quinta-feira, 5 de junho de 2025

IBÁMERAIPU, Carro de Ferro Fumegante








Posfácio



Carrego no peito uma saudade bonita daquele tempo em que meu pai vendia peixe ao pessoal da ferrovia. Era cedo que ele saía, com a tarrafa ao ombro e o balaio cheio de esperança, seguindo até onde os trilhos cortavam a terra do nosso povo. Lá, entre o cheiro forte do peixe e a fumaça do trem, ele trocava palavras e sorrisos com os homens da ferrovia, enquanto o Ibámeraipu soltava seu apito ao longe, como quem também fazia parte da nossa vida.


Eu, ainda menino, ficava olhando ele partir, e até hoje, quando fecho os olhos, escuto o som do trem e sinto o vento quente daquele tempo. Aquelas cenas ficaram guardadas no fundo da minha alma, como um filme antigo que nunca se apaga.


Escrevi este conto movido por essa saudade — saudade do meu pai, das histórias que ele me contava, das manhãs à beira do Opará, e de tudo que o Ibámeraipu representou: mudança, coragem, mas também a marca profunda que ficou na nossa terra e no nosso coração.


Que esta história siga adiante, como o rio, como o trem, como a memória viva do nosso povo.



Dizem os mais velhos, com os olhos perdidos no horizonte e a alma ancorada no tempo, que muito antes de o ferro riscar a terra, o silêncio morava entre as árvores de Porto Real do Colégio. Ali, onde o Opará — o grande rio São Francisco — seguia seu caminho antigo, os Kariri pisavam leve o chão, colhiam os frutos da mata e escutavam apenas o chamado dos pássaros e o canto das águas.


Mas, numa manhã quente de 1944, o vento trouxe um sussurro diferente, um rumor de mudança:


— Vem aí um carro de ferro...


As palavras corriam mais velozes que o próprio trem, atravessando matas e veredas, sopradas pelos Fulni-ôs que vieram de Pernambuco, homens fortes e calejados, que ajudavam a abrir a estrada de ferro no peito da terra.


Antônio Cruz e Sebastião Ribeiro eram dois desses andarilhos do progresso. Sob a sombra das mangueiras, entre goles d’água e calos nas mãos, contavam aos Kariri:


— É um bicho de ferro, que cospe fumaça e range como uma onça ferida.


Os mais jovens arregalavam os olhos, como quem vê o futuro pela primeira vez. As mulheres, de lenços na cabeça, seguravam firme as cuias e se benziam. E os anciãos... ah, os anciãos! Estes apenas se entreolharam e, após longo silêncio, selaram a profecia:


— É o Ibámeraipu... o carro de ferro fumegante.


E assim ficou batizado, não com o nome frio dos brancos — "Maria Fumaça" —, mas com o nome quente da língua Kariri, onde as coisas têm alma e os sons são feitos de memória.


Em 1950, quando o Ibámeraipu finalmente chegou, a terra estremeceu como nunca antes. De longe, o seu canto metálico se espalhava:


Tchac-tchac... tchac-tchac...


Depois, o grito:


FUUUUUUUU...


O monstro negro surgiu, cuspindo fumaça e deixando atrás de si um rastro de fuligem. As rodas cortavam os trilhos como facas afiadas no corpo da terra.


O povo todo correu à estação, recém-nascida, ainda cheirando a madeira nova. Uns aplaudiam, outros temiam. As crianças se escondiam atrás das saias das mães, enquanto os homens apertavam os chapéus, sem saber se saudavam ou amaldiçoavam aquela besta de ferro.


O Ibámeraipu trouxe o progresso: gentes novas, mercadorias, notícias do mundo além das matas. Trouxe também trabalho aos Kariri — estivadores, carroceiros, homens do porto. Mas trouxe, sobretudo, a cicatriz.


Os trilhos rasgaram o território como lâmina impiedosa, dividindo terras, quebrando caminhos, interrompendo a dança dos passos antigos. O Ibámeraipu abriu a estrada do mundo, mas fechou veredas da alma.


E como tudo que corta, um dia também feriu fundo.


Foi em 1968, quando o Ibámeraipu fez-se tragédia.


Cadete era um homem da terra, indígena vaqueiro, desses que conheciam o cheiro do mato, o galope do cavalo, o mugido do boi e o silêncio das madrugadas. Usava chapéu de couro, gibão surrado, e carregava consigo a coragem moldada pelo sol.


Naquele dia, a notícia correu como raio:


— O gado escapou! Tá na linha do trem!


Sem hesitar, Cadete montou no cavalo e partiu, riscando a paisagem como flecha viva. O cavalo relinchava, os cascos batiam firme no chão seco.


— Arreda! Arreda! — gritava Cadete, assobiando forte, batendo o laço no ar.


Os bois mugiam, confusos, com os olhos arregalados pela luz que se aproximava.


E então, ao longe, como uma sentença, o som:


Tchac-tchac... tchac-tchac...


Depois, o grito seco:


FUUUUUUUU!


Cadete não fugiu. Tentou ainda empurrar o bezerro mais teimoso, mas o ferro não se dobra à vontade do homem. O Ibámeraipu veio impiedoso, arrastando o destino, surdo ao grito, cego à vida.


O choque foi breve, como são todas as mortes que não se espera.


Quando o povo chegou, encontrou Cadete caído, abraçado ao solo que tanto amava. O chapéu de couro repousava, mudo, ao seu lado.


Na aldeia, o pranto se espalhou como o rio em cheia. As mulheres entoaram cantos baixos, enquanto os anciãos, olhos marejados, lembraram-se da profecia antiga:


— O Ibámeraipu é o carro que leva...


E levou.


Depois disso, o trem continuou seu curso, por mais alguns anos, até que, em 1972, ergueram a ponte sobre o Opará, na grande estrada BR-101, que rasgou o Brasil de Norte a Sul. O Ibámeraipu foi, aos poucos, silenciado.


Os trilhos enferrujaram, a estação apodreceu, a fumaça se desfez no tempo.


Mas dizem — e os anciãos juram — que, nas madrugadas silenciosas, quando a lua cheia ilumina o mato e o vento sopra por entre as ruínas da velha estação, ainda se ouve:


Tchac-tchac... tchac-tchac...


E, ao longe, como um suspiro que nunca termina:


FUUUUUUUU...


Alguns dizem que é só o vento.


Mas nós sabemos: é o Ibámeraipu, o carro de ferro fumegante, que nunca partiu de verdade...


E que, para sempre, carrega na sua fumaça a memória dos que ficaram, dos que lutaram, dos que se foram — como Cadete —, mas nunca deixaram de existir na alma desta terra.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





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