sexta-feira, 18 de julho de 2025

ETÇAMYÁ UANIEÁ, Parentes Indígenas






Um Conto Sobre Parentesco 


Na aldeia às margens do rio, o pequeno Dzõ corria entre as árvores, animado com o que iria aprender naquele dia. Ele havia sido escolhido para passar um tempo com o sábio Padzú ayby eri Tokenhé, seu bisavô. Era um velho de fala mansa e olhos que guardavam muitas histórias.


Ao chegar à maloca de palha, o menino foi recebido por Dé ayby eri Nhiké, sua bisavó, que teceu para ele um colar de sementes vermelhas.


— Sente-se aqui, Dzõ, meu sobrinho, — disse o velho com um sorriso. — Hoje vamos conversar sobre nossa família, nossos Etçamyá Uanieá, nossos parentes indígenas.


Tokenhé, o avô, chegou logo em seguida trazendo raízes e frutas da mata, acompanhado de sua esposa, Nhiké, a avó bondosa que sabia os cantos antigos.


Então, a Dé, a mãe de Dzõ, chegou com seu companheiro Padzú, o pai do menino, trazendo farinha fresca. Junto deles, vinham os irmãos de Dé: o brincalhão Paidenhé, o tio, e a doce Dedenhé, a tia que sabia cuidar das ervas.


Ali perto, seus primos Dzedzé, tanto os meninos quanto as meninas — pois o nome era o mesmo para todos — jogavam peteca e riam alto, convidando Popó, o irmão mais velho de Dzõ, e Biké, sua irmã, para brincar.


Enquanto as crianças se afastavam, os adultos continuavam conversando. Dzõ escutava tudo, mesmo de longe.


— Quando Biké casar, seu esposo será o Myté, meu genro — disse Padzú, sorrindo para a filha.

— E a esposa de Popó será a Mytedéá, nossa nora — completou Dé, acariciando os cabelos brancos de sua mãe.


— E quem é o Dzacá? — perguntou o menino curioso, voltando correndo.

— O Dzacá é o sogro, pai da esposa — respondeu Tokenhé.

— E a Dzacadé é a sogra, mãe da esposa — acrescentou Nhiké, com sua voz serena.


Dzõ ficou um pouco confuso com tantos nomes. Então o Irandete, seu padrinho, chegou montado num cavalo bonito, e logo atrás vinha a Idzedeté, sua madrinha, trazendo doces de macaxeira.





— Também somos parte de tua grande família, menino — disse o Irandete.


No final da tarde, chegou o novo companheiro de Dedenhé, o Usaruntsó, noivo da filha de Dé. E a Usarunghí, noiva do filho de Paidenhé, veio junto com os pais dela. Havia festa, havia celebração.


No meio de tanta conversa, o menino perguntou:


— E quando a mulher já tem filhos e casa com outro homem, como chamamos?


Nhiké explicou:


— Esse homem é o Padzunyentá, o padrasto.

— E se for o contrário, ela é a Deyentá, a madrasta, completou Dé.


— E os filhos que não nasceram dos dois juntos? — perguntou Dzõ, curioso.

— São os Nhuraenentá, os enteados — respondeu Padzú, com carinho.


O sol se escondia atrás das montanhas quando o velho Tokenhé concluiu:


— Cada nome é mais do que uma palavra. É afeto, é memória, é laço que não se perde. Os nomes dizem quem somos entre os nossos. Lembra-te sempre disso, meu neto.


E Dzõ, com o colar de sementes no peito e o coração cheio de sabedoria, entendeu que conhecer os nomes da família era, também, conhecer o próprio caminho no mundo.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




TSEHO TÇOHÓ BYTÉ, Muitos Povos, Um Somente






Um Conto da Formação Étnica


No alto da colina, onde o Rio Opará murmura suas memórias, vivia o povo Kariri na aldeia sagrada Natiá Ebadzú. Era ali que Woroy, o Guardião das Memórias, ensinava às crianças os caminhos antigos, os cantos do tempo e os nomes sagrados das coisas.


