quarta-feira, 3 de setembro de 2025

DA DEUSA À HEROÍNA DIGITAL: Hierarquia Simbólica da Mulher na Mitologia, Arte e Cultura Pop






Resumo


O presente artigo investiga a hierarquia simbólica da mulher desde as mitologias antigas até a era digital, enfatizando como as representações femininas atravessam diferentes campos culturais: divindades, musas, rainhas, heroínas, vilãs e protagonistas. A pesquisa aborda as camadas de sacralização, objetificação, escravização e superação, observando como essas narrativas dialogam com a luta histórica das mulheres pelo direito à autonomia, à felicidade e à construção de um lar. O percurso analítico percorre mitos clássicos (gregos, egípcios, iorubás e ameríndios), narrativas literárias e artísticas, e obras da cultura de massa (cinema, quadrinhos, televisão e games), até chegar à era digital, marcada por novos espaços de autoria e agência feminina. A metodologia comparativa articula a análise iconográfica e textual a partir de categorias como agência, autoridade, olhar, corpo, opressão, interseccionalidade e desfecho narrativo. A hipótese central sustenta que, embora persista uma hierarquia simbólica que subalterniza o feminino, as transformações nas representações culturais revelam um processo contínuo de ampliação de agência e protagonismo das mulheres.


Palavras-chave: Mulher. Mitologia. Heroína. Cultura pop. Era digital.


Sumário


Introdução


Referencial teórico

2.1. Mito, símbolo e hierarquia do feminino

2.2. Feminismo, olhar e agência cultural

2.3. Cultura de massa e transmídia


A mulher nas mitologias e tradições

3.1. Deusas gregas e egípcias

3.2. Orixás femininas na tradição iorubá

3.3. Jaci, Iara e as narrativas ameríndias


Hierarquia simbólica e trajetória histórica

4.1. Musas, rainhas, santas e feiticeiras

4.2. O corpo feminino entre sagrado e profano


A mulher na literatura, cinema, quadrinhos e TV

5.1. Heroínas e vilãs no imaginário narrativo

5.2. A crítica feminista e o olhar masculino


Games e era digital

6.1. Lara Croft e a reinvenção da heroína

6.2. Ellie, Abby e as narrativas da resistência

6.3. Criadoras, fandoms e disputas de representação


Discussão: permanências e rupturas


Conclusão


Referências


1. Introdução


A mulher, desde as primeiras narrativas míticas, ocupa uma posição simbólica marcada por contrastes: de deusa a vilã, de musa a mártir, de rainha a escrava. Ao longo da história, sua representação esteve associada tanto ao sagrado e ao poder quanto à marginalização e à submissão. Nas artes e nas tradições culturais, a figura feminina foi exaltada como fonte de inspiração e fertilidade, mas também reduzida a objeto de desejo, de controle e de violência.


Esse duplo movimento, que combina hierarquia divina e subalternização social, revela uma questão central: como a mulher transita, no imaginário cultural, do lugar de símbolo divino para o de sujeito histórico que luta por autonomia e direitos?


A hipótese deste artigo sustenta que a chamada “hierarquia divina da mulher” não é fixa, mas relacional e mutável: do mito à era digital, o feminino é constantemente reinterpretado, oscilando entre idealização e objetificação, mas também abrindo espaço para novas formas de agência e protagonismo.


O objetivo geral é analisar a evolução da representação feminina desde as mitologias antigas até as produções digitais contemporâneas. Como objetivos específicos, propõe-se: (a) mapear arquétipos femininos recorrentes (deusas, musas, rainhas, heroínas, vilãs, mártires); (b) identificar os regimes de olhar e os processos de objetificação; (c) discutir as rupturas que permitem a emergência de novas vozes e protagonismos femininos; e (d) relacionar essas representações com as lutas históricas das mulheres pela igualdade e pela felicidade na construção da vida privada e pública.


A metodologia adotada é comparativa e iconográfica, combinando análise de narrativas mitológicas, obras literárias e artísticas, filmes, quadrinhos, séries de TV e jogos digitais. As categorias de análise envolvem agência, autoridade, corpo e olhar, opressão, interseccionalidade e desfecho narrativo. O corpus será delimitado a exemplos representativos das tradições grega, egípcia, iorubá e ameríndia, bem como a obras da cultura pop e digital, como Wonder Woman, Alien, The Handmaid’s Tale, Tomb Raider e The Last of Us Part II.


2. Referencial teórico


2.1. Mito, símbolo e hierarquia do feminino


Mircea Eliade (2010) destaca que os mitos expressam estruturas universais, onde o feminino aparece como força criadora e destruidora. Marina Warner (1995) mostra como as narrativas sobre mulheres condensam símbolos de poder e medo.


2.2. Feminismo, olhar e agência cultural


Simone de Beauvoir (2016) afirma que a mulher foi historicamente construída como “o outro” em relação ao homem. Laura Mulvey (2008) introduz o conceito de “male gaze” para explicar a forma como o cinema constrói a mulher como objeto visual. Judith Butler (2019) e bell hooks (2018) ampliam a discussão ao incluir identidade de gênero, interseccionalidade e crítica social.


