domingo, 23 de novembro de 2025

WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ, O TEMPO DOS BRANCOS – Contos – Volume 4 – Coletânea, Nhenety Kariri-Xocó






📖 FALSA FOLHA DE ROSTO


WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ, O TEMPO DOS BRANCOS

Contos – Volume 4 – Coletânea

Nhenety Kariri-Xocó




📖 VERSO DA FALSA FOLHA DE ROSTO


Livro desenvolvido e organizado por

Nhenety Kariri-Xocó


Todos os direitos reservados ao autor.

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida sem autorização prévia.




📖 FOLHA DE ROSTO (FRONTISPÍCIO)


WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ, O TEMPO DOS BRANCOS

Contos – Volume 4 – Coletânea


Por

Nhenety Kariri-Xocó

Povo Kariri-Xocó – Porto Real do Colégio (AL)


Ano: ______

Edição: ______




📇 FICHA CATALOGRÁFICA 


Nhenety Kariri-Xocó.

Woroy História, Kariri-Xocó, O Tempo dos Brancos: Contos – Volume 4 – Coletânea.

Porto Real do Colégio: [Editora], [ano].

xxx p.; il.


Literatura Indígena.


Cultura Kariri-Xocó.


Tradição Oral.


Memória Ancestral.

I. Título.


CDD: 899.93

CDU: 821.136.1-34



💠 DEDICATÓRIA


Dedico este livro

aos meus ancestrais que caminham na luz do Opará,

aos que resistiram no tempo dos brancos

e aos que hoje mantêm viva a palavra antiga,

como fogo que nunca se apaga.


Dedico também

a todo filho e filha Kariri-Xocó

que guarda dentro do peito

o som da terra, o ritmo do maracá

e a coragem de contar a própria história.




💠 AGRADECIMENTOS


Agradeço aos meus mais velhos,

que com paciência e amor

deram forma às histórias contadas ao redor do fogo.


Agradeço ao meu povo Kariri-Xocó,

que resiste desde o tempo das missões até hoje,

com dignidade, sabedoria e força espiritual.


Agradeço ao Rio Opará,

testemunha silenciosa da memória de nosso povo,

e a todos que me incentivam a registrar esta obra,

para que as histórias não se percam no vento.




💠 EPÍGRAFE


"A memória é flecha que nunca erra o alvo,

pois o que vem do espírito não se perde — renasce."

— Tradição Kariri-Xocó




📑 SUMÁRIO 



Falsa Folha de Rosto

Verso da Falsa Folha de Rosto

Folha de Rosto (Frontispício)

Ficha Catalográfica

Dedicatória Poética

Agradecimentos

Epígrafe

Prefácio

Apresentação

Introdução


Contos: 


Subatewaerá – O Colégio dos Jesuítas


Crazokipi – O Bezerro de Bronze


Keruenaraí – Os Animais Domésticos dos Brancos


Cradzotçó – O Boi Preto Mau


Cramenu Dzoré – O Tesouro dos Jesuítas


Merabodzó – O Machado de Ferro


Do Centro para a Rua dos Índios


Visita do Imperador D. Pedro II à Aldeia Kariri do Colégio


Duboherí Surété – Um Professor Indígena na Freguesia


Dzeanieá – O Conto dos Nomes Indígenas


Apêndice

Glossário 

Dados Biográficos do Autor

Orelha do Livro




📜 PREFÁCIO


O livro que o leitor tem em mãos não é apenas um conjunto de contos: é um registro vivo da memória ancestral do povo Kariri-Xocó. Aqui se encontram histórias que atravessaram séculos, resistiram ao silêncio, à dor, às missões, às aldeias destruídas e ao “tempo dos brancos”.


Cada conto desta coletânea carrega dentro de si a força da tradição oral, o sopro da floresta perdida e a voz dos anciões que nunca deixaram de ensinar. Ao escrever esta obra, Nhenety Kariri-Xocó devolve ao mundo um pedaço da alma de seu povo, fazendo com que a história — tantas vezes apagada — retorne ao centro do fogo sagrado, onde a palavra cria, cura e renasce.


Que este livro possa iluminar caminhos, fortalecer identidades e revelar, ao leitor, a profundidade das histórias indígenas do Nordeste do Brasil.




📜 APRESENTAÇÃO


Este volume faz parte da série Woroy História, dedicada a registrar contos tradicionais Kariri-Xocó baseados na memória coletiva, nas narrativas da aldeia, na história local e no eco profundo do Opará.


Nesta obra, O Tempo dos Brancos, reúnem-se narrativas que retratam o impacto da colonização sobre a vida indígena. São histórias que misturam realidade, espiritualidade, luta, dor e resistência, preservando a visão do próprio povo sobre os acontecimentos.


Mais que literatura, estes contos são documentos afetivos e espirituais, que preservam a identidade Kariri-Xocó e oferecem ao leitor um caminho para compreender nossas raízes e a força da tradição oral.




📜 INTRODUÇÃO


Desde tempos ancestrais, o povo Kariri-Xocó habita as margens do grande Rio Opará. Antes da chegada dos colonizadores, nossas aldeias viviam em harmonia com a mata, guiadas pelo conhecimento dos pajés, pelo espírito dos animais e pelos ciclos da natureza.


Com a invasão dos brancos, vieram a cruz, o ferro, o gado, a língua estrangeira e o rompimento das tradições. O que chamamos aqui de “Tempo dos Brancos” foi um período de profunda transformação — muitas vezes forçada, muitas vezes dolorosa.


Este livro reúne contos que nasceram dessas memórias: histórias contadas nas rodas familiares, nas noites de Ouricuri, nos cantos dos anciões. São fragmentos vivos da trajetória de resistência de meu povo, preservados agora em forma escrita para que as futuras gerações possam lembrar e fortalecer sua identidade.



🔹️CONTOS:




SUBATEWAERÁ, O COLÉGIO DOS JESUÍTAS 





Muito antes de os homens de cruz e ferro cruzarem os caminhos do sertão, a aldeia Natiá florescia no alto da colina, abrigada pelo abraço generoso das árvores antigas e protegida pelos espíritos da floresta. Lá, o povo Kariri vivia em comunhão com a terra, o rio e o céu, em grandes casas de palha trançada, os picriá, onde as gerações se reuniam para comer, cantar, dançar e aprender as lições do mundo.


O Rio Opará — a artéria viva da terra — corria majestoso, levando os segredos dos ancestrais para além das serras e das planícies. Nele, os Kariri pescavam, se banhavam e realizavam seus rituais, honrando os ciclos da natureza. Era ali, à sombra das árvores e ao som das águas, que o povo conversava em seu doce mewonhé, a língua que os deuses lhes ensinaram.


Mas um dia, o vento mudou de direção.