— Aqui é onde tudo começou, meus pequenos — dizia ele, cercado de olhos atentos —. O som do nosso povo ecoava forte, como o tambor da terra.


Um dia, chegaram homens de roupas compridas e cruzes ao pescoço. Vinham de longe e chamavam-se Wareá, os padres. Trouxeram palavras novas e planos de barro e pedra.


— Venham, Kariri, vamos construir uma nova aldeia! — disseram.

Chamaram-na Natiacró, a aldeia civilizada de alvenaria.


Ymakaré, o ancião Kariri, hesitou.


— Mas e a alma da colina? E o vento do Opará?


— Levaremos conosco! — respondeu Tamin, o mais jovem dos guerreiros. — Somos raiz, não pedra. Onde pisarmos, floresce a memória.


Na nova aldeia, não estavam sozinhos. Chegaram os Karapotó, Aconã e Tupinambá. O povo Kariri os acolheu com respeito e os chamou de Popó, os Irmãos Mais Velhos.


— Vieram antes de muitos. São troncos da mesma árvore — disse Woroy.


Anos se passaram. Outros vieram do Maní — terras distantes, além dos rios. Os Natu, Xocó e Fulni-ô se aproximaram, com seus cantos e sementes.


— São nossos Etçamyá, Parentes de Sangue — disse Ymakaré com um sorriso. — Chamaremos de Iwobohó, Irmãos Menores, pois chegaram depois, mas são parte de nós.


A aldeia-mãe, Natiadé, cresceu com todas essas chegadas. Crianças nasciam com nomes de diferentes línguas, corações misturados como frutas na mesma cuia. Havia casamentos entre os povos, alianças seladas com dança, farinha e canto.


— Estamos nos tornando Byté Bihé, Um Somente — cantava Tamú, a guardiã da língua. — Cada povo, uma nota. Juntos, somos canção.


E assim foi. A terra se tornou Cuná, de todos, para sempre. A língua se fez ponte. A cultura, semente que floresce em muitas cores.


Tseho Tçohó Byté — muitos povos, um só coração batendo forte sob o céu do Opará, Somos Kariri-Xocó originário pluriétnico, muticulral e plurilinguístico.





Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





quinta-feira, 17 de julho de 2025

BOHÉ SUBATEKIÉ, A Transmissão do Conhecimento






Um Conto Sobre Conhecimentos 


Na aldeia de Natiá, onde as árvores da caatinga se curvam ao vento e os rios cantam histórias antigas, o jovem Tiré, de olhos curiosos como os de um beija-flor, caminhava ao lado de seu avô Duboré, um dos últimos Duboherí – mestre da sabedoria ancestral.


Era o dia da grande fogueira. Ao entardecer, todos se reuniam ao redor do fogo sagrado para ouvir histórias, aprender os ofícios e cantar os cantos do povo. Ali começava mais um ciclo de aprendizado. Era o Bohé, o momento de ensinar. Era o Subatekié, a semente da sabedoria sendo entregue de coração a coração.


— Tiré, hoje tu vais aprender como os antigos caçavam com arco e badoque — disse Duboré, oferecendo ao neto um pequeno galho reto da jurema-branca. — Mas antes, escuta o canto do vento. Ele te mostra por onde corre o veado, por onde salta a cutia.


Tiré pegou o galho, cheirou a madeira, e seu avô sorriu. Ali não era só o arco que estava sendo passado. Era o olhar, o silêncio da espera, o respeito pela floresta.


Enquanto isso, a avó Inhaná, mulher sábia das panelas e da cura, ensinava às meninas mais novas a modelar a argila: potes, panelas, pratos, tudo ganhava forma sob as mãos das anciãs. Ela dizia:


— A argila é como a nossa memória. Mole no começo, mas firme quando queimada no fogo da vida.


No roçado, o tio Kauiri mostrava aos rapazes como plantar o milho e a mandioca. Fazia o gesto com as mãos, enquanto dizia:


— O solo escuta o nosso coração. Se plantar com raiva, ele se fecha. Se plantar com amor, ele brota até no tempo seco.


