sábado, 5 de julho de 2025

CRAMYCÁ SAMYONHÉ: A Caixa que Canta Memórias






Um Conto Sobre o Gravador de Fita Cassete 


Na margem sagrada do rio Opará, quando o vento soprava as palavras dos antigos e os pássaros ainda contavam histórias nos galhos das gameleiras, uma novidade chegou à aldeia Kariri-Xocó. Era o ano de 1971. A terra vibrava com os cantos de Toré, e a memória ancestral pulsava forte nos mutirões e nas rodas de conversa à beira do fogo.


Na Rua dos Índios, o velho cacique Tuwaya, de olhar profundo como a noite, escutou os passos de um homem branco. Era Ademir, o chefe do Posto da FUNAI. Nas mãos, trazia uma caixa preta brilhante, com botões e luzinhas. O povo se reuniu curioso.


— O que é isso, Ademir? — perguntou a anciã Tainá, equilibrando uma panela de barro nas mãos.


— É um toca-fitas — respondeu o homem, com um sorriso nervoso. — Ele grava vozes e músicas... também toca sons de outras terras.


O menino Kamurim, que vivia correndo com seu bodoque entre as árvores, olhou encantado. Seu avô, Tuwaya, se aproximou devagar, como quem escuta o espírito da mata antes de atravessá-la.


— Isso tem espírito? — perguntou o velho, tocando o aparelho com os dedos respeitosos.


Ademir riu, mas Tuwaya não. Porque quando ligaram a tal “caixa mágica”, a aldeia inteira ouviu, como se os ecos de um tempo futuro cantassem de dentro dela. Era a voz do próprio Tuwaya gravada, entoando um Toré antigo. E quando o som saiu, as crianças se assustaram, os velhos se emocionaram. Tainá chorou em silêncio.


— Essa caixa... ela guarda as vozes? — perguntou Kamurim.


— Ela guarda mais do que vozes — respondeu Tuwaya. — Guarda memória. É uma Cramycá Samyonhé.


A partir daquele dia, o nome do aparelho foi outro. Não mais “toca-fitas”. Mas Cramycá Samyonhé, a Caixa de Fita que Grava, Toca e Canta, como traduziram os anciãos: Cramenu, a caixa; Mymycá, a fita; Samy, a memória; Wonhé, o cantar e o tocar.


Cada canto de mutirão, cada toante de saudação, cada palavra contada por um velho foi registrada naquela caixa. As famílias se reuniam nas noites de lua cheia para ouvir a si mesmas. Era como ouvir os próprios espíritos falar.


Kamurim cresceu ouvindo o mundo sair daquela caixa. Mais tarde, ajudaria na construção civil e no Projeto de Irrigação do Arroz no Itiúba. Ele ganharia o próprio gravador, depois uma televisão, um videocassete... Mas nunca esqueceria da primeira vez que sua voz foi ouvida por todos, vinda daquela “caixa mágica”.


Décadas depois, em uma reunião de memória oral na escola da aldeia, Kamurim, já com cabelos grisalhos, contou às crianças:


— Quando algo novo chega, ele traz mais que novidade... traz encontro. A Cramycá Samyonhé não era só um aparelho. Era um espírito que veio cantar conosco. E hoje... cada um de vocês carrega esse espírito. Gravem suas vozes, contem suas histórias, cantem seus cantos. Porque a memória só vive se for tocada e cantada.


As crianças sorriram. E no fundo da sala, um gravador antigo repousava sobre uma mesa. Silencioso, mas cheio de lembranças.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 






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