Vieram homens diferentes, com roupas pesadas, barbas compridas e olhos que pareciam ver, mas não enxergar. Trazendo cruzes de madeira e livros de capa grossa, disseram que portavam a "verdadeira palavra" e a "única salvação". Suas vozes eram mansas, mas seus gestos eram firmes; seus sorrisos, frios como a lâmina de um machado.


Subiram à colina e, com palavras enfeitadas de promessa e poder, convenceram — ou forçaram — os Kariri a deixar suas casas, seus picriá, e descerem para junto de uma capela frágil, feita de folhas de palmeira e barro, que dedicaram a uma santa: Nossa Senhora da Conceição.


Na nova aldeia, aos pés da colina, ergueu-se o que os brancos chamavam de o Colégio dos Jesuítas, que os indígenas nomearam Subatewaerá. Ali, o povo Kariri deveria aprender novas palavras, novos costumes, nova religião… e esquecer tudo o que antes fazia deles quem eram.


O velho Piragibá, outrora cacique de muitos feitos e sabedor de velhas histórias, via agora seus dias se alongarem sob o peso da tristeza. Sentia-se como uma árvore cujas raízes haviam sido cortadas, mas que teimava em se manter ereta.


Numa tarde em que o céu ardia em tons de sangue e ouro, ele chamou o neto Maruandá para junto de si. Sentaram-se sob o angico velho, cuja copa ainda se estendia como um abrigo silencioso.


Piragibá olhou para a linha do horizonte, onde o Rio Opará cintilava, e disse com a voz cansada:


— Maruandá... nosso povo sempre viveu junto, nas grandes casas que chamamos de picriá. Ali, compartilhávamos o fogo, os alimentos, os sonhos. Agora, nos separaram, como se quisessem que esquecêssemos que somos um só corpo, uma só alma.


O menino, ainda com a pureza nos olhos, ouviu em silêncio, como quem grava cada sílaba no coração.


— Fomos forçados a morar nessas pequenas casas, que eles chamam de erá. Nos fizeram vestir o croteró, essa roupa de pano que prende nossos corpos e nos distancia da pele da mata.


Piragibá abaixou a cabeça, como quem reverencia a dor, e continuou:


— Eles nos proibiram de falar nosso mewonhé. Dizem que nossa língua é rude, errada… querem que falemos apenas a língua deles: o português.


O ancião ergueu o olhar, agora mais firme:


— Tomaram de mim o nome de nanhe, que meus antepassados me deram com honra e amor. Agora sou chamado de capitão-mor, como se fosse um título, mas que, na verdade, é uma prisão.


Maruandá apertou as mãos do avô, sentindo nelas a força e o cansaço acumulados por gerações.


— Nosso bidzamu, o pajé, que sabia ouvir as árvores, os animais e os espíritos, foi silenciado. No lugar dele, há um padre, que nos fala de um deus que não conhece nossa mata, que nunca ouviu o canto dos nossos pássaros, que não entende o sopro dos nossos ventos.


Piragibá respirou fundo, o peito subindo e descendo lentamente, como as ondas do rio ao longe.


— Estão apagando nossa Warakidzã, nossa religião Kariri, que nos ensinava a respeitar e agradecer a tudo: ao sol, à chuva, à caça, à semente.


O velho deixou que o silêncio pairasse entre eles, preenchido apenas pelo canto distante de uma araponga e pelo farfalhar das folhas.


Depois, com um suspiro, completou:


— Estamos muito tristes, meu neto… Não sabemos como será no uché, o tempo futuro.


Maruandá, com os olhos marejados, abraçou o avô com força, tentando, naquele gesto, costurar novamente as raízes que o vento da colonização tentava arrancar.


Piragibá afagou os cabelos do menino, e, mesmo com o peso das perdas, sorriu.


— Mas eu acredito… acredito que vocês, os mais jovens, vão mudar isso.


O menino assentiu em silêncio, como quem jura diante dos deuses e dos ancestrais.


Ao longe, o Rio Opará seguia seu curso, indiferente e eterno, levando nas suas águas as lágrimas e os sonhos de um povo que, apesar de ferido, jamais seria esquecido.


E sob o angico velho, entre o menino e o ancião, nasceu a semente de uma promessa: a de que a memória Kariri continuaria viva, enquanto houvesse quem a contasse.




CRAZOKIPI – O BEZERRO DE BRONZE 





Nos dias em que os tambores silenciavam e os olhos do céu ardiam sobre Porto Real do Colégio, o povo Kariri-Xocó vivia sob a sombra da cruz e do medo. A Missão Jesuítica, erguida onde antes só o canto dos passarinhos fazia morada, se tornara prisão das tradições.


O velho Cacique Irecé contava à roda de crianças e jovens:


— Era difícil, muito difícil. Cada vez que dançávamos, os padres vinham. Cada vez que rezávamos nossos cânticos, eles ameaçavam. Diziam que era pecado, que era coisa do demônio. Mas o demônio estava neles...


No centro do pátio da grande igreja, havia uma figura aterradora: CRAZOKIPI, o Bezerro de Bronze. Tinha forma de animal, mas alma de máquina. Era oco por dentro, com buracos no ventre e uma pequena portinhola. Dentro dele, cabia um corpo humano — e era para isso que servia.


Quando um indígena era considerado "insubordinado" — por fazer um ritual, recusar o batismo, ou simplesmente por falar em sua língua — era levado até a estátua. As mãos dos soldados forçavam a entrada. Lá dentro, o metal fervia sob o sol escaldante. Gritavam os que eram presos. Gritavam até perderem as forças. Alguns saíam desmaiados, marcados. Outros... saíam mortos.


O povo chorava. Mas não esquecia.


Os anciões diziam que os espíritos dos que morreram em CRAZOKIPI agora vivem nas margens do Velho Chico, guardando as memórias, protegendo os rituais. E foi também o rio que guardou a última cena da estátua.


Quando o rei de Portugal ordenou a expulsão dos jesuítas, houve correria na Missão. Os padres Nicolau Botelho e João Batista foram presos e levados para o Recife. Antes de partirem, ordenaram que o Bezerro fosse jogado no rio, para que seus crimes sumissem com ele.


Do alto da colina, viram o Bezerro de Bronze afundar nas águas profundas do São Francisco — o velho Rio dos Currais, como chamavam, por causa do gado das onze grandes fazendas que a Igreja possuía. Essas terras foram vendidas, leiloadas pelo governo português, mas o que restou foi mais do que terra: foi a força de um povo que não se dobrou.


Hoje, ainda dançamos.


Ainda entoamos nossas cantigas.


Ainda fumamos o cachimbo em memória dos que foram.


E quando o sol arde muito forte, sentimos a presença de CRAZOKIPI debaixo do rio — não como ameaça, mas como lembrança de que sobrevivemos.




KERUENARAÍ, OS ANIMAIS DOMÉSTICOS DOS BRANCOS 





Um Conto Sobre Animais Domésticos 


Na beira do grande rio Opará, vivia uma aldeia onde os cantos dos pássaros coloridos misturavam-se aos risos das crianças e aos passos leves dos caçadores. Entre eles, vivia um menino chamado Anharu, curioso e atento às histórias que os mais velhos contavam nas rodas do fogo.