Mais adiante, sob uma árvore grande, a jovem Yaratá ajudava as crianças a confeccionar bonecas de milho, arcos de brinquedo, e pinturas com urucum. O riso das crianças se misturava aos sons dos maracás e buzos, que os adolescentes aprendiam a construir com o velho Tamoré, o fabricante de música.


À beira do rio, pescadores experientes mostravam como usar a kuwú, o jereré, e as tarrafas, enquanto contavam histórias dos peixes encantados e da mulher-água que só aparece em noites de lua cheia.


E à noite, sob o luar, o contador de histórias Paraní se levantava. Sua voz era macia como o vento da madrugada, e dizia:


— Tudo isso que aprenderam hoje, crianças, é só metade do saber. A outra metade está no sonho. Dormir também é aprender.


Assim se formava o conhecimento do povo Kariri-Xocó. Não havia caderno, mas havia memória. Não havia prova, mas havia prática. E a aldeia inteira era escola, onde cada canto ensinava algo: das conchas e ossos dos animais, colhidos pelos catadores de ornamentos, às danças sagradas do Toré, aos cantos que ecoavam no corpo pintado.


Tiré, que começou o dia ouvindo o vento, dormiu nessa noite com o coração cheio. Sonhou que era um grande Duboherí, ensinando à próxima geração.


E assim o ciclo continuava.


No povo de Natiá, ensinar era viver.

E viver era não deixar morrer o que os ancestrais plantaram com tanto amor.




Autor : Nhenety Kariri-Xocó 




BOHÉ WOROBÜ, Ensinar Contar






Um Conto Sobre Aprender a Contar


Era fim de tarde na aldeia. O vento soprava suave entre as palhas das malocas e o cheiro do mingau de milho se misturava ao som dos pássaros voltando para seus ninhos. Sentada à sombra de um juazeiro, a menina Tainá observava a avó Mainá trançar um cesto de folhas de carnaúba. Seus olhos brilhavam de curiosidade.


— Mainá... como é que a gente aprende a contar na nossa língua? — perguntou, com a voz doce de quem carrega sede de aprender.


A anciã sorriu com ternura, seus olhos guardavam memórias antigas.


— Ah, minha netinha, vou te ensinar do jeito que aprendi com minha mãe, e ela com a mãe dela... Isso se chama Bohé Worobü, o ensino de contar. Nosso povo sempre usou o corpo para aprender, porque o corpo é a nossa primeira escola. Olhe aqui minhas mãos — disse, estendendo os dedos finos e firmes — elas são chamadas Mysã. E os nossos pés, que nos carregam pelo mundo, são os By. Com eles, a gente chega até o número vinte.


Tainá sorriu, prestando atenção enquanto a avó começava a mostrar:


— Um dedo é bihé...


A menina repetiu com alegria:


— Bihé!


— Dois é wacháni... três, wachanidikié... quatro, sumarã orobae... — e a avó continuava, apontando para cada dedo.


— Cinco? — perguntou Tainá, contando os dedos da mão.


— Ah, cinco já é especial. Dizemos: mŷ bihé misã saí, que quer dizer "levar uma mão para ele". — Mainá riu, tocando a mão da neta.


— E se eu quiser dizer seis?


— Então acrescentamos mais um dedo à mão. Dizemos mŷreprí bubihé misã saí, levar uma mão com mais um dedo para ele.


— E sete?


— Sete é mŷreprí wacháni misã saí, uma mão mais dois dedos. E assim por diante...


Enquanto ensinava, Mainá pegava pequenas sementes e colocava uma a uma sobre o cesto, ajudando Tainá a visualizar os números.


— Quando a gente chega em dez, dizemos mŷcribae misã saí, levar todas as mãos para ele. E se usamos também os pés, chegamos a vinte: mŷcribae misã idehó ibŷ saí, levar todas as mãos incluindo os seus pés para ele.


Tainá ficou maravilhada.


