Um Conto Sobre a Culinária
O sol ainda não havia subido por completo no horizonte quando a jovem Yarací se aproximou do terreiro. A fumaça da lenha queimada dançava no ar, trazendo aquele cheiro gostoso de café de barro e mandioca assando. Sua mãe, Mainú, sentada sobre o banquinho de taquara, mexia alguma coisa dentro da velha Runhú, a panela de barro que herdara da avó.
— Mainú, me conta… como era a comida de antes? Como era cozinhar sem geladeira, sem gás, sem colher de alumínio?
A mãe sorriu com doçura e bateu levemente com a colher de pau no lado da panela.
— Ah, minha filha… se tu soubesse quantas palavras cabem dentro de um cheiro… Tu tá sentindo esse? É o Seredu, bolo de mandioca que tua bisa fazia só nos dias de festa.
Yarací se sentou aos pés da mãe, os olhos brilhando.
— E como vocês cozinhavam?
— Com o fogo da terra e a paciência dos antigos. A gente tinha o Crobecá, feito da cabaça. Servia de prato, copo, cuia… Tudo em um só. E o Prebú, também da cuia de coité, era nosso prato vegetal, forte e bonito. A água a gente buscava com o Buiú, aquela cabaça média de pescoço, lembra?
— Aquela que o vô enchia no açude?
— Essa mesma. E os utensílios a gente carregava no Setu e no Tinhé, os cestos de cipó ou taquara, com ou sem alça. Pra peneirar a farinha, usávamos o Kiniki. E quando a gente queria assar carne, peixe, até passarinho, a gente afiava o Babisité, espeto de pau, e punha direto no fogo. Ou então defumava tudo no Badzuru, o moquém — e virava delícia pro dia seguinte.
— Que nomes lindos… — murmurou Yarací.
— Cada nome é uma história, minha filha. O Creyá, por exemplo, era uma técnica linda de assar tubérculo enterrado sob a terra quente. A gente assava o Madzó, o milho verde, direto na brasa. E se fosse pra ferver o Cronhahá, a espiga cozida, ia pra dentro da Runhú, com um pouco de sal e muito amor.
— E os pratos? Tinham de barro também?
— Tinham sim. O Aribá era o prato de barro grande, e o Bepi era menorzinho. Feitos pelas mãos das mulheres. A gente usava o Winá pra abanar o fogo, feito de palha de aricuri. E tinha o Ruño, o pote de barro, também moldado pelas mulheres da nossa aldeia. Cada peça tinha alma.
— E a comida?
— A comida era a terra falando com a gente. A Muicú, a mandioca, virava farinha, beiju, bolo, tapioca. A Sekiki, a carimã, era nossa base. Tinha o Guinhé, o feijão companheiro. O Udjé, os legumes da roça. E a gente plantava tudo na Uanhí, nossa lavoura. Das árvores vinham os Idzá, as frutas doces.
— Vocês faziam vinho?
— Claro. O Nhupy era nosso vinho de milho, feito com fermentação natural. Tinha também o Bydzu, um liquor doce com frutas e ervas. E se sobrasse carne, a gente salgava: virava Riné. Secava no sol, guardava no Merebá, o jirau. Às vezes, virava banquete, às vezes, só memória.
— E ralador, vocês tinham?
— Tínhamos sim, filha. O Erú, feito de madeira com dentes finos, pra ralar coco, raízes, o que fosse.
A panela borbulhou. Mainú apagou o fogo com um leve abano do Winá. Tirou o Seredu da Runhú com as mãos hábeis e serviu um pedaço no Aribá. Entregou à filha com um olhar sereno.
— Hoje você prova com a boca. Um dia vai contar com a alma.
Yarací mordeu devagar. Os olhos se fecharam. Era como se, a cada mordida, ouvisse as vozes dos antepassados, os cantos do mato, os risos ao redor da fogueira.
Ali, no quintal de barro batido, ela descobria que amí e dzupodó não eram só maneiras de preparar alimento. Eram formas de manter viva a memória do povo.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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