Seu avô, Tukuré, era um sábio do povo Kariri-Xocó, conhecedor das matas, das estrelas e dos nomes dos bichos. Numa certa noite, sob a luz trêmula da fogueira, ele chamou o neto para perto:


— Anharu, meu neto, hoje vou te contar sobre os Keruenaraí, os animais dos brancos, que chegaram quando os portugueses pisaram na nossa terra.


Anharu arregalou os olhos. Ele já vira galinhas e bois nas aldeias vizinhas, mas não sabia de onde vinham.


— Eles não eram daqui? — perguntou o menino.


— Não, meu pequeno — respondeu Tukuré, com a voz serena. — Antes, só tínhamos nossos irmãos da floresta: os veados, os tatus, os macacos e os pássaros. Todos livres, como Deus Tupã criou. Caçávamos com respeito, pescávamos nos igarapés e cultivávamos a roça. Mas os brancos vieram com seus animais diferentes. Trouxeram o cabaru (cavalo), o kradzo (boi), o bucu (cachorro), a kabara (cabra), o carneiró (ovelha), o sabucá (galo) e o curé (porco).


Anharu repetia os nomes como se fossem encantamentos.


— E o que fizeram esses animais, vovô?


— Mudaram nosso modo de viver — disse Tukuré, olhando para o céu. — Eles vivem junto das casas, dão leite, carne, ovos. Não se precisa ir longe para caçar. Os brancos trouxeram outro jeito de viver com os animais, domesticados. Nós, Kariri, demos nomes a eles, porque também aprendemos a cuidar deles. Hoje, muitos vivem perto das nossas casas. Aprendemos a amá-los, mesmo sendo diferentes dos nossos irmãos da mata.


O menino ficou em silêncio por um tempo, observando a fogueira crepitar.


— E os animais da floresta, vovô? Ainda existem?


— Em poucos lugares, meu neto. As matas foram sendo derrubadas com o tempo. Hoje, temos uma pequena floresta sagrada que protegemos com todo o coração: Ouricuri. Lá vivem nossos animais originários, que ainda cantam com as árvores e dançam com o vento. Mas essa, meu filho, é uma história para outro dia.


Anharu sorriu, com o coração cheio de esperança e orgulho. Naquela noite, enquanto adormecia ao som dos grilos e do fogo morrendo em brasas, sonhou com uma floresta viva, onde os animais dos brancos e os da mata caminhavam lado a lado, em paz, sob a proteção do povo Kariri-Xocó.




CRADZOTÇÓ O BOI PRETO MAU 





No coração quente e poeirento do sertão nordestino, onde o Rio Opará — que os brancos chamaram São Francisco — desenhava caminhos de água entre a caatinga, vivia o povo Kariri, há muitos e muitos tempos.


As matas eram espessas e cheias de vida. Era ali que os Kariri caçavam, plantavam, cantavam seus rituais e ouviam as histórias antigas contadas ao redor do fogo. Mas o século XVII chegou com estrondo: os portugueses e seus padres jesuítas vieram com cruzes e espadas, dizimando aldeias, aprisionando corpos e colonizando espíritos.


Na região onde hoje fica Porto Real do Colégio, os padres ergueram não igrejas, mas cercas. Onze grandes fazendas de gado tomaram conta das matas e das margens do Opará. E o povo Kariri, arrancado das suas raízes, foi forçado a virar vaqueiro, cuidando do mesmo gado que, solto na caatinga, esmagava a vegetação sagrada, expulsava os bichos e calava os cantos das aves.


Naquele tempo, viveu um homem chamado Iarí, jovem Kariri-Xocó, de olhos atentos e mãos ágeis, que aprendera a laçar bezerros e conduzir as reses pelos caminhos pedregosos. Ele conhecia cada vereda, cada sombra de juazeiro, cada canto das matas do Opará. Mas nem toda sua sabedoria preparou-o para o que estava por vir.


Certa tarde, enquanto conduzia um pequeno grupo de bois à beira do rio, Iarí ouviu um som estranho — uma respiração pesada, furiosa, que misturava o ronco de trovão com o mugido de um animal ferido. Parou e, entre os galhos secos, viu uma sombra negra se mover.


De repente, surgiu diante dele: Cradzotçó!


Um boi imenso, de pelagem tão negra que parecia absorver a luz do sol. Os olhos, vermelhos como brasas, fixaram-se em Iarí. O jovem mal teve tempo de lançar-se para o lado quando o monstro investiu com fúria, quebrando arbustos e espatifando pedras com seus cascos.


Iarí correu de volta ao povoado, o coração disparado, o rosto ainda riscado de sangue por um galho que o cortara na fuga.


— Vi, com estes olhos! Cradzotçó é real! O Boi Preto Mau anda solto pelas matas!, gritava para os mais velhos, que já conheciam a lenda.


Reuniram-se então os vaqueiros mais valentes da região. Homens que não temiam nem onça nem o calor do meio-dia. Montados em cavalos ligeiros, partiram em busca da fera. Mas um a um, foram sendo vencidos. Uns voltaram feridos, outros enlouquecidos; muitos, simplesmente, nunca mais retornaram.


O povo começou a dizer que Cradzotçó não era um boi comum, mas o espírito vingador das florestas sagradas, feridas e destruídas pelo gado e pelas cercas coloniais.


Um ancião Kariri-Xocó, chamado Kairó, explicava ao povo reunido sob a lua cheia:


— Cradzotçó é a alma furiosa da mata, dos bichos expulsos, das árvores arrancadas… É o gado virando assombração porque violamos o que era sagrado.


E então, com voz profunda, entoava o velho canto:


“Cradzó cotçó, hidzi cradzó buié hidzi cradzó


Ê boi preto, meu gado mau, meu boi, êdcha êdcha lêlê…”


Durante anos, Cradzotçó continuou rondando os caminhos do sertão, apavorando quem ousasse atravessar as matas sozinho.


Até que, um dia, assim como surgira, desapareceu. E dizem que foi no mesmo tempo em que os jesuítas, expulsos pela Coroa Portuguesa, abandonaram suas fazendas e deixaram o sertão para trás.


As cercas ruíram, o gado se dispersou, e as matas, silenciosamente, começaram a tentar se recompor.


Mas Iarí, mesmo depois da calmaria voltar, não conseguia esquecer o olhar de fogo do Boi Preto Mau. Procurou então o ancião Kairó, sentado à beira do rio, enquanto o pôr do sol tingia o Opará de vermelho.


Aproximou-se com reverência:


— Kairó… Por que Cradzotçó sumiu? Por que ele não nos atacou mais? — perguntou Iarí, com a voz ainda carregada de temor e respeito.


O velho ancião olhou o horizonte, como quem escuta o que o vento sussurra nas folhas.