— Então se eu estiver com minha prima, nós duas juntas, podemos contar até quarenta?


— Exatamente! — respondeu Mainá, orgulhosa. — Nosso povo sempre foi criativo. Se tiver mais pessoas, podemos contar o mundo inteiro com as mãos e os pés.


As duas riram juntas. O sol começava a se esconder no horizonte, tingindo de ouro o céu do sertão. Naquele instante, Tainá não aprendeu só a contar. Aprendeu que números também carregam memória, afeto e ancestralidade.


E assim, sob o juazeiro, uma geração passava seu saber à outra — como o rio que segue, levando consigo a canoa dos antigos.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




quarta-feira, 16 de julho de 2025

TAYU NUNÚ UANIE, Dinheiro Na Língua Indígena






Um Conto Sobre o Dinheiro 


Nas margens do rio Opará, em meio às sombras das mangabeiras e ao som dos pássaros sagrados, vivia o pequeno Jurandí, um menino curioso do povo Kariri-Xocó. Desde cedo, ele se encantava pelas histórias que sua avó Mainá, a mais velha contadora da aldeia, sussurrava ao pé do fogo.


— Vó Mainá, o que é esse papel que o homem da cidade me deu quando vendi meu colar de sementes? — perguntou Jurandí, estendendo uma nota amassada.


A anciã segurou o papel com cuidado, como quem segura um animal arisco, e sorriu com os olhos sábios.


— Esse, meu neto, é o Tayu, como chamamos o dinheiro na nossa língua. É coisa de fora... não existia no tempo de nossos avôs mais antigos.


— E para que serve, vó? — quis saber Jurandí.


— Serve pra tudo, ou quase tudo... hoje, para pegar peixe com anzol de ferro, ou para comprar farinha quando a roça não deu, tem que ter Tayu.


Mainá então puxou um saco velho de pano e retirou de dentro algumas cédulas coloridas, cada uma com um bicho diferente.


— Vê, Jurandí? Essas figuras são bichos que conhecemos bem. Este aqui, por exemplo — disse ela, apontando a tartaruga — é o Sãmbá. Ele mora nas águas como nós moramos na terra. E vale dois Tayus.


Jurandí ficou com os olhos brilhando.


— E esse pássaro branco, vó?


— Esse é a Yeendeçó, a garça dos pântanos, e vale cinco. A arara vermelha é Yeendéar, vale dez Tayus. O mico dourado, Dzicuá, vale vinte. A onça-pintada, que caminha em silêncio pela mata, é Homomocleclé, vale cinquenta. E o peixe do mar é o Mydzé, de cem Tayus. Por fim, o lobo-guará, que só aparece quando o mato está em silêncio, é o Bucuté, e vale duzentos.


— Então, vó, se eu tenho um Tayu Dzicuá, posso trocar por comida?


— Sim, neto, pode. Mas nunca se esqueça: o verdadeiro valor não mora no papel, mora na nossa partilha, na fartura da terra, na sabedoria que carregamos.


Jurandí sorriu, abraçando as palavras da avó. Ele agora sabia que o Tayu era mais do que papel: era também um símbolo da mudança, mas que poderia ser falado em sua própria língua, respeitando os animais e a vida que representavam.


Naquela noite, sentado ao redor do fogo com as outras crianças, Jurandí ensinou:


— Dois reais é Tayu Sãmbá, cinco é Tayu Yeendeçó, e assim vai...


As estrelas sorriram lá do alto.

E a língua Kariri ganhou mais um sopro de vida.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




UANIE AMÍ DZUPODÓ, A Comida Indígena Assada e Cozinhada






Um Conto Sobre a Culinária 


O sol ainda não havia subido por completo no horizonte quando a jovem Yarací se aproximou do terreiro. A fumaça da lenha queimada dançava no ar, trazendo aquele cheiro gostoso de café de barro e mandioca assando. Sua mãe, Mainú, sentada sobre o banquinho de taquara, mexia alguma coisa dentro da velha Runhú, a panela de barro que herdara da avó.


