Um Conto do Baixo São Francisco
Memória de um encantamento no Baixo São Francisco, onde a luz e as palavras atravessam o tempo.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
Prefácio
Contar histórias é como lançar sementes no rio do tempo. Algumas afundam, outras viajam longe, e algumas florescem nas margens mais inesperadas.
Esta é uma dessas histórias. Vem de minha terra, de meu povo Kariri-Xocó do Baixo São Francisco. É uma memória que brilha feito luz sobre pano — e como dizemos em nossa língua Kariri, Hinetoklité.
Escutem bem: não é apenas sobre cinema. É sobre o encanto da primeira vez, sobre o olhar que vê o mundo se transformar. É sobre palavras que resistem, que atravessam o tempo e ainda falam aos nossos corações.
O conto
No Baixo São Francisco, onde o rio espelha o céu e as cidades crescem à beira de suas águas, há lugares de história viva.
Entre eles, Penedo e Propriá se destacavam como portais por onde as novidades do Brasil chegavam primeiro — como se o progresso descesse o rio em canoas de luz.
Defronte a Propriá, em Porto Real do Colégio, moram o povo indígena Kariri-Xocó — também conhecidos dos colegienses, como eram chamados. Sempre atentos, suas vidas se entrelaçavam com as marés de modernidade que batiam à porta.
Foi num dia de sol manso, em 1948, que Maria de Lourdes — a quem todos chamavam de Indaiá — atravessou o rio, acompanhando seu pai, Euclides.
Iam vender cerâmica no mercado de Propriá, como tantas vezes já haviam feito. Mas, naquela tarde, algo novo esperava por ela.
Havia um burburinho nas ruas: um tal de cinema.
O Cine Odeon reluzia com letreiros e uma fila de gente curiosa.
Sem saber bem do que se tratava, Indaiá entrou. Sentou-se na cadeira de madeira, com os olhos arregalados.
Quando as luzes se apagaram e a tela brilhou, ela sentiu um calafrio: imagens dançavam num grande pano, e dali saíam vozes, risos, sons...
Era como se o espírito da luz estivesse contando histórias.
Na volta à aldeia, correu a contar à mãe, Maria Pureza:
— Mamãe, vi um negócio chamado cinema! — disse, ofegante. — É como um pano onde a luz fala...
Maria Pureza sorriu e respondeu:
— Nós chamamos isso de Hinetoklité... Luz que fala no pano. Vem do nosso Kariri: hine, que é luz; toklikli, falar; cruté, pano.
Assim, a palavra correu entre os nossos.
O Hinetoklité passou a ser conhecido, encantando adultos e crianças.
Em Propriá, além do Odeon, o Cine Propriá também projetava seus feitiços luminosos.
Mais tarde, em 1959, surgiu o Cine Fernandes, pelas mãos do empresário Fernandinho.
Não demorou muito para que o Hinetoklité atravessasse o rio e chegasse também a Porto Real do Colégio.
Primeiro, na Fazenda Sementeira, do Ministério da Agricultura, onde um pequeno cinema servia aos funcionários e suas famílias.
Mas foi só nos anos de 1970 que o cinema se abriu ao povo da cidade.
O Cine Fernandes começou a trazer sessões aos finais de semana.
No salão paroquial ou no antigo prédio da Escola Frei Damião, as pessoas se reuniam, de olhos brilhantes, para ver o pano encantado.
Lembro como se fosse hoje: o primeiro filme que vi foi Paixão de Cristo.
Eu e meu irmão Antônio assistimos juntos, de mãos suadas de emoção.
A cada cena, a cada fala, o Hinetoklité nos levava para longe, para dentro das histórias.
No final dos anos 1970, lá por 1978, as sessões pararam.
O salão ficou vazio, o pano emudecido.
Mas as memórias ficaram.
E até hoje, quando a luz do projetor se acende em qualquer sala, ou mesmo quando assisto um filme em tela pequena, é como se ouvisse o sussurro de minha mãe:
"Hinetoklité... a luz que fala no pano."
E assim, de geração em geração, essa palavra segue brilhando — como as histórias que o rio leva e traz.
Nota do autor
Este conto nasce de lembranças vividas e contadas no seio de meu povo, o Kariri-Xocó, de Porto Real do Colégio, Alagoas. Hinetoklité é uma palavra de nossa língua ancestral, que traduz a maravilha de ver o cinema chegar a nossas terras — a luz que fala no pano. Que este registro preserve não só a memória de um tempo, mas também a riqueza das palavras que guardam nosso olhar sobre o mundo.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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