— Cradzotçó não sumiu, Iarí. Ele apenas voltou para o lugar de onde nunca devia ter saído… o coração da mata. O espírito da terra não suporta ser ferido para sempre.


Iarí franziu a testa, inquieto:


— Mas… e se um dia os homens voltarem a cercar as florestas? A cortar as árvores? A ferir o Opará?


Kairó sorriu tristemente e colocou a mão calejada no ombro do jovem:


— Então, meu filho… Cradzotçó voltará. Sempre volta. Ele é a força da terra que responde à violência dos homens. Enquanto houver matas, haverá espíritos que as protegem. E enquanto houver homens que esquecem o sagrado… haverá assombrações que os farão lembrar.


O velho então se levantou devagar, apoiando-se no cajado, e caminhou lentamente para a aldeia, enquanto Iarí ficou ali, sozinho, olhando o rio que seguia seu curso, eterno e silencioso.


Naquele instante, uma leve brisa balançou os galhos secos, e, ao longe, bem longe, Iarí jurou ouvir… um mugido grave, profundo, vindo do meio da mata.


Cradzotçó…


E ele soube que a lenda nunca morreria.




CRAMENU DZORÉ, O TESOURO DOS JESUÍTAS





Diz o povo antigo de Porto Real do Colégio, que sob as águas barrentas do Velho Chico dorme um baú pesado de ouro, guardião silencioso de uma história marcada por fé, cobiça e sofrimento.


Nos tempos das Missões, os jesuítas vieram com cruz e palavra, mas também com sede de poder. Administravam as terras indígenas como senhores, arrendando-as aos colonizadores e acumulando, ao longo dos anos, ouro, joias e fazendas ofertadas por fiéis devotos. No coração da Missão de Colégio, em Alagoas, ergueu-se um cofre que mais parecia uma lenda viva: o Tesouro dos Jesuítas, um grande baú de madeira de lei, envolto em sigilo, suor tristeza. O nome de baú na língua é Cramenú Dzoré que significa "caixa reluzente".


Os indígenas trabalhavam de sol a sol. Seus cantos se calavam sob a voz dos sinos e dos açoites silenciosos do sistema. Os padres, João Batista e Nicolau Botelho, eram os guardiões do tesouro, mas também do segredo que o envolvia.


Com o tempo, rumores começaram a correr pelos aldeamentos: os jesuítas estavam sendo expulsos, um a um, por ordem da Coroa portuguesa. Alguns foram presos, outros enviados para longe, proibidos de retornar ao solo que haviam ocupado em nome de Deus.


Na calada da noite, sentindo o cerco apertar, os dois padres reuniram seus bens mais valiosos. Colocaram tudo dentro do grande baú, envolveram-no com correntes de ferro e, rezando uma prece, lançaram-no nas profundezas do Rio São Francisco. Diziam que, um dia, quando pudessem voltar, puxariam pela corrente e resgatariam sua fortuna.


Mas os padres nunca mais voltaram.


O tempo passou. A missão ficou em ruínas, o povo resistiu como pôde, e o tesouro virou apenas história contada em roda de fogueira — até que o velho pescador Joãozinho quebrou o silêncio da lenda.


Segundo contou o Cacique Cícero Irecé, Joãozinho certa vez lançou sua tarrafa no Porto dos Padres. Sentiu um peso estranho. Quando puxou, não era peixe, era ferro — uma corrente enferrujada. No outro extremo, entre redemoinhos e reflexos dourados, surgiu um baú antigo. O pescador mal teve tempo de tocar a caixa: a corrente se rompeu, e o tesouro voltou ao fundo do rio, como se o próprio São Francisco quisesse escondê-lo outra vez.


Durante muitos anos, pendurada na parede da casa de Joãozinho, ficou a ponta daquela corrente — lembrança de um encontro entre mito e verdade.


Muitos tentaram seguir os passos do velho pescador, mas o rio, teimoso e sagrado, continuou a mudar. O leito se encheu de areia, as águas esconderam o segredo, e o baú ficou perdido no tempo.


Hoje, só a história permanece. E quem sabe — um dia — o Velho Chico resolve contar de novo.




MERABODZÓ, O MACHADO DE FERRO 





Conto do Machado baseado na tradição oral 


Nas aldeias antigas dos Kariri, chamadas de Natiá, tudo seguia o ciclo da natureza. Cada estação guiava o tempo do povo, e plantar as roças era mais que trabalho: era um ato de comunhão com a Terra. Para abrir clareiras e preparar o solo sagrado, os mais velhos ensinavam aos mais jovens o uso do Bodzó, o machado de pedra. Essa ferramenta ancestral era firme, mas não gananciosa. Só cortava o necessário — o justo para alimentar o povo, nunca para ferir a floresta.


Mas um dia, o mundo mudou. Do grande mar chegaram homens desconhecidos com roupas estranhas, vozes duras e olhos cheios de cobiça. Com eles veio um novo instrumento, feito não de pedra, mas de ferro. Um machado mais pesado, mais afiado, mais ambicioso. Esse novo objeto recebeu um nome na língua dos Kariri: Merabodzó, o Machado de Ferro — união de Merata (ferro) e Bodzó (machado).


Ao contrário do machado de pedra, o Merabodzó não parava. Ele abria clareiras como feridas, derrubava árvores milenares como se fossem capim, e com seu apetite insaciável, fez as florestas chorarem. Por onde passava, deixava troncos tombados, animais fugidos e o silêncio da destruição.


A madeira retirada era vendida para tingir tecidos com o sangue das árvores. E onde antes dançavam os ipês e os sabiás, brotaram lavouras de cana-de-açúcar, alimentadas com o suor e o pranto dos povos nativos, agora escravizados. Os que conseguiram fugir se esconderam na castinga do sertão, levando consigo a memória da mata viva.


Na região que hoje se chama Porto Real do Colégio, em Alagoas, só restou uma pequena porção de floresta: a Mata do Ouricuri, onde pulsa ainda o coração do povo Kariri-Xocó.


Mas o velho pajé ensina:


“O Merabodzó em si não é mau. O mal não está no objeto, mas no coração de quem o segura.”


O machado de ferro pode sim construir casas, bancos e portas, como faz o carpinteiro sábio. Assim como a faca pode cortar legumes na cozinha ou ferir em mãos impiedosas. Tudo depende de quem a conduz.


O verdadeiro devorador de florestas não foi o machado de ferro. Foi aquele que, em nome da riqueza, esqueceu de ouvir o canto da mata, o conselho do rio, e o clamor das árvores.


Essa é a história do Merabodzó, o Machado de Ferro, contada para que não se perca, para que as novas gerações saibam:


O instrumento pode ser o mesmo, mas a escolha é de quem o segura.




