Resumo
O presente artigo investiga a hierarquia simbólica da mulher desde as mitologias antigas até a era digital, enfatizando como as representações femininas atravessam diferentes campos culturais: divindades, musas, rainhas, heroínas, vilãs e protagonistas. A pesquisa aborda as camadas de sacralização, objetificação, escravização e superação, observando como essas narrativas dialogam com a luta histórica das mulheres pelo direito à autonomia, à felicidade e à construção de um lar. O percurso analítico percorre mitos clássicos (gregos, egípcios, iorubás e ameríndios), narrativas literárias e artísticas, e obras da cultura de massa (cinema, quadrinhos, televisão e games), até chegar à era digital, marcada por novos espaços de autoria e agência feminina. A metodologia comparativa articula a análise iconográfica e textual a partir de categorias como agência, autoridade, olhar, corpo, opressão, interseccionalidade e desfecho narrativo. A hipótese central sustenta que, embora persista uma hierarquia simbólica que subalterniza o feminino, as transformações nas representações culturais revelam um processo contínuo de ampliação de agência e protagonismo das mulheres.
Palavras-chave: Mulher. Mitologia. Heroína. Cultura pop. Era digital.
Sumário
Introdução
Referencial teórico
2.1. Mito, símbolo e hierarquia do feminino
2.2. Feminismo, olhar e agência cultural
2.3. Cultura de massa e transmídia
A mulher nas mitologias e tradições
3.1. Deusas gregas e egípcias
3.2. Orixás femininas na tradição iorubá
3.3. Jaci, Iara e as narrativas ameríndias
Hierarquia simbólica e trajetória histórica
4.1. Musas, rainhas, santas e feiticeiras
4.2. O corpo feminino entre sagrado e profano
A mulher na literatura, cinema, quadrinhos e TV
5.1. Heroínas e vilãs no imaginário narrativo
5.2. A crítica feminista e o olhar masculino
Games e era digital
6.1. Lara Croft e a reinvenção da heroína
6.2. Ellie, Abby e as narrativas da resistência
6.3. Criadoras, fandoms e disputas de representação
Discussão: permanências e rupturas
Conclusão
Referências
1. Introdução
A mulher, desde as primeiras narrativas míticas, ocupa uma posição simbólica marcada por contrastes: de deusa a vilã, de musa a mártir, de rainha a escrava. Ao longo da história, sua representação esteve associada tanto ao sagrado e ao poder quanto à marginalização e à submissão. Nas artes e nas tradições culturais, a figura feminina foi exaltada como fonte de inspiração e fertilidade, mas também reduzida a objeto de desejo, de controle e de violência.
Esse duplo movimento, que combina hierarquia divina e subalternização social, revela uma questão central: como a mulher transita, no imaginário cultural, do lugar de símbolo divino para o de sujeito histórico que luta por autonomia e direitos?
A hipótese deste artigo sustenta que a chamada “hierarquia divina da mulher” não é fixa, mas relacional e mutável: do mito à era digital, o feminino é constantemente reinterpretado, oscilando entre idealização e objetificação, mas também abrindo espaço para novas formas de agência e protagonismo.
O objetivo geral é analisar a evolução da representação feminina desde as mitologias antigas até as produções digitais contemporâneas. Como objetivos específicos, propõe-se: (a) mapear arquétipos femininos recorrentes (deusas, musas, rainhas, heroínas, vilãs, mártires); (b) identificar os regimes de olhar e os processos de objetificação; (c) discutir as rupturas que permitem a emergência de novas vozes e protagonismos femininos; e (d) relacionar essas representações com as lutas históricas das mulheres pela igualdade e pela felicidade na construção da vida privada e pública.
A metodologia adotada é comparativa e iconográfica, combinando análise de narrativas mitológicas, obras literárias e artísticas, filmes, quadrinhos, séries de TV e jogos digitais. As categorias de análise envolvem agência, autoridade, corpo e olhar, opressão, interseccionalidade e desfecho narrativo. O corpus será delimitado a exemplos representativos das tradições grega, egípcia, iorubá e ameríndia, bem como a obras da cultura pop e digital, como Wonder Woman, Alien, The Handmaid’s Tale, Tomb Raider e The Last of Us Part II.
2. Referencial teórico
2.1. Mito, símbolo e hierarquia do feminino
Mircea Eliade (2010) destaca que os mitos expressam estruturas universais, onde o feminino aparece como força criadora e destruidora. Marina Warner (1995) mostra como as narrativas sobre mulheres condensam símbolos de poder e medo.
2.2. Feminismo, olhar e agência cultural
Simone de Beauvoir (2016) afirma que a mulher foi historicamente construída como “o outro” em relação ao homem. Laura Mulvey (2008) introduz o conceito de “male gaze” para explicar a forma como o cinema constrói a mulher como objeto visual. Judith Butler (2019) e bell hooks (2018) ampliam a discussão ao incluir identidade de gênero, interseccionalidade e crítica social.
