Um conto do povo Kariri-Xocó
Autor: Nhenety KX
Apresentação
Netsoddayé — Ver o Mundo Todo é um conto nascido da tradição oral do povo Kariri-Xocó.
Por meio da jornada de um menino que deseja se tornar contador de histórias, este texto nos convida a refletir sobre o valor da escuta, da sabedoria coletiva e da visão compartilhada de mundo.
Cada pessoa carrega um pedaço da realidade. O verdadeiro contador de histórias é aquele que costura essas visões com respeito e sensibilidade.
Que este conto, simples e profundo, inspire outros a ouvirem com mais atenção e a contarem com mais verdade.
Dedicatória
Dedico este conto ao meu povo Kariri-Xocó,
às vozes ancestrais que nos ensinaram a ouvir,
aos velhos e às velhas que guardam o mundo em palavras,
e às crianças que um dia levarão adiante as nossas histórias.
Desde pequeno, Nhenety carregava um desejo no peito: queria ser um contador de histórias. Sonhava em guardar as memórias do seu povo e levá-las adiante como sementes levadas pelo vento.
Certa manhã, tomou coragem e procurou o velho cacique Otávio Nidé, que morava bem em frente à sua casa. Ele era respeitado como um grande mestre das histórias e dos saberes ancestrais.
— Tio Otávio, disse com os olhos cheios de brilho, quero ser contador de histórias como o senhor. O que preciso fazer?
O cacique sorriu com ternura e respondeu:
— Para isso, você precisa conhecer Netsoddayé.
Nhenety arregalou os olhos:
— O que é essa palavra, tio?
— Netsoddayé é “ver o mundo todo” — explicou o cacique, com voz serena, no Kariri a palavra netso é ver, enquanto radda o mundo e buyé poder ser grande.
O menino suspirou, preocupado:
— Então... eu nunca vou conseguir. Como poderei ver o mundo todo?
O velho sábio repousou a mão em seu ombro e falou:
— Nosso povo Kariri-Xocó é o nosso mundo. E cada pessoa carrega um pedaço dele. Vá, fale com os mais velhos. Ouça com atenção. Assim você começará a ver o mundo.
Renovado de esperança, Nhenety partiu em sua jornada.
Seu primeiro encontro foi com sua avó, a ceramista Júlia Muirá, que moldava com carinho a argila da terra.
— Vovó, perguntou com doçura, como é o mundo para você?
A avó sorriu e respondeu:
— Para mim, o mundo é a terra de onde retiro a argila. É nela que moldo potes e panelas de barro. O mundo nasce da terra e retorna para ela.
Mais adiante, em outro dia, Nhenety cruzou caminho com o caçador Kandará, que caminhava com passos leves pela mata.
— Senhor Kandará, perguntou, como é o mundo para o senhor?
Kandará respondeu:
— O mundo é a floresta. É onde caço tatu, capivara, preá, nambu. É um mundo de folhas, sombras e sons. Cada passo é um encontro com a vida.
Dias depois, à beira do rio, Nhenety encontrou o pescador Moaci.
— Senhor Moaci, perguntou com curiosidade, como é o mundo para o senhor?
O pescador, enquanto ajeitava suas redes, respondeu:
— O mundo, para mim, é o rio. Ele é cheio de peixes que alimentam minha família. É um mundo de águas que nunca param, sempre em movimento.
O tempo passou, e Nhenety cresceu. Por muitos anos, conversou com seu povo: ouviu as histórias dos anciãos, dos artesãos, dos curandeiros, das crianças. Guardou cada palavra com carinho.
Um dia, já rapaz, viu o velho cacique Nidé sentado sob uma árvore, agora com os cabelos brancos como nuvem.
Sentou-se ao seu lado e contou tudo o que havia aprendido — os mundos que conhecera em cada pessoa.
O cacique ouviu em silêncio. Depois, com um sorriso sábio, disse:
— Nhenety, o mundo do nosso povo ninguém vê por completo. Cada pessoa enxerga um lado, um canto, um fragmento. O contador de histórias precisa andar todo o círculo, ouvir cada um, costurar esses fragmentos. Só assim terá uma visão maior do mundo.
Nhenety compreendeu, enfim, que a verdadeira arte de contar histórias não estava em conhecer tudo, mas em ouvir com o coração aberto. E que, em cada voz, morava um pedaço do Netsoddayé.
Naquele dia, ela se levantou com uma certeza: já havia começado a ver o mundo todo.
Agora era sua vez de espalhar essas histórias como sementes.
Pois quem ouve para aprender, um dia contará para ensinar.
Autor : Nhenety KX
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