DO CENTRO PARA A RUA DOS ÍNDIOS





O avô Aruã gostava de contar histórias sob a sombra do velho oitizeiro que resistia no quintal. “As raízes desta árvore”, dizia ele tocando o tronco rugoso, “são como as nossas: nascem no centro da aldeia, espalham-se, mas nunca se quebram.” Foi ali, entre cheiros de folhas secas e o canto dos sabiás, que ouvi pela primeira vez a saga de nossa gente — a longa caminhada que transformou o coração da missão numa rua periférica, mas jamais apagou o fogo de quem somos.


1. A aldeia do centro (1661)


Na alvorada de 4 de maio de 1661, os sinos da nova Capela de Nossa Senhora da Conceição romperam o silêncio das margens do São Francisco. Kariri, Karapotó, Aconã e Tupinambá juntaram-se aos jesuítas para erguer paredes de taipa e palha; ali nascia a Missão de Colégio. Padre Nicolau Botelho ensinava o latim dos salmos, e Padre João Batista abria cadernos de caligrafia com letras que pareciam formigas dançando. Em troca das lições, os nossos antepassados mostravam como caçar cotias, curtir o couro do veado e cantar toantes que faziam o céu estremecer de alegria.


Meu trisavô, então menino, aprendeu a dobrar o “r” de “Portugal” e a conjugar o verbo “rezar” enquanto desenhava, na areia, o formato de um arco e uma flecha. “Ensine-nos a pescar almas”, pediu um missionário; e meu povo respondeu: “Nós lhes ensinaremos a pescar peixes.” Assim nasceu uma convivência tensa e terna, feita de promessas de salvação e da lembrança insistente da mata que sussurrava nossos nomes primordiais.


2. O vazio que ficou (1759)


Certo crepúsculo, chegaram ordens de Lisboa: os jesuítas deviam partir. O cascalhar das sandálias dos soldados soou como chuva de pedras. Dizem que, quando Padre Nicolau subiu pela última vez ao púlpito, sua voz quebrou: “Alleluia e adeus.” Os sinos calaram-se; o altar cheirava a cera fria. A missão, que fora escola e abrigo, virou carcaça de barco abandonado à beira-rio.


Sem a mão visível dos padres, sobraram às famílias dois caminhos: permanecer ao redor da capela ou cruzar o rio rumo às caatingas sem fim. Mas a coroa portuguesa tinha outros planos.


3. A freguesia dos brancos (1763)


A notícia chegou nos tambores do vento: “Aqui será Freguesia de Nossa Senhora da Conceição.” O traço do urbanista luso transformou a aldeia em mapa geométrico. As casas de barro e sapé, que abraçavam a igreja, pareciam feridas no desenho elegante da futura praça. “Recuem”, ordenaram. “Aqui ergueremos sobrados.” O centro — outrora quilha do nosso mundo — já não cabia mais nos sonhos de quem falava alto em português.


Os Kariri, Karapotó, Aconã, com mais de seus parentes recém chegados Natú, Xocó que vieram do Panema foram empurrados para o norte, onde a mata ainda cantava. Uma trilha de poeira abriu-se entre mandacarus: ali nasceu a Rua dos Índios. Levamos conosco potes de barro ainda úmidos, espelhos de quijá e as histórias guardadas em cada nome: Jurumbá, Jakui, Pindaíba, Maruandá. Quando a lua subiu naquela primeira noite, parecia espanto: longe do sino, mas perto das estrelas, a rua nascia sem lâmpadas — iluminada por fogueiras e sonhos persistentes.


4. O Imperador e o Pajé (1859)


Quase um século depois, um vapor branco soprou fumaça no porto: D. Pedro II descera para ver de perto suas províncias. A comitiva marchou em nuvem de poeira até a igreja. O Imperador, de casaca azul-petróleo, esperava encontrar povoado manso; encontrou o pajé Manoel Baltazar parado na escadaria, tal qual tronco de jatobá. Contam que o pajé ergueu o braço, e o Imperador, curioso, abaixou a cabeça para ouvir:


— As águas que banham teu Império correm também por nossas veias. Lembra-te disso quando voltares ao teu palácio.


Diz-se que D. Pedro guardou a frase num caderno de capa de couro. Na Rua dos Índios, a visita virou lenda: “O homem-mais-importante-do-mundo inclinou-se diante do nosso pajé.” E a rua brilhou naquela noite — lamparinas tremulando como vaga-lumes eternos.


5. Os 215 anos (1763-1978) 





Gerações passaram, e cada geração fez da rua um refúgio e um estandarte. Nas paredes de pedra-canga, cruzes católicas dividiam espaço com grafismos de jiboias e sóis. Nos quintais, canteiros de milho dançavam ao som de sanfonas. Havia rezas em português para agradar o padre e cantos em Kariri para não esquecer quem éramos.


A Rua recebeu também o nome de São Vicente por causa de uma fábrica de algodão em 1937 e que depois passou a ser Usina São Vicente se beneficiamento de arroz, assim para ter um novo endereço comercial e jurídico. Mas a tradição registrou como Rua dos Índios. 


Mas o asfalto chegou, negro e quente, anunciando o “progresso”. Em 1978, cerca de 96 % dos indígenas foram morar na Fazenda Modelo para erguer a nova Aldeia Kariri-Xocó, outros ficaram por amor ao lugar, mas fica logo ali pertinho ao lado dos parentes. 


Epílogo: As raízes e o tronco


Aruã, o avô contador, concluiu a história olhando para minhas mãos:


— Quando pisares na Rua São Vicente, escuta. O chão fala. Diz o que foi silenciado.


Hoje, quando passo por ali, sinto o rumor de passos antigos sob o cimento. Vejo o pajé Baltazar piscando nas sombras da igreja; ouço mulheres cantando ladainhas que começam em latim e terminam em Kariri. E lembro-me do oitizeiro: quanto mais o empurram, mais fundo ele finca as raízes.


Porque, afinal, não importa quantas vezes mudem o nome de nossas ruas: o centro sempre caminha conosco.




VISITA DO IMPERADOR D. PEDRO II A ALDEIA KARIRI DE COLÉGIO





Na  alvorada de 16 de outubro de 1859, o vapor Pirajá singrava as águas serenas do Rio São Francisco, cortando o silêncio matinal com o som ritmado de sua chaminé. Sobre o convés, o Imperador Dom Pedro II, de olhar curioso e contemplativo, apreciava a paisagem que se descortinava: a exuberância do sertão nordestino, o verde que se dobrava à margem das águas, e, mais adiante, os contornos da antiga Aldeia de Colégio, berço do povo Kariri. 


Ao seu lado, a Imperatriz Dona Teresa Cristina se protegendo do calor sob uma sombrinha de tecido claro, admirava a grandiosidade do rio e a movimentação que se via ao longe. Faziam parte da comitiva ilustres personagens: o presidente da Província de Sergipe, Manuel da Cunha Galvão; o conselheiro João de Almeida, ministro do Império; o visconde de Sapucaí e o barão de Atalaia, homem de fala pausada e olhar atento.


