sábado, 28 de junho de 2025

PENHÓ UOHOIETE, Na Enxurrada Tudo Vem






Era tempo de chuva, daqueles que o céu parece ter memória antiga e resolve se derramar inteiro sobre a terra sedenta. O grande rio Opará, que corta o sertão como veia viva do mundo, começava a crescer. Recebia águas de longe, dos braços que o alimentam: Panema, Capivara, Traipú... Todos vinham trazendo mais volume, mais correnteza, mais vida.


Numa manhã de abril, com o sol tímido escondido atrás das nuvens, eu vi o velho Teipó em silêncio, olhando o rio do alto do barranco. A postura dele era de quem escutava mais do que via. Aproximei-me com respeito e perguntei:


— O que foi, meu tio Teipó?


Sem tirar os olhos da correnteza, ele respondeu com voz grave:


— Os rios estão enchendo o Opará... Está chovendo muito no sertão.


Olhei ao redor, confuso. Ali, não havia sinal de chuva.


— Mas como o senhor sabe, se aqui não está chovendo?


Teipó estendeu o braço, apontando para a água turva e veloz.


— Veja os troncos que boiam... Veja os aguapés vindo em bando. Quando eles chegam assim, é sinal certo de chuva forte lá pra cima. O rio fala. Só precisa saber escutar.


Meus olhos seguiram os gestos do velho. Era verdade. A cada instante, novos pedaços de pau, raízes, folhas, e até pequenos galhos chegavam boiando. E com eles, às vezes, vinham visitantes inesperados: preás agarrados com unhas miúdas, teiús de olhos arregalados, tatus enrolados nos troncos como se fossem folhas secas. Eram caças trazidas pelas águas, sobreviventes das margens alagadas.


Chamei os outros meninos da aldeia. Fomos recolher as madeiras que desciam rio abaixo. Juntamos tudo para preparar as fogueiras das festas juninas que logo viriam. Cada pedaço de lenha, cada galho era mais que combustível — era presente do Opará.


E foi então que ouvi, saindo da boca do velho homem, aquela expressão que carrego até hoje:


— Penhó Uohoiete... Na enxurrada, tudo vem.


Naquelas palavras, não havia só constatação. Havia saber. Porque ali, no ventre das águas, o rio não trazia apenas madeira e bicho — trazia presságios, notícias, alimento e lições.


Sim, na enxurrada tudo vem. É a natureza que fala. E nós, se ouvirmos com o coração, aprendemos a linguagem do mundo.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





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