— Mainú, me conta… como era a comida de antes? Como era cozinhar sem geladeira, sem gás, sem colher de alumínio?


A mãe sorriu com doçura e bateu levemente com a colher de pau no lado da panela.


— Ah, minha filha… se tu soubesse quantas palavras cabem dentro de um cheiro… Tu tá sentindo esse? É o Seredu, bolo de mandioca que tua bisa fazia só nos dias de festa.


Yarací se sentou aos pés da mãe, os olhos brilhando.


— E como vocês cozinhavam?


— Com o fogo da terra e a paciência dos antigos. A gente tinha o Crobecá, feito da cabaça. Servia de prato, copo, cuia… Tudo em um só. E o Prebú, também da cuia de coité, era nosso prato vegetal, forte e bonito. A água a gente buscava com o Buiú, aquela cabaça média de pescoço, lembra?


— Aquela que o vô enchia no açude?


— Essa mesma. E os utensílios a gente carregava no Setu e no Tinhé, os cestos de cipó ou taquara, com ou sem alça. Pra peneirar a farinha, usávamos o Kiniki. E quando a gente queria assar carne, peixe, até passarinho, a gente afiava o Babisité, espeto de pau, e punha direto no fogo. Ou então defumava tudo no Badzuru, o moquém — e virava delícia pro dia seguinte.


— Que nomes lindos… — murmurou Yarací.


— Cada nome é uma história, minha filha. O Creyá, por exemplo, era uma técnica linda de assar tubérculo enterrado sob a terra quente. A gente assava o Madzó, o milho verde, direto na brasa. E se fosse pra ferver o Cronhahá, a espiga cozida, ia pra dentro da Runhú, com um pouco de sal e muito amor.


— E os pratos? Tinham de barro também?


— Tinham sim. O Aribá era o prato de barro grande, e o Bepi era menorzinho. Feitos pelas mãos das mulheres. A gente usava o Winá pra abanar o fogo, feito de palha de aricuri. E tinha o Ruño, o pote de barro, também moldado pelas mulheres da nossa aldeia. Cada peça tinha alma.


— E a comida?


— A comida era a terra falando com a gente. A Muicú, a mandioca, virava farinha, beiju, bolo, tapioca. A Sekiki, a carimã, era nossa base. Tinha o Guinhé, o feijão companheiro. O Udjé, os legumes da roça. E a gente plantava tudo na Uanhí, nossa lavoura. Das árvores vinham os Idzá, as frutas doces.


— Vocês faziam vinho?


— Claro. O Nhupy era nosso vinho de milho, feito com fermentação natural. Tinha também o Bydzu, um liquor doce com frutas e ervas. E se sobrasse carne, a gente salgava: virava Riné. Secava no sol, guardava no Merebá, o jirau. Às vezes, virava banquete, às vezes, só memória.


— E ralador, vocês tinham?


— Tínhamos sim, filha. O Erú, feito de madeira com dentes finos, pra ralar coco, raízes, o que fosse.


A panela borbulhou. Mainú apagou o fogo com um leve abano do Winá. Tirou o Seredu da Runhú com as mãos hábeis e serviu um pedaço no Aribá. Entregou à filha com um olhar sereno.


— Hoje você prova com a boca. Um dia vai contar com a alma.


Yarací mordeu devagar. Os olhos se fecharam. Era como se, a cada mordida, ouvisse as vozes dos antepassados, os cantos do mato, os risos ao redor da fogueira.


Ali, no quintal de barro batido, ela descobria que amí e dzupodó não eram só maneiras de preparar alimento. Eram formas de manter viva a memória do povo.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




UANIE EBADZÚ, O Indígena Originário






Um Conto Sobre Kariri Originários


Sob a luz amarela do entardecer, o fogo da aldeia crepitava no centro do pátio, enquanto os pássaros encerravam seu canto. Ali, sentados sobre esteiras de caroá, estavam um jovem curioso e o ancião da memória longa. O jovem, de nome Ysupã, tinha olhos brilhantes e o coração inquieto. Aproximou-se com respeito de Txopé, o mais velho dos contadores de história do povo.