Quando o Pirajá aportou, os sinos da antiga missão jesuítica repicaram, misturando-se ao canto das aves. Na margem, sob a sombra de uma gameleira imensa, aguardava o chefe tribal Manoel Baltazar, de postura firme e olhar sábio. Ao seu lado, homens, mulheres e crianças de seu povo já dispunham-se em roda, adornados com cocares, colares de sementes e vestes de algodão tingido com as cores da terra.


Dom Pedro II desceu à terra firme, conduzido pela mão firme do presidente da Província. Foi então que, com passos compassados, Manoel Baltazar se aproximou e, erguendo o braço em saudação, entoou o Toré, cântico ancestral que ecoou por toda a povoação. Outros membros do povo Kariri se juntaram a ele, formando uma roda viva, os pés batendo no chão em cadência com os maracás que tilintavam como o som das águas do rio.


O Imperador, surpreso e emocionado, retirou o chapéu em sinal de respeito e permaneceu imóvel, absorvendo aquela manifestação tão viva e forte da cultura indígena. A Imperatriz sorriu discretamente, encantada com a beleza e a dignidade do momento.


Manoel Baltazar, após o Toré, aproximou-se e, num português entrecortado pelas raízes de sua língua, deu as boas-vindas ao Imperador:


— Seja bem-vindo à nossa terra, senhor Dom Pedro. Que o rio e os espíritos da mata lhe tragam bons caminhos.


Dom Pedro II agradeceu com palavras gentis, expressando sua admiração pelo povo e pela cultura daquele lugar, que há séculos resistia, mantendo viva a memória dos antigos.


Durante alguns minutos, a comitiva permaneceu na Aldeia de Colégio, trocando cumprimentos, partilhando frutas nativas e ouvindo as histórias contadas pelo ancião da tribo, que falava das épocas em que os primeiros padres haviam ali chegado, e das lutas silenciosas para manter as tradições diante do avanço do mundo dos brancos.


Antes de partir, Dom Pedro II voltou-se novamente para Manoel Baltazar, e, segurando a borda de seu manto imperial, fez uma leve reverência.


— Guardarei para sempre na memória esta recepção e este canto, que são a alma desta terra.


O povo, então, entoou uma última vez o Toré, desta vez como despedida, enquanto o Imperador e sua comitiva retornavam ao Pirajá, que lentamente deixou o cais, subindo o rio São Francisco rumo às águas caudalosas da Cachoeira de Paulo Afonso, onde outras comunidades também aguardavam a passagem do monarca.


Na margem, Manoel Baltazar e os seus permaneceram, acenando silenciosamente até que o vapor sumisse na curva do rio, levando consigo a lembrança daquele encontro onde tradição e poder se entrelaçaram, sob o testemunho eterno das águas e da mata.




DUBOHERÍ SURÉTÉ, UM PROFESSOR INDÍGENA NA FREGUESIA 





Desde tempos muito antigos, quando o grande rio São Francisco serpenteava majestoso pelo sertão, duas aldeias viviam unidas como irmãs: Porto Real do Colégio e São Braz, nas terras quentes de Alagoas. Eram tempos das missões jesuíticas, quando os Kariri-Xocó aprendiam a resistir, a transformar e a preservar sua essência, mesmo entre as cruzes e espadas que insistiam em redesenhar o destino.


Dizem os anciãos que as aldeias foram unidas não apenas pela geografia ou pela história escrita nos papéis dos brancos, mas pela alma dos povos que sopravam, dia após dia, o Toré, ritual sagrado, onde se canta, dança e se vive o espírito ancestral. No Toré, um homem destacava-se: Surété, aquele a quem chamavam o Soprador Mágico Verdadeiro um tocador de buzo instrumento de sopro do toré.


O João Nunes de Oliveira foi uma pessoa muito dedicado aos estudos e também muito devoto a religião católica, acho que ele queria mesmo era aprender a profissão de professor. Os indígenas de Alagoas e da Aldeia de Colégio perdeu autonomia como povoação nativa em 1873. 


Segundo a tradição João Nunes de Oliveira fez parte das últimas turmas que estudaram no Colégio já em ruínas na antiga aldeia, assim se tornou um bom instrutor e professor posteriormente. Talvez tenha estudado em Penedo para completar seu estudos, considerando que a Aldeia do Colégio fazia parte da cidade de Penedo.


A Freguesia de São Braz foi criada pela lei n⁰ 702 de 19 de maio de 1875 desmembrada de Collégio do Porto Real. A Província de Alagoas designou para a Freguesia o vigário encomendado Padre Virissimo da Silva Pinheiro; Juízes da Paz: Luiz José Bezerra, José Antônio da Silva...; Professores Públicos: João Nunes de Oliveira e D. Tertulina Maria Tavares; Subdelegados de Polícia: André de Farias Lima; Supplentes: Luiz Vieira Dantas, Antônio Francisco Tavares....


Surété sabia que seu nome carregava o peso e a leveza de muitas gerações: era o mestre do sopro que acordava os espíritos, o Duboherí, o condutor do ritmo, aquele que fazia vibrar a trombeta mágica do Toré, convocando todos à roda da tradição. No som que ele extraía de seu instrumento, havia o eco das matas, o murmúrio das águas e a firmeza das raízes que se enterravam fundas no solo de Porto Real do Colégio.


Surété chamava-se também João Nunes de Oliveira, nome que os homens das leis escreveram nos livros, mas, na língua do povo, ele sempre foi Surété, filho da linhagem dos que nunca se calaram. Como professor na Freguesia de São Braz, desmembrada de Porto Real em 1875, ensinava as letras e os números, mas também ensinava, em segredo, as histórias, os cantos e os segredos do sopro que não podiam ser esquecidos.


De Surété nasceu Manoel Nunes Suré, também conhecido como Manoel Batyté, "o indígena da linhagem verdadeira". Como o pai, também soube guardar a tradição, e passou o bastão ao seu filho, Alírio Nunes Suré, que, por sua vez, transmitiu ao seu filho Nhenety, o guardião das memórias e das palavras que agora se transformam em conto.


Dizem que, quando Surété soprava sua trombeta no Toré, os espíritos ancestrais dançavam invisíveis ao redor da fogueira, e o povo sentia a força do seu sangue pulsar ainda mais forte. Assim, a tradição oral seguiu seu curso, como o próprio Velho Chico, caudaloso e imortal, preservando o nome, o sopro e o ritmo.


Entre mestres e discípulos, entre nomes portugueses e nomes sagrados, uma verdade permanece: o Duboherí, o mestre, nunca morre. Ele se transforma no sopro, no canto e na memória viva de um povo.


E assim, até hoje, na terra de Porto Real do Colégio e São Braz, quando o Toré é dançado e o sopro mágico atravessa o ar quente da aldeia, dizem que é Surété quem ainda sopra, guiando os passos, ensinando os ritmos e mantendo viva a alma Kariri-Xocó.



