🔹️FALSA FOLHA DE ROSTO
(WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ, RUA DOS ÍNDIOS TRAVESSIA DO TEMPO, Contos – Volume 5 – Coletânea)
WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ, RUA DOS ÍNDIOS TRAVESSIA DO TEMPO
Contos – Volume 5 – Coletânea
Nhenety Kariri-Xocó
🔹️VERSO DA FALSA FOLHA DE ROSTO
(Espaço normalmente em branco ou com pequena nota editorial; aqui segue sugestão)
Primeira edição: [ANO]
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, armazenada em sistema de recuperação ou transmitida, por qualquer forma ou meio, sem a permissão por escrito do autor, salvo nos casos previstos pela legislação.
Contato do autor / informações: kxnhenety.blogspot.com
🔹️FOLHA DE ROSTO (FRONTISPÍCIO)
WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ, RUA DOS ÍNDIOS TRAVESSIA DO TEMPO
Contos – Volume 5 – Coletânea
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
[Local da publicação: Cidade]
[Editora: Nome da Editora] — [Ano]
🔹️FICHA CATALOGRÁFICA (MODELO — preencher dados finais por favor)
(Adaptada para uso em lombada e catálogo; siga normas da Biblioteca Nacional / ABNT quando enviar para catalogação oficial.)
Nhenety, Kariri-Xocó.
Woroy história, Kariri-Xocó, Rua dos Índios — Travessia do tempo : contos / Nhenety Kariri-Xocó. — 1. ed. — [Cidade] : [Editora], [Ano].
ISBN: [inserir ISBN]
Literatura indígena brasileira. 2. Contos. 3. Kariri-Xocó — Memória e história. I. Título.
CDD: [inserir classificação]
Observações para completar a ficha: substituir [Cidade], [Editora], [Ano], [ISBN], e escolher CDD apropriado. Para depósito legal ou envio a bibliotecas, informe tiragem e responsabilidades editorial/produção.
🔹️DEDICATÓRIA
Aos avôs e avós da Rua dos Índios, às mães, aos pescadores, aos que guardam o nome do rio e das lendas — que me ensinaram a palavra que cura.
Dedico este volume ao Povo Kariri-Xocó, memória e resistência.
🔹️AGRADECIMENTOS
Agradeço às anciãs e anciãos que confiaram suas histórias; às mulheres que bordaram memórias em silêncio; aos parentes de Porto Real do Colégio que abriram suas portas; ao pajé Manoel Paulo e a todos que me ensinaram o canto do maracá; ao estudioso Carlos Estêvão — pelas conversas que ajudaram a preservar nomes; e à minha família, que suportou o trabalho e guardou os contos na calada da noite.
Gratidão também a leitores e leitoras que manterão essas vozes vivas.
🔹️EPÍGRAFE
“Enquanto houver memória, haverá travessia; enquanto houver palavra, haverá vida.”
— Provérbio Kariri-Xocó
🔹️SUMÁRIO (ÍNDICE)
(Organizo os contos como capítulos numerados; depois cada conto terá subtítulos e eventuais notas)
Prefácio .............................................. pág. [..]
Apresentação ....................................... pág. [..]
Introdução .......................................... pág. [..]
Contos:
Nheêperé, A Voz Ancestral Que Fala com Poder .................................. pág. [..]
A Travessia Épica dos Xocó, A Última Jornada da Caiçara ............... pág. [..]
O Conto da Travessia, A Formação da Comunidade Kariri-Xocó ........ pág. [..]
A Resistência de Inocêncio Muirá e o Retorno à Aldeia Kariri de Colégio .... pág. [..]
Rocrutsohó, A Roupa da Comunidade ............................... pág. [..]
Carlos Estevão na Rua dos Índios, Um Encontro com a Resistência Ancestral .... pág. [..]
A Rua dos Índios Nossa Aldeia ... pág. [..]
Caminhos da Colônia ................. pág. [..]
A Rua dos Índios Reformada ..... pág. [..]
A Travessia: Da Rua dos Índios à Aldeia Kariri-Xocó ............................... pág. [..]
Apêndice A — Glossário (termos e nomes indígenas mencionados) ............ pág. [..]
Apêndice B — Notas e Fontes .......................................... pág. [..]
Glossário ....................... Pág. [..]
Dados Biográficos do Autor ........................................... pág. [..]
Orelha (Texto da orelha do livro) .................................... pág. [..]
Ficha Técnica / Créditos de Produção ................................. pág. [..]
Capa e Contracapa (descrição para arte final) ........................ pág. [..]
🔹️PREFÁCIO
A palavra é uma semente que nunca morre. Viaja pelas noites, atravessa o sopro dos ancestrais, finca raízes no coração do povo e ressurge, sempre nova, em cada geração. É assim que nascem estes contos, deste Volume 5 da Coletânea Woroy História, Kariri-Xocó, Rua dos Índios — Travessia do Tempo: fruto vivo da oralidade que sustenta o caminhar do povo Kariri-Xocó e de todos aqueles que reconhecem na memória uma forma de existir.
Nhenety Kariri-Xocó, contador de histórias e guardião de lembranças, transforma neste livro a tradição ancestral em narrativa escrita, preservando o que antes corria apenas pelas fogueiras, pelas rodas comunitárias, pelas margens do São Francisco. Cada conto aqui reunido é um território espiritual, um ponto de encontro entre passado, presente e futuro; entre seres humanos, encantados e as forças sagradas da natureza.
Este Prefácio não pretende explicar os contos — porque a verdadeira explicação mora no sentir — mas situar o leitor nesta travessia. A obra que segue é um convite ao mergulho no imaginário indígena, onde cada passo ecoa a sabedoria antiga e cada silêncio guarda um ensinamento. Ler estes textos é caminhar com respeito sobre solo sagrado; é também um gesto de reconhecimento da resistência cultural que mantém viva a identidade Kariri-Xocó diante das transformações do mundo.
Que o leitor siga esta trilha com reverência. Que permita que as palavras o conduzam. E que, ao final, compreenda que a história que se lê aqui é a própria respiração da ancestralidade.
