quarta-feira, 18 de junho de 2025

DE FAZENDA MODELO PARA ALDEIA KARIRI-XOCÓ






Conto de memória por Nhenety Kariri-Xocó


Naquela manhã morna de outubro, os primeiros raios de sol atravessavam o véu da mata, banhando a velha estrada de terra com luz dourada. As folhas dos eucaliptos sussurravam segredos antigos, como se saudassem os passos firmes de um povo que retornava à terra dos sonhos.




Os Kariri-Xocó saíram do ritual do Ouricuri com o coração aquecido e a alma acesa. Era 31 de outubro de 1978. Mas, naquele dia, algo estava diferente. Não voltaram à Rua dos Índios, onde viviam havia tantos anos. Tomaram um novo rumo. Um rumo antigo.


A caminhada foi silenciosa, mas carregada de força. A cada passo, os mais velhos sentiam o chão reconhecer seus pés. O destino era a Fazenda Modelo, aquela terra outrora arrancada de suas mãos, mas jamais esquecida.





Por décadas, a Fazenda Modelo foi chamada por muitos nomes: Campo Experimental das Plantas Têxteis em 1924, Campo das Sementes nos anos 1940, Fazenda Escola em 1952, e, por fim, Fazenda Modelo até 1978. Nomes impostos por outros, funções criadas sem consulta, mas a terra... ah, a terra sempre soube a quem pertencia.





Ali havia o portão de ferro que rangia como se lamentasse o tempo, a casa grande silenciosa, os antigos galpões de madeira, a escola esquecida entre árvores frutíferas, a baía e a maternidade, os tanques da piscicultura, os quartos dos antigos funcionários e o mirante da caixa d’água. Tudo ali contava histórias, tudo ali esperava por um novo tempo.


Os Kariri-Xocó entraram como quem reencontra um parente perdido. Não foi uma invasão, foi um retorno. As crianças correram pelos campos, os mais velhos tocaram nas paredes e choraram baixinho. As árvores, com seus galhos antigos, pareciam inclinar-se em reverência. A memória dos antepassados sorria naquele vento quente.


Naquela terra havia dor, sim. Havia o registro histórico de quando, entre 1924 e 1932, o governo havia expropriado as terras indígenas, vendendo-as a colonos. Mas também havia resistência. A terra guardava em silêncio a esperança enterrada por gerações. E ali, em 1978, essa esperança brotou de novo, viva e forte.




Naquele 31 de outubro, a Fazenda Modelo deixou de ser apenas lembrança. Tornou-se novamente lar. E ali, nas proximidades da Rua dos Índios e da cidade de Colégio, nasceu a Nova Aldeia Kariri-Xocó. Um marco. Um gesto de reconquista. Um recomeço.


Hoje, ao descrever esses fatos, sinto que revivo cada momento. A escrita é minha terapia, meu ritual de memória, minha forma de ensinar. Porque contar a história do nosso povo é plantar sementes na mente e no coração das futuras gerações.


E assim, a antiga Fazenda Modelo tornou-se o chão fértil onde floresceu o sonho dos Kariri-Xocó.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





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