FONTES: 



ALMANAK da Província de Alagoas (AL). 1873 a 1880. DocReader Web. Disponível em: https://memoria.bn.br/DocReader/DocReaderMobile.aspx?bib=706035&PagFis=686&Pesq=uni%C3%A3o%20mercantil. Acesso em: 6 jun. 2025.


ORAL TRADIÇÃO. Povo Kariri-Xocó, através de das histórias nas fogueiras com anciãos. Entre 1980 a 1990. Porto Real do Colégio, Alagoas. 




DZEANIEÁ, O CONTO DOS NOMES INDÍGENAS 





Na beira do Opará, quando o céu começava a se tingir de cores douradas e avermelhadas, Piracy, a “mãe dos peixes”, chamava sua filha, Neêperé, para sentar-se à sombra da gameleira sagrada. O rio sussurrava seus mistérios e os pássaros voavam baixo, como se quisessem também ouvir a conversa entre mãe e filha.


Piracy, com a paciência de quem conhece os ciclos da vida, ajeitava as folhas no chão e dizia:


— Venha, minha filha. Hoje contarei mais histórias dos nossos nomes, para que nunca esqueças quem és, quem somos.


Neêperé correu, animada, sentando-se ao lado da mãe, encostando a cabeça em seu braço forte e moreno como o tronco da gameleira.


— Ontem você me falou de Piragibe, de Jaciara e de Canindé… — lembrou Neêperé com um sorriso — Quero ouvir mais!


Piracy sorriu e olhou para o rio, como quem busca nas águas as lembranças:


— Havia também Pindaíba, que caçava com astúcia e nunca voltava de mãos vazias… E Pacatuba, que sabia ouvir o silêncio das árvores.


Fez uma pausa e olhou fundo nos olhos da filha:


— Cada nome tinha um sentido, uma história, um espírito que guiava a pessoa. Nossos nomes eram nossos protetores e nossos destinos.


Neêperé ficou pensativa:


— E por que agora muitos se chamam Maria, José, Manoel...?


Piracy respirou fundo, a voz embargando levemente:


— Porque, minha filha… vieram tempos difíceis.


E então, com aquele tom que misturava ternura e força, começou a narrar como quem invoca os espíritos antigos:


— Lembro do que contava minha avó, que ouviu de sua mãe… Os homens brancos chegaram com suas caravelas enormes, cruzes pesadas e línguas afiadas. Diziam que traziam a salvação, mas também traziam o esquecimento.


Fez um gesto amplo, como quem abarca a vastidão da floresta:


— Eles eram uma mistura de muitos: íberos, celtas, lusitanos, romanos, germânicos, judeus, muçulmanos… Tinham em si o sangue de muitos povos, mas queriam que nós esquecêssemos os nossos.


Neêperé segurou firme a mão da mãe:


— Mas você não esqueceu…


Piracy sorriu, orgulhosa:


— Não. Nem eu, nem tu, nem aqueles que ainda escutam a voz do Opará.


Depois de um breve silêncio, a menina perguntou:


— Mãe… conta como foi quando proibiram nossa língua…


Piracy fechou os olhos, como quem volta no tempo:


— Ah, minha filha… Quando os padres jesuítas chegaram, muitos de nós aprendemos a língua dos Tupis para poder entender e resistir. Mas depois… no tempo do Marquês de Pombal, ele mandou que todas as aldeias se tornassem vilas, cidades… Proibiu nossas línguas, nossos cantos, nossas rezas…


Neêperé arregalou os olhos:


— Como puderam proibir?


Piracy olhou para a filha com doçura:


— Quando proíbem uma palavra, tentam cortar uma raiz. Mas raízes fortes rompem pedras, minha filha.


E então, como fazia sempre que queria que Neêperé jamais esquecesse, pegou um punhado de terra e colocou na palma da mão da menina:


— Sente… aqui está a força dos nossos ancestrais. Eles estão nesta terra, neste rio, nesta árvore… e na tua pele, no teu nome.


Neêperé apertou a terra, como quem guarda um tesouro.


Piracy continuou:


— Mesmo que tentassem nos dar nomes de outros povos — Maria, José, Antônio, Baltazar… — o espírito dos nossos nomes continuava sussurrando nas nossas almas.


Fez mais uma pausa, e olhando o rosto da filha, acrescentou:


— Teu nome, Neêperé, é um chamado. É a “voz ancestral de poder”. Não esqueças: tua missão é lembrar e fazer lembrar.


Neêperé, emocionada, assentiu com a cabeça.


— Mãe… conta mais uma história…


Piracy sorriu e puxou a filha para mais perto:


— Lembras da história de Muirá Ubi?


Neêperé abriu um sorriso:


— Aquele que falava com as árvores?


Piracy confirmou:


— Sim… Dizem que Muirá Ubi nasceu com o dom de ouvir o que as árvores diziam. Antes de cortar um galho ou colher um fruto, ele pedia licença e agradecia. Foi ele quem ensinou aos nossos ancestrais que a mata não se domina, se respeita.


Neêperé fechou os olhos, como se pudesse ouvir as árvores naquele momento.


— Um dia, tu também ensinarás isso aos teus filhos… — completou Piracy.


A menina sorriu, abraçando forte a mãe.


O sol começava a se pôr, tingindo o céu com tons de fogo e esperança.


Piracy então se levantou, estendendo a mão para a filha:


— Venha, vamos ao rio. Quero te mostrar o lugar onde minha avó, tua bisavó, me contava estas histórias, e onde um dia tu também contarás aos teus.


As duas caminharam de mãos dadas até a beira do Opará. O rio seguia, eterno, levando e trazendo memórias.


E ali, sob o céu estrelado que começava a despontar, Neêperé prometeu em silêncio que jamais deixaria os nomes se perderem.


Porque, como sempre dizia sua mãe:


“Quando um nome é pronunciado com amor, ele nunca morre.”


E assim, o espírito dos nomes indígenas continuava vivo, forte, fluindo como o próprio rio.


Os anos passaram, como as águas do Opará que nunca param de correr.


Neêperé cresceu, aprendeu a respeitar e ouvir a voz da terra, a linguagem do rio e os segredos das árvores, como sua mãe, Piracy, lhe ensinara. Casou-se, teve filhos, e quando o tempo se fez maduro, nasceu Indaiá — sua neta, flor silvestre, forte e delicada como a árvore que lhe emprestou o nome.


Indaiá corria pela aldeia, com os pés descalços, os cabelos negros esvoaçantes, colhendo flores e ouvindo os cantos dos pássaros.


Numa tarde em que o céu se tingia com as mesmas cores que um dia tingiram as tardes de Piracy, Neêperé chamou sua neta:


— Indaiá, venha cá!


A menina correu e se aninhou aos pés da avó, como fazia quando queria ouvir uma de suas histórias.


Neêperé passou a mão carinhosa pelos cabelos da neta e disse:


— Hoje vou te contar uma história muito antiga… sobre os nomes que correm em nosso sangue, como corre o rio.


