Na beira do São Francisco, onde as águas murmuravam antigas canções, havia uma pequena rua de terra batida. Nela se alinhavam humildes casas de taipa, algumas cobertas com palha de arroz, outras com telhas quebradas que testemunhavam os ventos do tempo. Era a chamada Rua dos Índios, no coração de Porto Real do Colégio — mais que um endereço, era nossa aldeia, onde viviam 230 almas, guardiãs de um passado profundo e quase esquecido.
Maria Tomasia, velha anciã Natu de fala mansa e olhos que guardavam séculos, costumava sentar-se à sombra de um juazeiro e contar às crianças o que seus avós haviam vivido. Ela dizia:
— “Quando a Vila de Colégio nasceu, em 1876, o Império se esqueceu de nós. As terras que eram nossas foram tomadas, e fomos empurrados para as margens... Não havia mais proteção, nem justiça, apenas resistência.”
Os pequenos escutavam em silêncio, sentindo o peso do que era ser Kariri, Xocó, Karapotó, Pankararu, Fulni-ô ou Natu naquele lugar. Mas também sentiam o calor da união que os mantinha vivos, mesmo após tanta perda. Ali, na simplicidade da rua, cada casa era um oco de resistência. Cada quintal, um terreiro de memória.
Foi no ano de 1944, sob um céu de fevereiro, que chegou um homem diferente. O agente do SPI chamado Cícero Cavalcante de Albuquerque, veio com a ajuda de alguns amigos do governo, fundou o Posto Indígena de Alfabetização e Tratamento Padre Alfredo Dâmaso. Não era muito, mas era um começo. Havia cuidado, havia palavras, havia um olhar humano — algo que há muito tempo não sentiam vindo de fora.
O Padre Alfredo Dâmaso, amigo dos indígenas do Nordeste já conhecia os Kariri de Porto Real do Colégio desde 1942, por várias viagens empreendidas pelo Pajé Francisquinho, Iraminõ, Jurandi, Firmino e outros, para Bom Conselho, PE, onde residia. Agora o padre ordenou a Cícero Cavalcante para instalar o posto, escola e enfermaria.
Ali, na Rua dos Índios — nossa aldeia entre cercas e calçadas — crescia um novo sopro de esperança. Crianças aprendiam a escrever, curandeiras trocavam saberes com enfermeiras, e os casamentos entre etnias fortaleciam os laços de uma nova identidade. Um povo plural, nascido da dor e da convivência, de braços dados entre os que ali buscaram refúgio: Kariris do Baixo São Francisco, seus parentes e aliados.
Por muitos anos, o posto carregou o nome de seu fundador. Mas em 1967, com a criação da FUNAI, o governo deu-lhe um novo nome: Posto Indígena dos Kariri de Porto Real do Colégio. Ainda era uma rua, ainda era barro, mas a alma da aldeia seguia firme, plantada nos quintais e nos olhos de sua gente. No tempo da FUNAI a rua foi reformada, ganhou uma nova aparência, chegou água encanada — as coisas foram melhorando.
As dificuldades, porém, eram sócio-culturais: viver na rua sem poder praticar com liberdade seus rituais, sem as fontes de argila para fazer a cerâmica, base de sua economia ancestral.
Foi só em 1978, quando a comunidade deixou a Rua dos Índios e caminhou rumo à Fazenda Modelo, que um novo ciclo se abriu. O nome então mudou de vez: Kariri-Xocó. Um nome que não apagava o passado, mas o reunia. Um nome que trazia em si as vozes de todos os que ali haviam vivido, amado, lutado.
Hoje, o vento ainda passa por aquela antiga rua. Já não há tantas casas de taipa, mas se alguém escutar bem, poderá ouvir a voz de Maria Tomasia sussurrando nas árvores:
— “O que somos não se escreve em papéis. Está no barro da nossa casa, na raiz dos nossos nomes, no sangue que pulsa ao som do maracá.”
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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