2.3. Cultura de massa e transmídia


Na cultura pop, a mulher transita entre arquétipos de musa e heroína, vilã e mártir. Autoras como Gilbert e Gubar (2000) discutem a “mulher no sótão” como metáfora do silenciamento literário, ao passo que estudiosos de mídia evidenciam como quadrinhos, cinema e games redefinem esses papéis.


3. A mulher nas mitologias e tradições


As mitologias revelam uma diversidade de arquétipos femininos. No Egito, Ísis era mãe e rainha, guardiã da magia. Na Grécia, Atena representava a sabedoria, Ártemis a independência e Afrodite o desejo. Entre os iorubás, Oxum simbolizava a fertilidade e Iansã a força guerreira. Nas culturas ameríndias, Jaci regia os ciclos da lua e Iara refletia o perigo da sedução.


Essas narrativas revelam a mulher como sagrada e poderosa, mas também sujeita a restrições, mostrando que a “hierarquia divina” já continha tensões entre veneração e submissão.


4. Hierarquia simbólica e trajetória histórica


Na Idade Média e no Renascimento, a mulher foi simultaneamente exaltada como musa ou santa e demonizada como bruxa ou pecadora. Essa dicotomia moldou séculos de produção artística. O corpo feminino passou a ser controlado, tanto no espaço privado da família quanto nas representações públicas da arte e da literatura.


5. A mulher na literatura, cinema, quadrinhos e TV


A literatura moderna reconfigurou o feminino, mas ainda sob a ótica masculina. Com os quadrinhos e o cinema, surgem heroínas que desafiam estereótipos, como Mulher-Maravilha, Ellen Ripley e Sarah Connor. A televisão contemporânea aprofunda a crítica com obras como The Handmaid’s Tale, que expõe a apropriação política do corpo da mulher.


6. Games e era digital


Nos videogames, a trajetória de Lara Croft exemplifica a passagem da objetificação à agência. Ellie e Abby, em The Last of Us Part II, representam personagens complexas, longe da sensualidade como único atributo. A era digital permite maior protagonismo de criadoras, roteiristas e jogadoras, ao mesmo tempo em que expõe as mulheres a novos espaços de violência simbólica.


7. Discussão: permanências e rupturas


A análise revela permanências da hierarquia simbólica que coloca a mulher entre o sagrado e o profano, a musa e a vilã, a rainha e a escrava. Contudo, as rupturas contemporâneas apontam para uma reconfiguração em que o feminino assume protagonismo e autoria, desafiando olhares patriarcais e abrindo espaço para representações mais plurais e emancipatórias.


8. Conclusão


Do mito à era digital, a figura feminina percorreu uma trajetória de contradições. Como deusa, foi cultuada; como rainha, respeitada; como musa, inspiradora; mas também como escrava, marginalizada e objetificada. A hierarquia simbólica que estruturou essas narrativas mostra como a mulher foi sistematicamente posicionada em lugares de ambivalência: venerada e subjugada.


Entretanto, o movimento histórico revela também processos de resistência e superação. Na literatura, no cinema, nos quadrinhos, na televisão e nos games, surgem heroínas que rompem com estereótipos e se afirmam como sujeitos de ação. A era digital amplia esse processo ao permitir que mulheres sejam não apenas personagens, mas criadoras, produtoras e protagonistas de suas próprias narrativas.


Assim, o estudo da hierarquia divina e simbólica da mulher demonstra que, apesar das permanências de desigualdade, as representações culturais abrem caminho para a construção de novos horizontes de autonomia, dignidade e felicidade. O futuro das narrativas femininas aponta para a superação definitiva da condição de objeto e para a afirmação plena como sujeito histórico e criativo.


9. Referências


BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2 v. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.


BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.


CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007.


CÂMARA CASCUDO, Luís da. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Global, 2012.


ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2010.


GILBERT, Sandra; GUBAR, Susan. The Madwoman in the Attic. New Haven: Yale University Press, 2000.


HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.


MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. São Paulo: Paz e Terra, 2008. p. 435-453.


OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. The Invention of Women. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997.


VERGER, Pierre. Orixás. Salvador: Corrupio, 1981.


WARNER, Marina. From the Beast to the Blonde: On Fairy Tales and Their Tellers. London: Vintage, 1995.


Obras analisadas


CRYSTAL DYNAMICS. Tomb Raider. Eidos, 1996. Jogo eletrônico.


MARSTON, William Moulton; PETER, H. G. Wonder Woman. DC Comics, 1941–. HQ.


MILLER, Bruce; ATWOOD, Margaret. The Handmaid’s Tale. EUA: Hulu, 2017–. Série de TV.


MILLER, George (Dir.). Mad Max: Estrada da Fúria. Austrália/EUA: Warner, 2015. Filme.


NAUGHTY DOG. The Last of Us Part II. Sony, 2020. Jogo eletrônico.


SCOTT, Ridley (Dir.). Alien. EUA: 20th Century Fox, 1979. Filme.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





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