Indaiá abriu bem os olhos, curiosa:


— Sobre os nossos nomes?


Neêperé sorriu, vendo nela o brilho inquieto de todas as mulheres da sua linhagem:


— Sim, minha netinha. Havia uma mulher forte, chamada Piracy, a mãe dos peixes… minha mãe, tua bisa…


E então, com a voz embargada de emoção, Neêperé contou à neta as mesmas histórias que ouvira sob a gameleira, quando também era apenas uma menina.


— Ela me ensinou que nossos nomes guardam nossas histórias, que eles falam da nossa ligação com a terra, com os rios, com o céu…


Fez uma pausa, olhando para o horizonte, onde o rio brilhava sob o sol poente:


— Mas, um dia, tentaram nos tirar isso…


Indaiá franziu o cenho:


— Quem, vovó?


Neêperé respirou fundo:


— Aqueles que vieram do outro lado do mar. Eles chegaram com suas cruzes, suas armas, suas leis… Quiseram apagar nossa fala, mudar nossos nomes…


Indaiá, aflita, perguntou:


— E conseguiram?


A avó sorriu, acariciando-lhe o rosto:


— Conseguiram em parte… Muitos de nós passaram a se chamar Maria, José, Antônio… Mas, dentro de cada um, a força do nome antigo nunca morreu.


Apontou para o peito da neta:


— Está aqui… dentro de ti.


Indaiá colocou a mão no coração, sentindo o calor das palavras da avó.


— Por isso me chamo Indaiá?


Neêperé assentiu:


— Sim, para que nunca esqueças quem és, para que continues a tecer essa rede invisível que liga Piracy, Neêperé e agora… Indaiá.


A menina sorriu, feliz, e deitou no colo da avó.


O vento soprou suave entre as folhas da gameleira, e o Opará continuou a cantar seu canto milenar.


E então, olhando o céu que começava a se encher de estrelas, Neêperé disse, quase num sussurro:


— Um dia, minha neta… tu também contarás essa história aos teus filhos, aos teus netos… E eles contarão aos deles…


Indaiá fechou os olhos, abraçada à avó, e prometeu, em silêncio:


“Nunca deixarei os nomes se perderem.”


E assim, naquela tarde banhada de luz dourada, o ciclo se completou — e seguiu adiante, como sempre seguiu, desde o tempo das origens, desde quando o Opará começou a correr.




Autor dos Contos: Nhenety Kariri-Xocó 




📜 APÊNDICE POÉTICO


No rastro da narrativa

Que os contos deixam no chão,

Reúno aqui os detalhes

Que ampliam a compreensão.

É trilha viva e sagrada,

Fruto da alma encantada

Do povo e da tradição.


Se algum mistério profundo

Nas entrelinhas ficou,

Neste apêndice repousa

O que a memória guardou.

Pois cada verso é um rio,

Cada palavra é um fio

Que o tempo não apagou.


Aqui se unem ensinanças,

Sabedoria do mato,

O vento antigo da aldeia,

O canto forte no trato.

E tudo o que o leitor sente,

Mansamente ou de repente,

Ecoa em cada relato.



📜 GLOSSÁRIO 



Duboherí — Mestre, professor, aquele que ensina as tradições. 


Merabodzó – O nome do  Machado de Ferro, que os indígenas designaram no século XVII. 


Cradzotçó – O Boi Preto Mau, criatura lendária dos Kariri-Xocó que assombrava as pessoas no princípio da criação de gado no século XVII. 


Cramenu Dzoré – O tesouro dos jesuítas guardou no rio São Francisco, na época de sua expulsão da Missão do Colégio em 1759.


Crazokipi – O Bezerro de Bronze, tipo escultura oca com alçapão utilizado no período colonial símbolo da criação de gado.


Dzeanieá – Os nomes próprios dos  indígenas Kariri nomeados na tradição oral seguindo os ritos iniciático.


Keruenaraí – Os animais domésticos trazido pelos colonizadores, nome designado pelos Kariri. 


Natiá  – O nome de aldeia original na língua dos Kariri.


Neêperé – A “voz ancestral de poder”, nome de uma anciã de grande sabedoria, da Aldeia de Colégio da etnia Natu, viveu desde início do século XIX e meados do século XX. 


Nuirá Ubi  – O nome de uma liderança indígena do século XVII, esse nome significa "Arco Verde".


Opará  – O nome significa "Rio mar", que os nativos chamavam, posteriormente em 1501 passou a ser chamado Rio São Francisco pelos colonizadores. 


Piracy  – A “mãe dos peixes”, também o nome de uma indígena mãe de Neêperé ( Maria Tomazia ), início do século XIX.


Surété  – o Soprador Mágico Verdadeiro um tocador de buzo instrumento de sopro do toré, também um indígena Kariri miscigenado que tornou-se professor no final do século XIX na Freguesia de São Braz em 1875.


Subatewaerá — O nome do Colégio dos Jesuítas dados pelos Kariri em sua língua nativa.







📜 DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR


Nhenety Kariri-Xocó

Filho do povo Kariri-Xocó, de Porto Real do Colégio (AL), nascido das águas do Opará e das histórias dos mais velhos. É contador de histórias oral e escrita, guardião de memórias e pesquisador das raízes sagradas do seu povo.


Tem dedicado sua vida a preservar a tradição, o canto, a cultura e a espiritualidade ancestral. Escreve cordéis, contos, narrativas poéticas e pesquisas culturais, sempre unindo ancestralidade, sensibilidade e firmeza histórica.


Seu dom nasce da oralidade dos anciãos, da dança dos rituais, do som dos maracás e do fogo que aquece a palavra.

Nhenety escreve não apenas para registrar, mas para manter vivo o espírito do encantamento e fortalecer a cultura indígena no Brasil contemporâneo.



📜 ORELHA DO LIVRO (TEXTO POÉTICO E EDITORIAL)


Este livro é mais que um conjunto de contos:

é uma trilha aberta no coração da ancestralidade.

Nhenety Kariri-Xocó, com sua pena firme e sua voz ancestral, tece narrativas que caminham entre o real e o encantado, entre o ontem e o agora. Seus versos trazem a força do povo, a ciência da mata, o perfume da tradição e o brilho dos encantados.


Aqui, cada relato é um portal.

Cada estrofe é uma semente.

Cada palavra guarda um mundo.


A obra convida o leitor a entrar na aldeia espiritual dos Kariri-Xocó, tocando memórias que vêm da terra, da água, do vento e do fogo. É literatura, mas também é ritual. É poesia, mas também é ensinamento. É história, mas também é futuro.


Um livro para sentir, sonhar, pensar e respeitar.

Um presente da ancestralidade para o mundo.

Uma voz que se ergue, firme e suave,

para lembrar que a cultura indígena respira, floresce, vive e ensina.






Autor: Nhenety Kariri-Xocó 



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