— Prefaciador
(espécie de assinatura opcional que pode ter nome real, espiritual ou simbólico, caso deseje incluir depois)
🔹️APRESENTAÇÃO
Este livro nasce de uma caminhada longa, tecida por histórias que atravessam gerações. Woroy História, Kariri-Xocó, Rua dos Índios — Travessia do Tempo é mais do que uma coletânea: é uma celebração da narrativa indígena, da resistência cultural e da força criadora que habita cada passo do povo Kariri-Xocó. Aqui, o autor, Nhenety Kariri-Xocó, se apresenta como ponte entre mundos — entre o passado contado pelos mais velhos e o presente que continua escrevendo sua própria história.
Os contos reunidos neste Volume 5 seguem uma trilha que refaz a memória do povo, mas não de maneira linear. Eles se movem como as águas do Velho Chico: às vezes calmas, às vezes turbulentas, sempre profundas. São narrativas que carregam ensinamentos, humor, magia, força espiritual, relatos de luta e também de encantamento. Cada história revela um pedaço da identidade Kariri-Xocó — seja pela voz dos ancestrais, pela vida comunitária ou pelos sinais que a natureza oferece a quem sabe escutá-la.
O livro também celebra a Rua dos Índios como espaço simbólico: um lugar onde as histórias se cruzam, onde a travessia do tempo se faz presente e onde o passado continua a soprar nos ouvidos daqueles que ousam ouvir. Ao apresentar esta obra, convida-se o leitor a entrar neste território com respeito, sensibilidade e coração aberto.
A palavra é um instrumento vivo. E este livro é mais uma forma de mantê-la pulsando.
Que a leitura seja uma viagem.
Que cada conto seja um reencontro.
E que a travessia do tempo permaneça.
🔹️INTRODUÇÃO
A travessia do tempo não se faz apenas pelos passos que damos, mas pelas histórias que carregamos. Cada povo guarda em sua memória um conjunto de narrativas que ensinam, protegem, orientam e fortalecem. Entre os Kariri-Xocó, essas histórias são caminhos sagrados: fios que conectam os seres humanos à natureza viva, aos encantados, aos antepassados e ao grande espírito que sustenta a vida.
Este livro — Woroy História, Kariri-Xocó, Rua dos Índios — Travessia do Tempo, Contos – Volume 5 – Coletânea — nasce do compromisso de transformar a oralidade em escrita sem que se perca a sua alma. Ele é uma continuidade de quatro volumes anteriores, mas também uma obra que pode ser lida por si mesma, pois cada conto aqui reunido é completo, carregado de sentido próprio e profundamente enraizado na visão de mundo indígena.
A Rua dos Índios, espaço simbólico desta coletânea, é mais do que um endereço: é o território onde as vozes se encontram, onde os passos dos antigos ecoam entre as casas, onde a infância aprende a ver o mundo com os olhos dos mais velhos, e onde o tempo não obedece ao relógio, mas sim ao ritmo da memória. É nesse chão que a ancestralidade se deita e desperta; onde os contos nascem e renascem.
A intenção desta obra é registrar esses caminhos de sabedoria, honrando o jeito próprio do povo Kariri-Xocó de sentir e pensar o mundo. Aqui, realidade e encantamento caminham juntos, como sempre caminharam na tradição oral. Não se trata de fantasia, mas da visão ampliada daqueles que reconhecem que a vida é feita de múltiplas camadas — visíveis e invisíveis — que coexistem e se conversam.
Ao transformar essas histórias em escrita, o autor reafirma que a memória indígena é viva, dinâmica e resistente. Este livro é um gesto de preservação, mas também de afirmação identitária. É uma forma de dizer às futuras gerações: “Aqui estão nossos caminhos, nossas vozes, nossos ensinamentos; que vocês os levem adiante.”
Que esta Introdução prepare o coração do leitor para a caminhada.
Que o espírito da palavra o acompanhe.
E que, ao final, cada história cumpra seu papel de tocar, ensinar e transformar.
CONTOS:
NHEÊPERÉ, A VOZ ANCESTRAL QUE FALA COM PODER
Na aurora dos tempos, quando o Opará ainda sussurrava segredos apenas aos que sabiam escutá-lo, existia, firme como o tronco do jenipapeiro, a antiga Aldeia de Colégio. Ali, entre as águas abundantes e a mata generosa, vivia a grande família Pirigipe — os “Pescadores”, conhecidos por todos como Baca, o “Povo da Flecha”.
O nome Pirigipe vinha do casamento das palavras pirá, o peixe, e gibe, a nadadeira, revelando os que sabiam nadar entre os cardumes e capturá-los com maestria. Já Baca vinha de abá, o povo, e aca, o bico da flecha, os que transformavam o arco e a flecha em extensão de seu próprio corpo, pescadores e guerreiros do rio.
Dessa linhagem destemida nasceu aquela cujo nome seria gravado na eternidade: Nheêperé — a “Palavra Mágica”, “Aquela que fala com poder”. Seu nascimento foi saudado pelas águas do Opará e pelos ventos da mata; os anciãos logo perceberam que ali estava uma mulher escolhida pelos seres sagrados, dotada do dom raro de fazer da fala um caminho de sabedoria e força.
Naquela aldeia, que era abrigo para muitos, encontravam-se povos irmãos: Kariri, Karapotó, Aconã, Natu e Xocó. Fugidos das dores impostas pelos colonizadores, haviam tecido uma só teia, um só canto, uma só resistência. E entre eles, Nheêperé erguia-se como a mais sábia, guardiã das histórias, detentora das palavras que curavam e orientavam.
Contam os mais velhos que Nheêperé, com seu ornado de flores no cabelo e seu olhar que atravessava o tempo, estava presente quando, em 1859, o Imperador D. Pedro II visitou a aldeia. Lá, sua presença silenciosa, mas cheia de dignidade, testemunhou os encontros e os desencontros entre os mundos.
Era filha do valente indígena Manoel Altanásio, cabo de esquadra que andava lado a lado com o Capitão-Mor Pedro Lolaço, seu parente e companheiro nas andanças pelos sertões e pelas lutas que garantiram a sobrevivência de sua gente.
Os ciclos do tempo giraram, como gira a correnteza do Opará. Nheêperé viveu cento e quinze anos, vendo a aldeia transformar-se em cidade, em 1876, e com o coração sangrando, prometeu: “Minha palavra não descansará até que meu povo seja reconhecido.”