— Txopé, posso lhe perguntar algo? — disse o jovem, enquanto se sentava.


— Sempre, meu neto — respondeu o ancião, com a voz grave como o tambor da terra.


— Como era o indígena Kariri original? Como vivia? Como se vestia? Como lutava e cantava?


Txopé fechou os olhos por um instante e pareceu voltar ao tempo de seus antepassados. Então, com voz firme, começou a falar, como quem evoca os espíritos antigos:


— Uanie Ebadzú, meu neto... O indígena originário. Ele se distinguia pelos seus gestos, sua fala, sua arte e seus adornos. Cada peça em seu corpo contava uma história. Vou te contar...


Puxou de sua memória a primeira imagem.


— No lábio inferior, usava o Tembetá, um adorno inflexível, de madeira ou espinho, que mostrava sua força e maturidade. Não era apenas enfeite — era identidade.


— Amarrado ao corpo, carregava o Dubé, o nosso aió, feito de fibras de caroá ou palha de aricuri. Ali guardava utensílios pessoais, como se levasse parte do lar consigo.


— Os homens fumavam no Paiáwi, o cachimbo feito de pau ou barro, moldado por mãos hábeis como a de um artesão da memória.


— E quando ia à mata, levava o Iarú, a flecha, enfeitada com penas, afiada como a visão do caçador. Para lançá-la, usava o Seridzé, nosso arco, curvado como a lua crescente.


— Para guardar as flechas, havia a Yaru, uma bolsa resistente feita também de caroá. Nas costas, ela dançava com o vento enquanto o guerreiro corria.


— E se o combate era corpo a corpo, usava o Tçoncupy, uma clava pesada, com o poder de abrir caminho ou defender o território.


— Para anunciar os companheiros nas quebradas, tocava o Tçuiru, feito do casco de tatu, soando como o chamado dos antigos.


— Nas festas, agitava o Buibú, nosso maracá, feito de coité. Era mais que música — era a voz da terra nas mãos do pajé.


Ysupã escutava atento, olhos fixos como se visse cada objeto surgir diante de si.


— E como se vestiam, Txopé?


— Pintavam-se, meu neto, com Bukencré, a tinta vermelha do urucum, e com Nhiró, a tinta do jenipapo, que marcava o corpo com grafismos que só os antigos sabiam interpretar. Às vezes, usavam Hebidizancró, carvão ou argila branca no rosto. Pintura é proteção e é fala.


— Homens e mulheres usavam a Sasá, saia feita de aricuri ou pindoba, balançando como folhas ao vento.


— No pescoço, pendia o Bebaté, o colar de sementes, dentes e pedrinhas. E nas orelhas, os Ubadi, brincos e botoques, enfeites de quem respeita o próprio corpo.


— Nas danças do Toré, soava o Tsereró, a gaita feita de embaúba, chamando os espíritos a dançar junto.


— Na cabeça, o guerreiro levava o Keisontsebu, o cocal de penas de aves, sinal de bravura. E nos braços, o Craraisõbó, a braçadeira de penas, leve como vento, firme como coragem.


Txopé então olhou para Ysupã com ternura:


— Ser Kariri é mais que usar cocar, mais que pintar o corpo. É viver em harmonia com os ensinamentos da terra e dos que vieram antes. Tudo o que vestimos, usamos e tocamos tem espírito. E é por isso que digo: o verdadeiro Uanie Ebadzú não se perdeu, ele vive em nós, quando lembramos e contamos como agora.


Ysupã abaixou a cabeça em respeito. O fogo lançava sombras longas no chão, como se os espíritos dos ancestrais dançassem em roda.


— Gratidão, Txopé — disse o jovem, emocionado.


— Leve tudo isso, meu neto. E quando te perguntarem sobre o indígena original, conte como eu contei. E um dia, será tua a vez de ser o ancião que guarda a memória.


E assim, a noite caiu sobre a aldeia, protegida pela sabedoria dos antigos.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó