Por Nhenety Kariri-Xocó
O sol ainda se espreguiçava no horizonte quando o silêncio da Rua dos Índios foi rompido pelo som cadenciado dos passos, das rodas de carroças e dos cantos ancestrais. Era 28 de outubro de 1978, dia do ritual sagrado do Ouricuri. Como faziam há séculos, os Kariri-Xocó se preparavam para adentrar a mata fechada, onde a floresta viva guardava o segredo dos seus antigos. Mas naquela manhã, o silêncio tinha outro peso. Um pressentimento rondava o ar: talvez não fosse apenas mais uma ida ao sagrado, mas um retorno definitivo às raízes.
Durante os dias de ritual, longe da opressão da cidade, o espírito do povo se fortaleceu. Quando o Ouricuri chegou ao fim, ninguém quis voltar. No dia 31 de outubro de 1978, os anciãos reuniram-se à sombra de um velho juazeiro. Ali, entre palavras ancestrais e olhares firmes, decidiram: não mais voltariam à Rua dos Índios. A vida entre muros e asfaltos não mais cabia em suas almas.
A antiga Fazenda Modelo, onde seus avós haviam vivido antes da expulsão em 1924, era o destino. Um território marcado pela memória, pelo suor e pelas lágrimas. A retomada não era um simples movimento de casas, mas uma declaração de dignidade.
Nos meses de novembro e dezembro, a estrada de terra virou rio de esperança. Carroças puxadas por bois e jumentos formavam procissões de resistência. Camas, redes, panelas, colchões, bancos e esteiras iam sendo levados pouco a pouco. Havia quem levasse os pertences equilibrados na cabeça, ou empurrando carros de mão. Era como se a aldeia se construísse com cada passo, com cada suspiro.
Na chegada, construíram barracas de lona e palha. Ocupavam galpões antigos, casas esquecidas pela fazenda. Cada canto ocupado era abençoado. Cada parede erguida, um pedaço de futuro fincado no solo ancestral.
Ali, no coração da velha Fazenda Modelo, os Kariri-Xocó começaram de novo. Não como invasores, mas como filhos retornando à terra-mãe. E a terra, em silêncio, os acolheu com o cheiro forte do barro e o vento do São Francisco sussurrando histórias.
Assim nasceu a Aldeia Kariri-Xocó. Não de cimento e ferro, mas de coragem, memória e sonho.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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