O CONTO DE PISSÔRÊ (ANTUNES, 1973, p. 87)
Antigamente todos os índios eram reunidos em um só corpo. Todos os kariris reunidos limpavam o "malambá" (roça comum dos índios) semana após semana. Havia sempre um que se encarregava da família. Chamava-se Pissôrê. Era uma pessoa entendida e que advinhava. Era chamado "advinho". Quando os índios precisavam caçár ou pescar, reuniam-se todos e recebiam ordens do pissôrê. A caça melhor era enviada para o pissôrê. Na casa dele havia terno de pife (instrumentos musicais) , zabumba e todos os instrumentos de música e dança. Sua casa era bem limpa. Havia um grande terreiro para evitar doenças. Os índios, quando saíam para as águas, ísto é, para a pesca, iam felizes, enquanto outros iam para a mata ou para a caça.
Quando voltavam, ofereciam do melhor à Pissôrê e seus familiares. Reuniam-se, depois, para fazer o "xóxó" e comer com muqueca. Havia prêmios para oferecer aos melhores pescadores e caçadores. Era um dia de festa para todos . Um dia, uma índia preparou muqueca com peixe assado na folha para Pissôrê. Não preparou bem. Guardou a muqueca no flechal e a mosca veio, pousou, e pôs ovos em cima da muqueca .
No outro dia, havia bicho de mosca. Quando Pissôrê chegou, a índia mais bela da tribo lhe ofereceu a comida. Ele disse: "- Não presta, Pôfô, íánê di Pissôrê", isto é, vire logo em mulher ruim. Sacudiu fora a muqueca e a índia virou cururu, isto é, sapo cururu, muito feio. É Maria Cururu, mulher prostituta, a mulher solteira do mundo que não presta porque foi gerada da muqueca bichada.
Chegou o tempo de Pissôrê ir-se embora . Viajaram muito,ele e os índios. Viajaram para o alto sertão . Quando os índios tinham as crianças que choravam e reclamavam que não podiam carregá-las porque eram pesadas, Pissôrê se aproximava e dizia: "- Pôfô, vai ser coroa de frade" .
E as crianças se viravam em coroa de frade e mandacaru do sertão. Pissôrê continuou seu caminho. Um dia, entrou ele com toda sua família na Cachoeira de Paulo Afonso e encantou-se. Hoje em dia, temos contato com esta gente. Depois que desapareceu Pissôrê, ficou a Estrela D'alva, que é uma parenta de Pissôrê, uma moça dos kariris. Ficou com ela também sua mãe. Ficaram no acampamento. Estrela D'Alva perguntou pelo Pissôrê . Todos respondiam "que tinha ido embora com os índios". Ela replicou : "- Também vou-me embora".
Estrela D'alva começou a andar. No caminho ela disse: - Vamos tirar genipapo? ... Ela subiu no genipapeiro e sacudiu o genipapo no chão. Quando a mãe curvou-se para apanhar o genipapo, ela disse: "Pôfô, vire em uma caça do mato".
Estrela D'Alva tinha uma rede. Em um dado momento, ela disse: - "Pôfô, se vire em samambaia" e, de repente, apareceram as samambaias (as palmeiras) no mato.
Pissôrê salvou, assim, a sua gente do dilúvio universal e é dessa geração do Pissôrê que vem a origem dos índios Kariris de Palmeira. A Estrela D'Alva foi para bem longe, naquelas alturas, que nós, todos os dias, vemos a Estrela Dalva a brilhar no céu como uma grande estrela para os kariris".
O COMENTÁRIO, PARTE I: QUEM É PISSÔRÊ
O que foi colocado acima é o conto Wakonã do adivinho Pissôrê, cujo inclui outro personagem principal, uma parenta sua, cujo a relevância se atrela a uma estrela e seu culto na religião Terejê-Kariri-Xukurú, dependendo da cultura, uma estrela ou grupo de estrelas pode ter um foco maior nos contos, para os Wakonã, como demonstra o conto acima, era Vênus (Estrela D'Alva), para os Kariri eram as Batí (Setestrelo ou Plêiades) e para os Xukurú é a Karreta (Ursa Maior).
É interessante notar que esse conto, descrito para nós por Miguel Celestino, que no tempo do registro, era cacique, mestre e cantador do Toré, conta um resumo ou uma coletânea de contos parcialmente desconexos, mas com um personagem principal constante, é como pegar um livros cujos páginas aleatórias foram preservadas e outras foram rasgadas, pegando apenas um vislumbre do que teria sido uma saga completa. Os episódios dentro do conto pulam de tema, em um momento Pissôrê é oferecido uma muqueca bichada, cujo em retribuição transformou a mulher que o serviu em um cururu (tópico esse que será discutido em breve), e logo após esse tópico acabar, Pissôrê e seu povo estão viajando, pois de acordo com o conto, seu tempo havia chegado (tópico esse que também será discutido em breve).
Pissôrê tem poderes que transcendem um de um personagem comum, fazendo-o ter proximidade com entidades maiores, no entanto, o conto não especifica tal título ou posição hierárquica para este adivinho, Antunes no entanto nos conta que Pissôrê é comparável diretamente com um personagem de outro conto, o Conto do Grande Pai do povo Dzubukuá que viviam mais acima do Rio São Francisco, a comparação seria de que Pissôrê teria sido enviado pelo Deus Maior (a partir de agora chamado de Sonsé, a palavra Wakonã para Deus e Cristo, ANTUNES, 1973, p. 141), sendo ele um 'velho amigo' de Sonsé e que foi mandado com o objetivo de 'viver com os índios', cujo não é um objetivo muito específico, e pode-se inferir que quando o Deus Supremo do universo em uma religião envia um amigo dele, normalmente não é apenas com o objetivo de fazê-lo se enturmar com os povos da Terra, chegaremos nesse ponto na parte II, mas deixo aqui claro que Antunes nos deus pistas sobre a origem deste personagem (ANTUNES, 1973, p. 21).
Portanto temos Pissôrê como aquele que cuidava da família no tempo que os indígenas eram um só, Pissôrê como aquele que tem a palavra mágica, Pissôrê como aquele que transforma quando insatisfeito ou em resposta às reclamações dos outros, Pissôrê o encantado, isto é, aquele que foi trasladado para o mundo espiritual com sua família na Cachoeira, por último, temos Pissôrê como aquele que, como implicado, voltou do mundo espiritual e salvou o que viria ser a geração que deu origem para os Wakonã e Kariri de Palmeira.
COMENTÁRIO, PARTE II: PISSÔRÊ, SUMÉ E O GRANDE PAI
Todas essas descrições dão indícios de uma participação crucial desse personagem na fundação do que viria ser a atual humanidade, sendo comparável com heróis culturais como Māui da religião havaiana, tendo aspectos que parecem ser de um trickster (QUEIROZ, 1991, p. 94, apud CARROLL, 1981), pode-se argumentar isso com suas atitudes perante reclamações e atos de descuido, tendo ele uma resposta que parece ter sido caracteristicamente e propositalmente infantil, se você entrega para ele algo estragado ou reclama demais de algo, você é punido com mudanças irreversíveis, ele não gosta de ser atazanado de qualquer forma.
Contos como esse tem função de ensinamento e entretenimento, este tem claramente a função de contar a história da fundação da humanidade e sua interação com o divino, havendo um aspecto antropomórfico por trás das divindades descritas, semelhante ao que acontece na antiga religião grega e na nórdica da Edda poética, Pissôrê é divino ou próximo do divino e veio viver com a humanidade, mesmo com seu comportamento irritadiço, ele salvou a humanidade do *Dilúvio Universal*, enquanto o povo de Estrela D'Alva veio a se tornar as estrelas no céu, conectando-nos como irmãos próximos das estrelas, mesmo com esses pouquíssimos detalhes, é possível inferir sobre as emoções destes seres poderosos.
Noto também, retornando para o tópico de seu comportamento, que ele se parece bastante com o Grande Pai Dzubukuá (a partir de agora GP), como foi mencionado por Antunes e como citei acima, Pissôrê e o GP respondem a pedidos excessivos e reclamações com malícia, em um episódio descrito por Martinho de Nantes, os Dzubukuá haviam e um período antigo pedido para o GP que os abençoacem com caititus (malanhou-a), este responde ao pedir que os indígenas saíssem para caçar, em seguida transformando seus filhos nos caititus que foram pedidos, os indígenas comeram e aceitaram sem questionar, que de acordo com Martinho: "pois que muito o respeitavam e temiam" (NANTES, 1706, p. 100), isso indica que de uma forma ou de outra, essa entidade também ou fazia atos com o propósito de fazer medo ou todo e qualquer ato divino/espiritual que ele fizesse causava medo, portanto assim os indígenas respeitavam-no.
Eu acho muito interessante que o conto do GP e Pissôrê, mesmo se diferindo em alguns detalhes, são quase idênticos ao herói cultural Tupinambá Sumé, descrito por André Thevet como aquele que foi enviado por Monan (Deus Supremo Tupinambá, mesmo que o Sonsé Terejê e o Menerurú/Tupam Kariri), aquele que civilizou os indígenas e depois saiu, seja voluntariamente ou após ser caçado/morto pelos indígenas, este último sendo o caso de Sumé (MÉTRAUX, 1950, p. 44). Parece-me como se fosse o desenvolvimento de uma religião com culto e história organizadas, cujo vertentes surgiram quanto mais este culto viajava o Brasil e começaram a absorver aspectos da cultura no qual se estabelecia, semelhante ao Budismo no Velho Mundo. A (possível) vertente que vemos no Nordeste teria herdado aspectos onde o herói cultural enviado por Deus deu origem de alguma forma ao que viria ser a humanidade atual, na história Dzubukuá, os homens já existiam, mas Pissôrê foi que, com o episódio dos caititu, indiretamente os transformou nos homens modernos e em outro episódio prévio a este, criou as mulheres a partir da Primeira Mulher, assim criando outro grupo dentro da humanidade que viria a fazer as novas gerações nascerem, sendo o originador, mesmo que indiretamente, das futuras gerações.
Pissôrê não tem episódios similares, mas a ausência de contos registrados que falem sobre isso não indicam para mim que ele não teria participado em um conto que fala a história do homem, da mulher, possivelmente de animais e depois da atual humanidade.
"Ausência de evidência não é evidência de ausência"
- Carl Sagan
COMENTÁRIO, PARTE III: O DILÚVIO UNIVERSAL
O conto de Pissôrê diz que ele salvou a geração que daria origem aos Wakonã, o episódio que causou essa necessidade de salvação foi o *Dilúvio Universal*, um conto quase ubíquo na humanidade, onde uma divindade ou mais divindades punem a humanidade por algum motivo, que varia desde humanos sendo muito barulhentos como fez Enlil no Épico de Gilgamesh, ou por quê a humanidade se tornou corrupta, como fez Yahweh (Deus Cristão) com seu dilúvio. Muitos arqueólogos hoje em dia concordam que existem traços da realidade por trás do mito do dilúvio, tais eventos ocorreram no Último Período Glacial (c. 115,000 – c. 11,700), acredita-se que foram estes eventos que causaram a constante necessidade das populações daquela época de retrair da costa onde viviam, criando a percepção de que o mundo estava afundando em um dilúvio de proporções divinas (Biblical-Type Floods Are Real, and They're Absolutely Enormous, Discover Magazine, 29 de ago. 2012. Disponível em: https://www.discovermagazine.com/planet-earth/biblical-type-floods-are-real-and-theyre-absolutely-enormous Acesso em: 14 de fev. 2024).
As populações indígenas também contaram sobre tais acontecimentos, como surgiu no Mito de Sumé, a partir do dilúvio e incêndio do mundo, que deu origem aos rios e oceanos, e entre os Kaingáng, cujo apenas um casal de irmãos teria sobrevivido o dilúvio universal. É importante ressaltar que não se sabe por quê o dilúvio aconteceu no conto Wakonã, mas como dito, é normalmente atribuído ao divino, se aqui tiver acontecido o mesmo, vemos que Pissôrê, contrário ao seu comportamento anterior, se dedica a salvar a humanidade e deixá-la continuar, assim nessa hipótese, ele estaria indo contra a vontade de seu amigo Sonsé (Deus).
Concluo que Pissôrê é um personagem complexo, ele possivelmente tinha função de *Herói Nacional* e *Deus Nacional* entre os Wakonã e pode ter tido continuidade entre os Natú e Xocó com outros nomes que não foram registrados.
FONTES
Wakona-Kariri-Xukuru - Apesctos Sócio-Antropológicos dos Remanescentes Indígenas de Alagoas, Clóvis Antunes, 1973
https://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/biblio%3Aantunes-1973-wakona/Antunes_1973_WakonaKaririXukuru.pdf
O Herói-trapaceiro - Reflexões sobre a figura do trickster, Renato da Silva Queiroz, 1991
https://www.scielo.br/j/ts/a/TGCXr3Tcpcr458WLBDrXDZz/?format=pdf&lang=pt
Biblical-Type Floods Are Real, and They're Absolutely Enormous, Discover Magazine, 29 de ago. 2012. Disponível em: https://www.discovermagazine.com/planet-earth/biblical-type-floods-are-real-and-theyre-absolutely-enormous Acesso em: 14 de fev. 2024
Relação de uma missão no Rio São Francisco, Martinho de Nantes, 1706
Biblical-Type Floods Are Real, and They're Absolutely Enormous, Discover Magazine, 29 de ago. 2012. Disponível em: https://www.discovermagazine.com/planet-earth/biblical-type-floods-are-real-and-theyre-absolutely-enormous Acesso em: 14 de fev. 2024
A religião dos Tupinambás, Alfred Métraux, 1950
https://bdor.sibi.ufrj.br/bitstream/doc/40/1/267%20PDF%20-%20OCR%20-%20RED.pdf
Autor da matéria: Suã Ari Llusan
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