O rio Opará sempre correu dentro de mim, como correu dentro de minha mãe, Indaiá — conhecida pelos brancos como Maria de Lourdes Ferreira Poité. Era ela quem me contava, com olhos cheios de lembrança, das grandes canoas que rasgavam as águas do São Francisco: Canindé, Marialva, Cordilheira… Eram como extensões do próprio rio, moldadas pelas mãos de nossos ancestrais, deslizando com a força de quem conhece e respeita a correnteza.
Depois vieram os vapores, os navios que cruzavam o baixo São Francisco levando carga e gente, vida e fé. Minha mãe falava muito do Encomendador Peixoto e do Penedinho — e eu, ainda menino, vi o Encomendador uma vez, numa procissão fluvial de Bom Jesus dos Navegantes em Propriá. As águas brilhavam com fogos e artifícios, e o rio parecia celebrar sua própria força.
Mas, no meu tempo de menino e depois adolescente, o que ficou tatuado na memória foi a passagem das grandes lanchas: Tupan, Tupy e Tupigy.
Quando a Tupan passava, primeiro ouvíamos a sua buzina, forte e grave, como o chamado de um deus antigo. Corríamos todos nós, os jovens indígenas da Rua dos Índios, à beira do Opará, tábuas grandes nas mãos, prontos para montar as ondas que ela deixava. Era mais que brincadeira: era um rito, uma celebração da vida e da tradição, uma dança com as águas que sempre nos alimentaram e protegeram.
O nome da lancha não era acaso. Tupan, o deus criador na mitologia Tupi, sempre habitou estas margens do Baixo São Francisco, onde antes de nós vieram e viveram Tupinambá, Caetés, Kariri, Dzubukuá, Xocó… Povos que, como nós, tinham o rio como caminho e casa.
Segundo os mais velhos, aquelas três lanchas eram de uma empresa da família Barreto, lá de Neópolis, Sergipe, fundada na década de 1950, com a Tupan como pioneira. Elas cruzavam as águas como novas canoas, motores substituindo remos, mas mantendo a mesma função ancestral: aproximar as pessoas, conectar margens, manter viva a tradição da navegação.
Na nossa aldeia, o índio Tononé também fazia parte dessa história, com suas duas embarcações: a Nordeste e a Nova Iraci Tononé. Resistência flutuando, como as histórias que se recusam a afundar.
Mas o tempo é rio que nunca volta. Em 1972, a construção da ponte sobre o São Francisco ligou margens, mas separou o homem do seu barco. A navegação foi se apagando, e o que restou foram memórias. A última viagem da Tupan foi em 1979, levada pela grande enchente — como um encantado que volta às águas profundas de onde veio.
Ainda hoje, quando as festas de Bom Jesus dos Navegantes enchem o Opará de barcos e fé, sinto que, de algum modo, a tradição resiste. O rio segue, sempre seguirá. E nós, que um dia surfamos nas ondas deixadas pela Tupan, sabemos: quem brincou com a onda do deus das águas carrega para sempre o balanço do rio no corpo e a tradição da navegação no coração.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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