E assim foi. Já anciã, com a força das raízes profundas, em 1935, conversou com o estudioso Carlos Estevão, do Museu Goeldi. Sua fala firme e verdadeira permitiu que ele a reconhecesse como pertencente à etnia Natu. Esse encontro foi como o disparo certeiro de uma flecha: cruzou os ventos do tempo e preparou o caminho para a proteção de seu povo.
Por sua voz, em 1944, foi criado o Posto Indígena Padre Alfredo Dâmaso, pelo Serviço de Proteção aos Índios — o SPI —, marco de resistência e sobrevivência para aqueles que a terra e o rio geraram.
Nheêperé, a incansável, viveu para ver seu povo novamente protegido, para ver a promessa cumprida. Partiu em 1953, deixando atrás de si não apenas uma história, mas um legado, como uma árvore que, ao cair, espalha sementes por toda a floresta.
E assim, até hoje, nas margens do Opará, quando o vento balança as folhas e as águas sussurram, os mais atentos podem ouvir: é a voz de Nheêperé, a Palavra Mágica, a Anciã que fala com poder, ensinando que enquanto houver memória, há resistência, e enquanto houver palavra, há vida.
A TRAVESSIA ÉPICA DOS XOCÓ, A ÚLTIMA JORNADA DA CAIÇARA
No alvorecer sombrio do século XIX, quando as estruturas do Império do Brasil se erguiam indiferentes aos povos originários, uma tragédia silenciosa abatia-se sobre as margens do Baixo São Francisco. Entre as aldeias esquecidas, a Missão dos Índios Xocó, na Ilha de São Pedro, Porto da Folha, na Província de Sergipe, viu-se traída pela História: suas terras, consagradas pelo sangue e pela memória de gerações, foram postas à venda, leiloadas como mercadoria, arrancadas de seus legítimos guardiões.
Diante da ruína iminente, ergueu-se a figura altiva do cacique Inocêncio Muirá — homem de sabedoria ancestral, guerreiro de fibra e guardião das tradições de seu povo. Sob sua liderança, os Xocó tomaram a mais difícil das decisões: partir. Deixar para trás o solo sagrado, os roçados, os cemitérios, as árvores que sussurravam as histórias de seus antepassados.
Reunidos, com seus pertences mais essenciais — os adornos rituais, os arcos, as cuias, os remédios da floresta —, embarcaram na monumental Canoa de Tolda Caiçara, símbolo de resistência e esperança. A embarcação, robusta e venerável, era mais que madeira e vela: era o ventre que os acolheria na travessia para um novo destino.
Assim, no dia 4 de janeiro ano de 1882, rompeu-se o elo físico com a Ilha de São Pedro, mas fortaleceu-se o vínculo espiritual entre o povo Xocó e o grande rio. Navegaram sob o olhar severo das matas e o canto solene das águas do Velho Chico, enquanto os anciãos entoavam preces aos antepassados e protetores invisíveis que, desde tempos imemoriais, zelavam pela jornada de seus filhos.
A travessia não foi apenas geográfica, mas cósmica: um rito de passagem coletivo, no qual um povo inteiro renunciava à sua terra para preservar sua dignidade.
Finalmente, após dias de jornada extenuante, a proa da Caiçara cortou as águas diante da aldeia Kariri, em Porto Real do Colégio, já na Província de Alagoas. Lá, erguia-se com nobreza o pajé Manoel Paulo, líder espiritual dos Kariri, que, com maracá em punho e olhos plenos de compaixão, saudou os exilados como irmãos de sangue e de luta.
Não houve resistência, não houve estranhamento: o abraço fraterno selou a aliança entre dois povos que, embora marcados pelas dores da colonização e do abandono imperial, mantinham viva a chama da ancestralidade.
Este episódio — a travessia dos Xocó pela Caiçara, o acolhimento pelos Kariri — não foi apenas um movimento de fuga, mas um ato épico de resistência, de afirmação cultural e de esperança, preservado na tradição oral como um dos capítulos mais honrosos da história indígena do Baixo São Francisco.
E assim, enquanto os livros oficiais silenciaram, as águas do São Francisco eternizaram o feito. Até hoje, quando a noite cai sobre as margens do rio e as estrelas se refletem nas águas calmas, há quem escute, entre o murmúrio das folhas e o assobio do vento, o eco longínquo dos remos da Caiçara e a voz do cacique Inocêncio Muirá, conduzindo seu povo à imortalidade.
O CONTO DA TRAVESSIA, A FORMAÇÃO DA COMUNIDADE KARIRI-XOCÓ
O dia amanhecia preguiçoso quando a grande canoa Caiçara, de dois panos estendidos ao vento, deslizou pelo curso sereno, mas imponente, do Rio São Francisco. O céu era uma tapeçaria esgarçada de nuvens claras, refletidas nas águas esverdeadas. A bordo, os Xocós remavam com força e silêncio, enquanto as pequenas canoas de pesca acompanhavam a embarcação-mãe, como filhotes fiéis a um ventre seguro.
Há três dias haviam deixado a Ilha de São Pedro de Porto da Folha, na Província de Sergipe, forçados pela violência dos fazendeiros que, com suas cercas e armas, tomaram a terra que fora sua desde sempre. A aldeia fora invadida, os roçados arrancados, as tabas incendiadas. O cheiro acre da fumaça ainda estava entranhado nas roupas e na memória.
Inocêncio Muirá, o mais velho entre os guerreiros Xocós, fitava as margens distantes, o rosto endurecido, mas o olhar perdido em lembranças:
— Nossa terra ficou para trás... — murmurou para si, e então apertou o remo com mais força, como se assim pudesse vencer a tristeza.
Ao seu lado, a esposa Tertuliana, carregando o filho Kayé de meses preso às costas com um pano trançado, sussurrou:
— E para onde vamos, Inocêncio? Encontraremos paz?
O ancião demorou alguns instantes antes de responder, olhando para o horizonte, onde o rio se alargava.
— Vamos para onde nossos parentes Kariri nos esperam. Lá seremos acolhidos. Lá, nossa raiz encontrará outra raiz, e de ambas nascerá uma nova árvore.
Durante a travessia, paravam nas ilhotas escondidas entre a vegetação. Os homens pescavam com redes artesanais, enquanto as mulheres cozinhavam o peixe e colhiam frutos silvestres. As crianças corriam entre as pedras, brincando, ignorantes da dor dos adultos.
Numa dessas paradas, à beira de uma ilha sombreada por ingazeiras, um dos jovens guerreiros, Zé Maromba, ergueu os olhos para o céu avermelhado do entardecer e disse:
— O rio é largo, mas o nosso espírito é mais forte.
Inocêncio assentiu, e os demais, silenciosamente, retomaram a jornada ao amanhecer.
No terceiro dia, finalmente avistaram as margens da Província de Alagoas. A névoa baixa começava a se dissipar quando o perfil da Aldeia de Colégio se desenhou no horizonte: algumas casas de taipa com telhados de palha, árvores frondosas, e o movimento discreto de pessoas junto ao rio.
Ao desembarcarem, foram recebidos por uma figura imponente e serena: o pajé Manoel Paulo, líder espiritual dos Kariri. Ele se adiantou, abrindo os braços em sinal de acolhida. Sua voz, grave e pausada, rompeu o silêncio:
— Sejam bem-vindos, parentes Xocós. Esta terra também é de vocês.
Inocêncio se aproximou, curvou levemente a cabeça, e respondeu com respeito:
— Gratidão, pajé Manoel Paulo. Viemos com o coração ferido, mas com a esperança viva.
Manoel Paulo colocou uma das mãos calejadas sobre o ombro de Inocêncio e, olhando em volta para os demais, declarou:
— Aqui, vocês podem construir suas casas, pescar nas mesmas águas, e celebrar seus rituais. A floresta é grande e generosa. O Rio São Francisco é testemunha de nossa aliança.
Guiados pelo pajé, atravessaram a pequena vila e chegaram à Rua dos Índios, onde as famílias Kariri já viviam em casas de palha e barro. As mulheres Kariri vieram ao encontro das visitantes, oferecendo água fresca e pedaços de mandioca assada. As crianças se misturaram, brincando como se já fossem amigas de toda a vida.
À noite, ao redor da fogueira que lançava sombras dançantes sobre as árvores, os dois povos se reuniram. O pajé Manoel Paulo tomou a palavra, erguendo uma cuia de cauim:
— Que esta bebida sagrada celebre nossa união. Kariri e Xocós, agora, são um só.
Todos beberam, e então o velho pajé virou-se para Inocêncio:
— Vocês podem erguer aqui sua Taba do Ritual, podem cantar, dançar e rezar como sempre fizeram. Este lugar será também a morada de seus encantos.
Com os olhos marejados, Inocêncio respondeu:
— Assim será, pajé. Nossa cultura não morrerá. O que nos arrancaram lá, vamos refazer aqui, com nossas mãos e com o apoio dos irmãos Kariri.
Nos dias seguintes, os Xocós começaram a construir suas casinhas de palha ao lado das dos Kariri. As mulheres trançavam folhas de carnaúba com destreza, enquanto os homens fincavam os paus de sustentação no chão fértil da floresta. Logo, a Taba do Ritual foi erguida, ampla, circular, com espaço para as danças sagradas, para os cantos que ecoariam pelas matas e pelo rio.
Certa manhã, o pajé Manoel Paulo e Inocêncio Muirá ficaram lado a lado à beira do rio, olhando as águas seguirem seu curso. O pajé comentou, com um meio sorriso:
— Assim como este rio, nós seguimos em frente, sempre.
Inocêncio, com o olhar firme, respondeu:
— E sempre voltamos à nossa origem, mesmo quando a terra muda.
Dessa união nasceu uma nova aldeia, uma nova identidade: a Comunidade Kariri-Xocó. Os tambores ecoaram novamente, agora mais fortes, misturando as tradições, os saberes, os cantos e os sonhos de dois povos irmãos.
E as águas do São Francisco seguiram testemunhando a resistência e a permanência daquele povo, enquanto as crianças corriam livres pela floresta e os mais velhos ensinavam aos jovens que, mesmo diante das maiores perdas, a cultura e a memória nunca se deixam arrancar.
A RESISTÊNCIA DE INOCÊNCIO MUIRÁ E O RETORNO À ALDEIA KARIRI DE COLÉGIO
Desde o ano de 1882, parte do povo Xocó já havia buscado abrigo na Aldeia dos Kariri de Colégio, situada na Província de Alagoas, como forma de proteger-se das violências e pressões exercidas pelos colonizadores e coronéis da região. Entre os que permaneceram inicialmente na Ilha de São Pedro, no município de Porto da Folha, Província de Sergipe, estavam o cacique Inocêncio Muirá e seu primo, Manoel Muru, também conhecido como Manoel Lapada.
Movidos pelo amor à terra natal e pela resistência cultural, ambos decidiram retornar à ilha, mesmo diante das ameaças constantes dos interesses expansionistas dos coronéis locais, que contavam com o respaldo das leis e das forças imperiais. Naquele momento, cerca de cinco famílias ainda permaneciam na ilha, resistindo à ocupação e à expulsão.
Inocêncio e Manoel lideraram a resistência contra os colonizadores, lutando em defesa do território ancestral do povo Xocó. Contudo, a superioridade bélica e política dos coronéis, respaldada pela estrutura jurídica do Império, inviabilizou a permanência do grupo. A Ilha de São Pedro, antes repleta de vida, foi gradativamente esvaziada. Restaram poucos sinais da presença humana: animais domésticos abandonados — gatos, cachorros, galinhas e patos —, que vagavam pela ilha, simbolizando o lamento silencioso da diáspora forçada.
Em 1899, após anos de resistência e esgotadas as possibilidades de permanência, Inocêncio Muirá e Manoel Muru também deixaram a ilha, descendo o Rio São Francisco em busca de novos espaços de acolhimento. Manoel Muru optou por fixar residência na Aldeia Kariri de Colégio, integrando-se definitivamente à comunidade que já abrigava grande parte do povo Xocó.
Por sua vez, Inocêncio Muirá, ciente de que era uma figura marcada pelos coronéis e politicamente visado, preferiu estabelecer-se no povoado de Carrapicho, em Vila Nova, também na Província de Sergipe. Essa decisão visava manter-se a uma distância segura da cidade de Propriá, situada defronte à Aldeia de Colégio, e epicentro do poder dos coronéis responsáveis pela tomada das terras dos Xocó.
Um dos principais representantes desse poder era o coronel João Profírio, cuja influência política e econômica na região representava um obstáculo à segurança e à permanência de lideranças indígenas como Inocêncio.
Somente após a morte do coronel João Profírio, ocorrida em 1916, o contexto político e social sofreu alterações significativas, permitindo que Inocêncio Muirá pudesse finalmente retornar à Aldeia dos Kariri de Colégio, de onde seu povo nunca deveria ter sido afastado.
Lá, Inocêncio viveu seus últimos anos, restabelecendo os laços com seus parentes e com o território cultural e espiritual do povo Xocó. Faleceu em 1936, encerrando uma trajetória marcada pela resistência, pela luta em defesa do território tradicional e pela preservação da identidade de seu povo frente às adversidades impostas pelo colonialismo e pelo sistema agrário da época.
A história de Inocêncio Muirá e de Manoel Muru representa um capítulo exemplar da resistência indígena no Nordeste brasileiro, evidenciando a complexa relação entre os povos originários e as forças políticas regionais durante o período final do Império e as primeiras décadas da República.
ROCRUTSOHÓ, A ROUPA DA COMUNIDADE
Era uma vez, nas margens do velho São Francisco, um tempo de muita dureza. Na Rua São Vicente, nos arredores de Porto Real do Colégio, viviam os Kariri-Xocó esquecidos pelo poder e lembrados apenas pelos preconceitos. Suas casas eram humildes, feitas de barro e madeira, e a pobreza era como o vento: entrava sem pedir licença e morava com eles.
Minha mãe, Maria de Lourdes Ferreira — conhecida por todos como Indaiá — contava histórias desses dias com os olhos marejados. Era a década de 1920. Os indígenas mal tinham o que vestir. Quando algum deles precisava ir ao centro da cidade comprar farinha, açúcar ou café, sentia o peso da humilhação. Usavam bermudas rasgadas, camisas desbotadas e remendadas, e nos pés, nada. Os brancos zombavam, assobiavam, gritavam ofensas: “Lá vêm os caboclos carniceiros!”
Mas entre os nossos, havia um homem diferente. Seu nome era Gabriel Gonçalves de Oliveira, fazendeiro respeitado e de coração firme. Chamavam-no de Gravié. Era rico, sim, mas não se afastava dos seus. Um dia, cansado de ver seus irmãos passando vergonha, disse com voz decidida:
— Vou fazer a roupa da comunidade.
Foi até a feira e comprou pano cutim azul, uma bolsa de palha bem trançada e um par de tamanco de pau. Sua esposa, dona Maria Matilde, costurou tudo à mão com zelo. A roupa ficou pronta e ganhou um lugar especial: pendurada no torno da sala de Gabriel, como um símbolo sagrado.
Quando algum indígena precisava ir ao centro, batia à porta:
— Seu Gravié, vim pegar a roupa pra ir comprar fumo e farinha.
Gabriel olhava e respondia com um meio sorriso:
— Espere na fila. Já tem quatro antes de você. Sineta ainda tá na bodega de seu Barbino e não voltou.
Assim nasceu Rocrutsohó — a Roupa da Comunidade. Passava de um para outro como se fosse manto de dignidade. Era um gesto de solidariedade, um sopro de resistência em tempos de penúria. Tornou-se também a Roupa da Caridade, e por muitos anos serviu aos nossos como escudo contra a vergonha imposta.
Com o tempo, veio o Posto Indígena, criado por Padre Alfredo Damaso, e as coisas começaram a mudar. Mas a lembrança daquela roupa azul, dos tamancos de pau e da fila na casa do Gravié nunca se apagou. Ela ficou na memória de um povo como símbolo de cuidado e partilha.
E assim, o que era apenas pano, tornou-se história.
CARLOS ESTEVÃO NA RUA DOS ÍNDIOS, UM ENCONTRO COM A RESISTÊNCIA ANCESTRAL
Era manhã de 7 de abril de 1935 quando Carlos Estêvão de Oliveira, renomado pesquisador do Museu Paraense Emílio Goeldi, chegou à pequena cidade de Porto Real do Colégio, às margens do Rio São Francisco, em Alagoas. Trazia consigo cadernos, instrumentos de anotação e um profundo respeito pelas culturas originárias do Brasil. Seu destino era a antiga Rua dos Índios, um espaço esquecido pelas autoridades, mas vivo na memória e na resistência dos povos que ali habitavam.
Ao caminhar pela rua de terra batida, Carlos Estêvão observava atentamente os rostos, os modos de viver, os pequenos sinais que indicavam a continuidade silenciosa de povos que, embora dispersos e forçados à invisibilidade, persistiam: Natu, Prakiô, Kariri e Xocó. Cada expressão, cada palavra ouvida, parecia confirmar o que suspeitava — ali, no coração do Nordeste brasileiro, as raízes indígenas estavam profundamente fincadas, apesar das dores e das perdas.
Foi então que conheceu Maria Tomasia, uma anciã de semblante firme, cabelos trançados e olhar sábio, que aceitara lhe contar as histórias de seu povo. Ela se apresentou como avó de Indaiá, uma menina de apenas nove anos que brincava descalça entre os quintais, alheia à solenidade daquele encontro, mas já parte viva daquela memória ancestral.
Sentados à sombra de um velho juazeiro, Carlos escutou, com o respeito de quem sabe que o conhecimento verdadeiro nasce da escuta. Maria Tomasia falou do tempo antes da criação do município, em 1876, quando seu povo vivia livre nas terras que lhes pertenciam por direito e tradição. Contou sobre as expulsões silenciosas, sobre o avanço das cercas e das escrituras frias que apagavam, nos papéis, o que seguia vivo na alma de cada indígena dali.
Carlos anotou meticulosamente: "Os povos Natu, Prakiô, Kariri e Xocó resistem na Rua dos Índios, Porto Real do Colégio. As marcas da identidade permanecem no idioma, nos ritos, na memória transmitida pelos anciãos."
