Introdução
A Idade Média (séculos V a XV) constituiu-se em um período de intensa simbologia, no qual mitos, lendas e crenças populares se entrelaçaram com a religiosidade cristã e com tradições pagãs, gerando um universo mítico que inspirou narrativas literárias posteriores. Castelos, cavaleiros, monstros, dragões, bruxas, gnomos, heróis e reinos fantásticos formaram uma cosmologia hierárquica e mítica, marcada por dualidades entre o bem e o mal, a luz e as trevas. Este artigo descreve essa atmosfera, sua cronologia simbólica e sua permanência na literatura, tanto no Oriente quanto no Ocidente.
Cosmologia e atmosfera mítica medieval
A cosmologia medieval refletia uma ordem hierárquica inspirada na filosofia cristã e na tradição clássica. O mundo era dividido em três esferas principais:
Celeste – morada de Deus, anjos e santos;
Terrena – espaço dos homens, reis, cavaleiros e povos;
Infernal – domínio de demônios, monstros, bruxas e criaturas sombrias.
Essa visão era reforçada pela estrutura feudal: reis, senhores, cavaleiros e camponeses reproduziam uma ordem social rígida que se refletia também no plano mítico. Os castelos surgiam como símbolos de poder e defesa contra forças externas, tanto humanas quanto sobrenaturais.
Hierarquia e seres lendários
Reinos e castelos: O lendário Rei Artur e a Távola Redonda representam o ideal cavaleiresco, ao lado de fortalezas como Camelot. No Oriente, narrativas persas e árabes descrevem palácios míticos como o de Shāhnameh, de Ferdowsi (século X).
Monstros: Dragões simbolizavam o caos e o mal, enfrentados por heróis como São Jorge. Lobisomens e grifos representavam a fusão do humano com o animal.
Bruxas: figuras perseguidas pela Inquisição, mas também guardiãs de saberes antigos.
Gnomos e elfos: oriundos de tradições germânicas e nórdicas, vistos como espíritos da terra e guardiões de tesouros ocultos.
Heróis: cavaleiros templários, Roland (na Canção de Rolando), Beowulf na tradição anglo-saxônica, e Sigurd (ou Siegfried) na mitologia germânica.
Linha do tempo descritiva da cosmologia mítica medieval e sua influência literária
Oriente
Século X – Pérsia: Ferdowsi compõe o Shāhnameh (Livro dos Reis), obra monumental que reúne mitos persas, batalhas cósmicas e heróis lendários como Rostam. Este épico estabelece uma ponte entre a tradição oral e a escrita, preservando a cosmologia zoroastriana.
Séculos XI-XIII – Mundo Islâmico: Consolidação das Mil e Uma Noites, onde aparecem reis sábios, magos, gênios (djins), cidades encantadas e reinos de maravilhas. Essa coletânea torna-se a maior expressão do imaginário mágico árabe e persa.
Ocidente
Século VIII – Inglaterra Anglo-Saxônica: O épico Beowulf narra o enfrentamento de um herói contra monstros como Grendel e um dragão. É uma das primeiras obras da literatura medieval europeia a estruturar o combate entre herói e forças sombrias.
Século XI – França Carolíngia: Surge a Canção de Rolando, exaltando o heroísmo cristão contra os sarracenos, e colocando os cavaleiros como protetores do reino e da fé.
Século XII-XIII – França e Alemanha: Desenvolve-se o Ciclo Arturiano com Chrétien de Troyes e Wolfram von Eschenbach. Camelot, a Távola Redonda, o Graal e a busca pela pureza tornam-se símbolos da cavalaria mítica.
Século XIII – Itália: Dante Alighieri escreve a Divina Comédia, estruturando o céu, o purgatório e o inferno como uma cosmologia hierárquica, com anjos, demônios e almas em penitência.
Renascimento e Barroco
Século XVI – Itália: Ludovico Ariosto publica Orlando Furioso, onde cavaleiros enfrentam monstros e bruxas em um mundo repleto de encantamentos.
Século XVII – Inglaterra: John Milton escreve Paraíso Perdido, narrando a queda de Lúcifer e o embate cósmico entre Deus e as forças rebeldes.
Modernidade
Século XIX – Alemanha: Os Irmãos Grimm recolhem contos populares de tradição medieval, com princesas, bruxas, lobos, gnomos e florestas encantadas.
Século XIX – Inglaterra: William Morris e George MacDonald renovam a fantasia com cenários de inspiração medieval, pontes diretas para a literatura fantástica moderna.
Contemporaneidade
Século XX – Inglaterra: J. R. R. Tolkien cria O Senhor dos Anéis, fundamentando uma mitologia própria, mas inspirada em cosmologias medievais nórdicas e cristãs. C. S. Lewis, em As Crônicas de Nárnia, funde alegoria cristã e fantasia cavaleiresca.
Século XXI – Global: George R. R. Martin, em As Crônicas de Gelo e Fogo, recria uma Idade Média sombria, com castelos, reinos, bruxas e dragões, dialogando diretamente com a atmosfera mítica medieval.
Conclusão
A cosmologia mítica medieval estruturou-se como um universo hierárquico, no qual seres lendários, castelos, reinos e heróis conviviam em tensão com monstros e forças sombrias. Do Oriente ao Ocidente, essa atmosfera inspirou narrativas épicas, religiosas e populares, que atravessaram séculos e consolidaram a fantasia como gênero literário. Escritores modernos e contemporâneos herdaram essa tradição, remodelando-a para novos contextos, mas preservando sua essência: a eterna luta entre luz e trevas, ordem e caos, heróis e monstros.
Referências
ARIAS, José Manuel. Mitos y leyendas medievales. Madrid: Alianza Editorial, 2008.
DANTE ALIGHIERI. A Divina Comédia. São Paulo: Editora 34, 2019.
FERDOWSI. Shāhnameh: The Persian Book of Kings. New York: Penguin Classics, 2006.
GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhelm. Contos maravilhosos infantis e domésticos. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
MARTIN, George R. R. As Crônicas de Gelo e Fogo. Rio de Janeiro: Leya, 2010.
MILTON, John. Paraíso Perdido. Lisboa: Relógio d’Água, 2009.
TOLKIEN, J. R. R. O Senhor dos Anéis. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
TROYER, Chrétien de. O Romance de Perceval ou o Conto do Graal. Lisboa: Estampa, 1997.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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