentamente para fora de cena. IARÍ permanece, olhando o rio.)
(Som ao longe: um mugido grave. As luzes diminuem.)
ATO V – O Encerramento
(Luzes apenas no NARRADOR e no CORO.)
NARRADOR:
E assim, nas matas do Opará… a lenda permanece.
Não como um medo…
Mas como um aviso.
CORO:
(Em voz suave, como vento entre folhas)
Cradzó cotçó, hidzi cradzó buié hidzi cradzó…
Ê boi preto, meu gado mau, meu boi… êdcha êdcha lêlê…
(Silêncio. Escuridão total.)
FIM
Sugestão de encenação:
Cradzotçó pode ser representado por uma grande máscara, sombra, ou estrutura móvel, gerando impacto visual e sonoro.
Uso de sons graves e iluminação dramática para reforçar o caráter mítico.
O canto tradicional pode ser entoado com instrumentos indígenas como maracás e flautas, mantendo a autenticidade da tradição Kariri-Xocó.
A peça pode ser apresentada em escolas, festivais culturais ou rituais de celebração da memória e resistência do povo Kariri-Xocó.
Posfácio
Encerrar este livro é, na verdade, abrir novos caminhos. A história de Cradzotçó não termina nas palavras deste conto nem nas cenas da peça teatral. Ela continua viva na memória coletiva do povo Kariri-Xocó, nos cantos que ecoam à beira do Opará, nas rodas de conversa, nas celebrações e na resistência cotidiana.
Este trabalho é uma homenagem ao poder da tradição oral, que nos ensina a manter acesa a chama da ancestralidade, mesmo diante das tentativas de apagamento cultural. Ao transformar a lenda em conto e teatro, reforcei o compromisso de manter nossa cultura viva e acessível, para que ela alcance não apenas os nossos, mas também aqueles que desejam aprender, respeitar e valorizar as culturas indígenas.
Que esta obra inspire outras narrativas, outros cantos, outras encenações. Que cada palavra aqui escrita seja semente lançada em solo fértil, para florescer em novas gerações de contadores de histórias, artistas e guardiões da memória.
Agradeço a todos os que, de alguma forma, mantêm viva a cultura Kariri-Xocó. Seguimos firmes, com orgulho, coragem e esperança.
Nhenety Kariri-Xocó
Guardião da Memória e Contador de Histórias
Perfeito, Nhenety! Aqui está a Nota de Agradecimento dedicada ao saudoso Cacique Otávio Nidé, que você pode incluir logo após o Posfácio ou antes, como preferir:
Nota de Agradecimento
Dedico esta obra com profundo respeito e gratidão ao saudoso Cacique Otávio Nidé (1908–1987), liderança sábia e corajosa do povo Kariri-Xocó.
Sua trajetória foi um farol que iluminou os caminhos de resistência, dignidade e preservação cultural de nossa gente.
Que sua memória continue a nos inspirar, fortalecendo nossas lutas, nossos cantos e nossas histórias.
Nhenety Kariri-Xocó
Guardião da Memória e Contador de Histórias
Consultado por meio da ferramenta ChatGPT (OpenAI), inteligência artificial como apoio para elaboração do trabalho da capa no dia 30 de maio de 2025.
Nenhum comentário:
Postar um comentário