Enquanto Maria falava, a pequena Indaiá se aproximava curiosa, tocava as folhas do caderno do pesquisador, sorria e ouvia, sem saber que também ela, naquele momento, se tornava um elo imprescindível na corrente da memória de seu povo.
A visita de Carlos Estêvão não foi apenas um estudo etnográfico; foi um gesto de reconhecimento e dignidade. Sua presença naquela manhã quente de abril selou um compromisso silencioso entre o saber acadêmico e a resistência indígena.
Anos depois, em 1944, aquele estudo serviria como um dos pilares para o reconhecimento oficial da existência dos povos indígenas em Porto Real do Colégio, culminando na fundação do Posto Indígena Padre Alfredo Dâmaso.
A grande anciã Maria Tomasia viveu até 1953 com 115 anos, deixou uma família numerosa em Kariri-Xocó, também era conhecida por Nega de Pereira, o nome de seu esposo chamado João Custódio conhecido por Pereira.
A Rua dos Índios, que por décadas fora símbolo de esquecimento e perda, transformava-se, assim, num espaço de afirmação, memória e luta. E, nas lembranças de Indaiá, já adulta, sobrevivia a imagem daquele homem de fala calma e olhar atento, que um dia viera de longe para ouvir sua avó e, sem saber, ajudara a garantir que sua identidade jamais fosse apagada.
A RUA DOS ÍNDIOS NOSSA ALDEIA
Na beira do São Francisco, onde as águas murmuravam antigas canções, havia uma pequena rua de terra batida. Nela se alinhavam humildes casas de taipa, algumas cobertas com palha de arroz, outras com telhas quebradas que testemunhavam os ventos do tempo. Era a chamada Rua dos Índios, no coração de Porto Real do Colégio — mais que um endereço, era nossa aldeia, onde viviam 230 almas, guardiãs de um passado profundo e quase esquecido.
Maria Tomasia, velha anciã Natu de fala mansa e olhos que guardavam séculos, costumava sentar-se à sombra de um juazeiro e contar às crianças o que seus avós haviam vivido. Ela dizia:
— “Quando a Vila de Colégio nasceu, em 1876, o Império se esqueceu de nós. As terras que eram nossas foram tomadas, e fomos empurrados para as margens... Não havia mais proteção, nem justiça, apenas resistência.”
Os pequenos escutavam em silêncio, sentindo o peso do que era ser Kariri, Xocó, Karapotó, Pankararu, Fulni-ô ou Natu naquele lugar. Mas também sentiam o calor da união que os mantinha vivos, mesmo após tanta perda. Ali, na simplicidade da rua, cada casa era um oco de resistência. Cada quintal, um terreiro de memória.
Foi no ano de 1944, sob um céu de fevereiro, que chegou um homem diferente. O agente do SPI chamado Cícero Cavalcante de Albuquerque, veio com a ajuda de alguns amigos do governo, fundou o Posto Indígena de Alfabetização e Tratamento Padre Alfredo Dâmaso. Não era muito, mas era um começo. Havia cuidado, havia palavras, havia um olhar humano — algo que há muito tempo não sentiam vindo de fora.
O Padre Alfredo Dâmaso, amigo dos indígenas do Nordeste já conhecia os Kariri de Porto Real do Colégio desde 1942, por várias viagens empreendidas pelo Pajé Francisquinho, Iraminõ, Jurandi, Firmino e outros, para Bom Conselho, PE, onde residia. Agora o padre ordenou a Cícero Cavalcante para instalar o posto, escola e enfermaria.
Ali, na Rua dos Índios — nossa aldeia entre cercas e calçadas — crescia um novo sopro de esperança. Crianças aprendiam a escrever, curandeiras trocavam saberes com enfermeiras, e os casamentos entre etnias fortaleciam os laços de uma nova identidade. Um povo plural, nascido da dor e da convivência, de braços dados entre os que ali buscaram refúgio: Kariris do Baixo São Francisco, seus parentes e aliados.
Por muitos anos, o posto carregou o nome de seu fundador. Mas em 1967, com a criação da FUNAI, o governo deu-lhe um novo nome: Posto Indígena dos Kariri de Porto Real do Colégio. Ainda era uma rua, ainda era barro, mas a alma da aldeia seguia firme, plantada nos quintais e nos olhos de sua gente. No tempo da FUNAI a rua foi reformada, ganhou uma nova aparência, chegou água encanada — as coisas foram melhorando.
As dificuldades, porém, eram sócio-culturais: viver na rua sem poder praticar com liberdade seus rituais, sem as fontes de argila para fazer a cerâmica, base de sua economia ancestral.
Foi só em 1978, quando a comunidade deixou a Rua dos Índios e caminhou rumo à Fazenda Modelo, que um novo ciclo se abriu. O nome então mudou de vez: Kariri-Xocó. Um nome que não apagava o passado, mas o reunia. Um nome que trazia em si as vozes de todos os que ali haviam vivido, amado, lutado.
Hoje, o vento ainda passa por aquela antiga rua. Já não há tantas casas de taipa, mas se alguém escutar bem, poderá ouvir a voz de Maria Tomasia sussurrando nas árvores:
— “O que somos não se escreve em papéis. Está no barro da nossa casa, na raiz dos nossos nomes, no sangue que pulsa ao som do maracá.”
CAMINHOS DA COLÔNIA
Na cidade de Porto Real do Colégio, em Alagoas, havia uma rua chamada Rua dos Índios. Era ali que moravam os filhos da terra, os Kariri-Xocó. Viviam amontoados em casas simples, mas firmes na identidade ancestral. Ainda assim, não tinham terra para plantar suas roças nem criar os animais que sustentavam o dia a dia.
Foi depois da chegada do Posto Indígena Padre Alfredo Dâmaso que uma luz brilhou no horizonte: em 4 de agosto de 1947, o Fomento Agrícola cedeu à comunidade uma área de 54 hectares, conhecida desde então como Colônia Indígena. A Colônia ficava a três quilômetros do grande Rio São Francisco, distante da Rua dos Índios, mas perto do coração dos que sonhavam com liberdade.
A terra fértil logo atraiu os que ansiavam por mais que paredes — queriam raízes. Vinte e cinco famílias deixaram a Rua dos Índios e rumaram em mutirão para a nova morada. Muitos se reuniram ao redor da casa do velho Pajé Francisquinho, sábio guardião dos cantos e dos mistérios do Ouricuri. Outros se espalharam pelos lotes, levantando suas casas de taipa, plantando milho, feijão e sonhos.