2.3. Cultura de massa e transmídia
Na cultura pop, a mulher transita entre arquétipos de musa e heroína, vilã e mártir. Autoras como Gilbert e Gubar (2000) discutem a “mulher no sótão” como metáfora do silenciamento literário, ao passo que estudiosos de mídia evidenciam como quadrinhos, cinema e games redefinem esses papéis.
3. A mulher nas mitologias e tradições
As mitologias revelam uma diversidade de arquétipos femininos. No Egito, Ísis era mãe e rainha, guardiã da magia. Na Grécia, Atena representava a sabedoria, Ártemis a independência e Afrodite o desejo. Entre os iorubás, Oxum simbolizava a fertilidade e Iansã a força guerreira. Nas culturas ameríndias, Jaci regia os ciclos da lua e Iara refletia o perigo da sedução.
Essas narrativas revelam a mulher como sagrada e poderosa, mas também sujeita a restrições, mostrando que a “hierarquia divina” já continha tensões entre veneração e submissão.
4. Hierarquia simbólica e trajetória histórica
Na Idade Média e no Renascimento, a mulher foi simultaneamente exaltada como musa ou santa e demonizada como bruxa ou pecadora. Essa dicotomia moldou séculos de produção artística. O corpo feminino passou a ser controlado, tanto no espaço privado da família quanto nas representações públicas da arte e da literatura.
5. A mulher na literatura, cinema, quadrinhos e TV
A literatura moderna reconfigurou o feminino, mas ainda sob a ótica masculina. Com os quadrinhos e o cinema, surgem heroínas que desafiam estereótipos, como Mulher-Maravilha, Ellen Ripley e Sarah Connor. A televisão contemporânea aprofunda a crítica com obras como The Handmaid’s Tale, que expõe a apropriação política do corpo da mulher.
6. Games e era digital
Nos videogames, a trajetória de Lara Croft exemplifica a passagem da objetificação à agência. Ellie e Abby, em The Last of Us Part II, representam personagens complexas, longe da sensualidade como único atributo. A era digital permite maior protagonismo de criadoras, roteiristas e jogadoras, ao mesmo tempo em que expõe as mulheres a novos espaços de violência simbólica.
7. Discussão: permanências e rupturas
A análise revela permanências da hierarquia simbólica que coloca a mulher entre o sagrado e o profano, a musa e a vilã, a rainha e a escrava. Contudo, as rupturas contemporâneas apontam para uma reconfiguração em que o feminino assume protagonismo e autoria, desafiando olhares patriarcais e abrindo espaço para representações mais plurais e emancipatórias.
8. Conclusão
Do mito à era digital, a figura feminina percorreu uma trajetória de contradições. Como deusa, foi cultuada; como rainha, respeitada; como musa, inspiradora; mas também como escrava, marginalizada e objetificada. A hierarquia simbólica que estruturou essas narrativas mostra como a mulher foi sistematicamente posicionada em lugares de ambivalência: venerada e subjugada.
Entretanto, o movimento histórico revela também processos de resistência e superação. Na literatura, no cinema, nos quadrinhos, na televisão e nos games, surgem heroínas que rompem com estereótipos e se afirmam como sujeitos de ação. A era digital amplia esse processo ao permitir que mulheres sejam não apenas personagens, mas criadoras, produtoras e protagonistas de suas próprias narrativas.
Assim, o estudo da hierarquia divina e simbólica da mulher demonstra que, apesar das permanências de desigualdade, as representações culturais abrem caminho para a construção de novos horizontes de autonomia, dignidade e felicidade. O futuro das narrativas femininas aponta para a superação definitiva da condição de objeto e para a afirmação plena como sujeito histórico e criativo.
9. Referências
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2 v. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007.
CÂMARA CASCUDO, Luís da. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Global, 2012.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2010.
GILBERT, Sandra; GUBAR, Susan. The Madwoman in the Attic. New Haven: Yale University Press, 2000.
HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.
MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência do cinema. São Paulo: Paz e Terra, 2008. p. 435-453.
OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. The Invention of Women. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997.
VERGER, Pierre. Orixás. Salvador: Corrupio, 1981.
WARNER, Marina. From the Beast to the Blonde: On Fairy Tales and Their Tellers. London: Vintage, 1995.
Obras analisadas
CRYSTAL DYNAMICS. Tomb Raider. Eidos, 1996. Jogo eletrônico.
MARSTON, William Moulton; PETER, H. G. Wonder Woman. DC Comics, 1941–. HQ.
MILLER, Bruce; ATWOOD, Margaret. The Handmaid’s Tale. EUA: Hulu, 2017–. Série de TV.
MILLER, George (Dir.). Mad Max: Estrada da Fúria. Austrália/EUA: Warner, 2015. Filme.
NAUGHTY DOG. The Last of Us Part II. Sony, 2020. Jogo eletrônico.
SCOTT, Ridley (Dir.). Alien. EUA: 20th Century Fox, 1979. Filme.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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