Ali se ouviam os cantos de rojão, ecoando entre plantações e fogueiras, celebrando o esforço coletivo e a força de um povo. A Colônia ganhou vida: uma escola com 72 alunos, a casa de farinha do Sr. João Sampaio, um chafariz com água corrente e tantos pés de fruta que os pássaros festejavam.
Antes da escola, havia um campo de futebol. Era lá que os jovens se desafiavam em partidas animadas entre os times da Rua dos Índios e da Colônia, suando a camisa entre risos e gritos de torcida.
Em 1950, uma cicatriz atravessou aquele chão sagrado: a Estrada de Ferro. Com o tempo, trouxe tristeza — como a morte do índio Cadête, atropelado por um trem. Ainda assim, a vida resistia. Os que ainda moravam na Rua dos Índios iam até a Colônia cuidar das suas roças. Cada família tinha três tarefas de terra, onde criavam bichos, plantavam e pescavam.
Nos meses de abril e junho, a Colônia vibrava: abril era tempo de plantio, junho de colheita. Em cada canto, os mutirões seguiam como antigamente, com cantos, risadas, e o batimento do feijão no chão da cultura.
O tempo, porém, é como o vento — sopra para muitos lados. Em 1978, os ventos da retomada da Fazenda Modelo A Sementeira levaram muitos de volta. A Colônia foi sendo deixada, mas o amor à terra é teimoso. Em 1989, ainda havia famílias por lá, apegadas à memória e à história.
Entre elas, estavam nomes eternos: Pajé Francisco Suira, Julio Suira, Odilon, Amarilio e Clara, Analbertino Pires, José Quirino, Candará, Selé, Pixaxo, Tonho Neguinho, Manarí, e muitos outros que resistiram com dignidade.
A estrada que levava ao ritual do Ouricuri sempre passava pela Colônia. Ali, os viajantes paravam, encontravam parentes, partilhavam farinha e histórias. As famílias Caciano, Crizelina, Firmino Pires, João Sampaio, Anabertino Pires, Amarilho e Mari-Inha moravam ao longo do caminho, acolhendo os que seguiam com fé.
A Colônia era muito mais que terra — era refúgio, era esperança, era cultura viva. Nos tempos bons, os homens saíam juntos para pescar na Várzea do Itiúba. O caminho passava pela Colônia, onde combinavam a pescaria de camarões e mandins, em abundância, como bênçãos do rio.
E os jovens? Jogavam futebol. Disputavam partidas animadas com os times da Rua dos Índios, entre poeira, bola e alegria.
A Colônia, mesmo em silêncio, guarda ainda hoje os ecos desses passos, dessas cantigas, desses risos.
A RUA DOS ÍNDIOS REFORMADA
Havia um tempo em que a pequena cidade de Porto Real do Colégio, no coração do sertão alagoano, começava a se transformar. Prédios novos surgiam, ruas eram pavimentadas, e o progresso caminhava lentamente pelas margens do Rio São Francisco. No entanto, havia uma rua que resistia ao tempo e ao cimento: a Rua dos Índios. Localizada ao norte da cidade, perpendicular às águas barrentas do Velho Chico, ali ainda reinavam as casas de taipa, enraizadas na terra como as histórias dos anciãos.
Na esquina da rua, o Posto Indígena erguia-se com paredes de alvenaria — uma solitária sentinela de concreto ao lado da escola indígena, que também era feita de tijolo e esperança. Em 1972, algo mudou. Veio de Brasília a decisão: a Fundação Nacional do Índio, sob comando do Ministério do Interior, anunciava uma grande reforma. A Rua dos Índios seria transformada.
A notícia correu como vento entre as palhas dos telhados. Seriam casas novas, escola ampliada com três salas de aula, uma enfermaria e até moradia para as professoras. Na Colônia Indígena, onde viviam outros parentes da mesma etnia Kariri-Xocó, instalaram um chafariz com água encanada — um milagre líquido para quem tanto conhecia a sede do sertão.
A professora Terezinha Wanderley, uma mulher firme e sábia que já ensinava desde os tempos do SPI, ainda resistia com seus cadernos surrados e sua voz paciente. Mas agora, novas educadoras chegaram: Marly Pimentel, Lourdes, Catunília… cada uma trazendo livros, sotaques e novos horizontes. Era o começo de uma nova era.
No posto, o chefe era o Tenente Ademir, homem do Exército, com botas engraxadas e olhar severo. Impunha respeito tanto na aldeia quanto na cidade. Dizia-se que bastava sua presença para pôr ordem onde havia confusão. Alguns o temiam, outros o respeitavam. Mas todos reconheciam: ele fazia cumprir as regras — inclusive a de que agora era tempo de mudança.
Com o passar dos anos, as crianças cresceram, os jovens se casaram, e a rua — aquela mesma rua reformada — começou a ficar pequena. A terra já não bastava para tantos passos.
Foi então que, em 1978, os Kariri-Xocó tomaram uma decisão histórica. Retornaram às suas antigas terras na Fazenda Modelo. Lá, ergueram uma nova aldeia, mais ampla, mais viva, como se a memória dos antepassados brotasse do chão.
E a Rua dos Índios ficou para trás, não esquecida, mas lembrada como o ponto de partida de um novo capítulo na longa caminhada do povo Kariri-Xocó.
A TRAVESSIA: DA RUA DOS ÍNDIOS À ALDEIA KARIRI-XOCÓ
O sol ainda se espreguiçava no horizonte quando o silêncio da Rua dos Índios foi rompido pelo som cadenciado dos passos, das rodas de carroças e dos cantos ancestrais. Era 28 de outubro de 1978, dia do ritual sagrado do Ouricuri. Como faziam há séculos, os Kariri-Xocó se preparavam para adentrar a mata fechada, onde a floresta viva guardava o segredo dos seus antigos. Mas naquela manhã, o silêncio tinha outro peso. Um pressentimento rondava o ar: talvez não fosse apenas mais uma ida ao sagrado, mas um retorno definitivo às raízes.
Durante os dias de ritual, longe da opressão da cidade, o espírito do povo se fortaleceu. Quando o Ouricuri chegou ao fim, ninguém quis voltar. No dia 31 de outubro de 1978, os anciãos reuniram-se à sombra de um velho juazeiro. Ali, entre palavras ancestrais e olhares firmes, decidiram: não mais voltariam à Rua dos Índios. A vida entre muros e asfaltos não mais cabia em suas almas.
A antiga Fazenda Modelo, onde seus avós haviam vivido antes da expulsão em 1924, era o destino. Um território marcado pela memória, pelo suor e pelas lágrimas. A retomada não era um simples movimento de casas, mas uma declaração de dignidade.
Nos meses de novembro e dezembro, a estrada de terra virou rio de esperança. Carroças puxadas por bois e jumentos formavam procissões de resistência. Camas, redes, panelas, colchões, bancos e esteiras iam sendo levados pouco a pouco. Havia quem levasse os pertences equilibrados na cabeça, ou empurrando carros de mão. Era como se a aldeia se construísse com cada passo, com cada suspiro.
Na chegada, construíram barracas de lona e palha. Ocupavam galpões antigos, casas esquecidas pela fazenda. Cada canto ocupado era abençoado. Cada parede erguida, um pedaço de futuro fincado no solo ancestral.
Ali, no coração da velha Fazenda Modelo, os Kariri-Xocó começaram de novo. Não como invasores, mas como filhos retornando à terra-mãe. E a terra, em silêncio, os acolheu com o cheiro forte do barro e o vento do São Francisco sussurrando histórias.
Assim nasceu a Aldeia Kariri-Xocó. Não de cimento e ferro, mas de coragem, memória e sonho.
Autor dos Contos: Nhenety Kariri-Xocó
🔹️APÊNDICE A — GLOSSÁRIO
Baca — O “Povo da Flecha”, família indígena dos Natu etnia dos indígenas aldeados em Porto Real do Colégio.
Caiçara — A cerca que protege a aldeia, também o nome da canoa de tolda que pertencera ao cacique Inocêncio Muirá que transportou os Xocós da Ilha de São Pedro, Sergipe para a Aldeia de Colégio, Alagoas.
Kariri-Xocó — Povo indígena habitante de Porto Real do Colégio, às margens do rio São Francisco, com forte tradição espiritual, musical e narrativa.,
Kayé — Que significa "manhã", também o nome do filho de Inocêncio Muirá, menino claro como a manhã.
Maracá — Chocalho indígena e instrumento ritualístico da dar cadência ao toré, cantos e danças tradicionais.
Muirá — A "arvore do arco, madeira", nome de uma família indígena Kariri-Xocó do cacique Inocêncio Muirá.
Muru — O nome de uma família Xocó do indígena Manoel Muru que migrou da Ilha de São Pedro para Colégio. A palavra Muru significa "grande", vem de família de Murubixaba "cacique".
Nhenety — Tradições, memória, o nome também do autor deste livro, escritor e indígena Kariri-Xocó.
Nheêperé — a “Palavra Mágica”, “Aquela que fala com poder”.
Pirigipe — os “Pescadores”, conhecidos por todos como Baca, o “Povo da Flecha”.
Rocrutsohó — a roupa coletiva feita para todos da comunidade que precisar, utilizada no final do século XIX e início do século XX pelos Kariri-Xocó .
Toré — Ritual tradicional de música, dança e espiritualidade, que fortalece o vínculo entre o povo e os encantados.
Woroy — Palavra que se relaciona com história, caminho, ensinamento e transmissão oral entre gerações.
🔹️APÊNDICE B — NOTAS E FONTES
Todos os contos presentes nesta obra foram previamente publicados e preservados pelo autor no blog:
KXNHENETY.BLOGSPOT.COM
Este livro reúne, organiza e apresenta esses textos em versão literária revisada, mantendo a essência original da narrativa indígena e do caminho espiritual do povo Kariri-Xocó. As histórias foram recolhidas, recontadas e fortalecidas ao longo dos anos, sempre respeitando a tradição oral, a memória familiar e os saberes transmitidos pelos mais velhos.
🔹️DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR
Nhenety Kariri-Xocó é escritor, contador de histórias e guardião da memória ancestral do povo Kariri-Xocó de Porto Real do Colégio (AL). Desde cedo, ouviu as narrativas dos mais velhos, aprendizado que moldou sua visão de mundo e marcou profundamente seu caminhar espiritual.
Atuante na preservação da cultura indígena, utiliza a escrita como forma de manter viva a tradição oral, transformando palavras, sonhos e lembranças em livros, contos, cordéis e narrativas que fortalecem sua identidade e inspiram novas gerações.
Além de autor, é pesquisador das raízes culturais de seu povo, estudioso das tradições espirituais, dos mitos, dos rituais e da cosmovisão indígena. Seu trabalho transita entre a literatura, a memória comunitária e o compromisso com a resistência cultural.
Woroy História — Travessia do Tempo é parte de uma extensa caminhada literária dedicada a honrar os ancestrais e reafirmar a força da palavra Kariri-Xocó.
🔹️ORELHA DO LIVRO
(Texto para a orelha esquerda ou direita da capa)
A palavra tem caminho próprio.
Ela nasce no vento do Velho Chico, atravessa as casas da Rua dos Índios, repousa na memória dos mais velhos e se renova na voz daqueles que continuam narrando o mundo. É desse movimento sagrado que surge este livro: Woroy História, Kariri-Xocó, Rua dos Índios — Travessia do Tempo, Contos – Volume 5.
Nesta coletânea, Nhenety Kariri-Xocó reúne histórias que carregam força espiritual, humor, mistério, ensinamentos e a presença viva dos encantados. Cada conto é um território ancestral, um fragmento da sabedoria de seu povo, um gesto de resistência e de amor pela memória indígena.
Ao abrir estas páginas, o leitor entra em uma travessia — não apenas literária, mas sensível, cultural e espiritual. Aqui, o tempo deixa de ser linha e se torna espiral; a natureza fala; os antigos caminham junto; o invisível se aproxima; o coração aprende.
Este livro é mais do que narrativa: é herança viva.
É convite.
É retorno ao que nunca deixou de ser.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó















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