O rio São Francisco corria calmo naquela manhã enluarada, como se soubesse que ali, na Aldeia de Colégio, algo prestes a acontecer marcaria para sempre a memória dos Kariri. O ano era de 1763, e as águas, testemunhas silenciosas de tantos encontros e despedidas, apenas sussurravam ao longe.
A aldeia, antes pulsante ao redor da Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição, agora parecia sufocada sob o peso das ordens dos colonizadores. Os índios, que durante gerações haviam feito daquele chão a extensão de seus corpos e espíritos, foram afastados, obrigados a se refugiar nas periferias, longe do centro onde os sinos da igreja dobravam frios e alheios à dor do povo.
No cimo da colina conhecida como Alto do Bode, onde a mata se adensava e as folhas dançavam ao comando do vento, o pajé Ludovico, ancião de palavras pausadas e olhar profundo, ergueu-se com dificuldade sobre o solo vermelho. Ao redor dele, reunidos em semicírculo, estavam os guerreiros, as mulheres com seus filhos nos braços, e os jovens que ainda aprendiam os cantos sagrados.
Ludovico fixou os olhos no horizonte, onde o céu se confundia com a terra numa linha difusa. De súbito, ergueu o braço trêmulo e apontou:
— Olhem… — sua voz soou grave, mas cheia de esperança. — A grande árvore se ergue lá, na linha onde o mundo toca o infinito…
Todos voltaram os rostos para onde ele indicava. Lá, como uma sentinela solitária, despontava um angico frondoso, suas raízes agarradas com força à terra, seus galhos abertos como braços que acolhem.
— O velho angico… — murmurou uma das anciãs, levando a mão ao colar de sementes que pendia sobre o peito.
O pajé então falou, como se evocasse os espíritos ancestrais:
— Nossos passos são antigos como as águas deste rio. Mas os colonizadores apertam o cerco, querem nossas terras, nossos corpos, nossa alma. Precisamos seguir, não apenas para sobreviver, mas para manter viva a nossa essência. A Taba Original do Ouricuri deve migrar. Aquele angico será o novo guardião dos nossos rituais, o abrigo da nossa memória.
Um silêncio denso pairou sobre o grupo, rompido apenas pelo lamento suave de um maracá, que uma criança fazia soar inconscientemente, como quem embala o tempo.
Ludovico então colheu um punhado de terra do solo onde estavam e, fechando a mão, disse:
— Levemos conosco este chão, para que nunca esqueçamos de onde partimos…
E assim, cada membro da comunidade fez o mesmo: colheram um pouco de terra, guardando-a em pequenos sacos de palha, um gesto simbólico que unia passado e futuro.
A travessia foi lenta, mas firme. O sol já descia quando chegaram sob a copa generosa do angico. Ali, Ludovico ajoelhou-se, tocou as raízes expostas e, com reverência, sussurrou:
— Velho guardião, recebe teu povo.
A comunidade então circundou a árvore, e as mulheres começaram a entoar o toré, a dança circular que embala o espírito coletivo, enquanto os homens fincavam as primeiras estacas da nova aldeia.
Naquele instante, as folhas do angico balançaram suavemente, como quem responde, e um bando de araras cortou o céu com seus gritos vibrantes, como se anunciassem aos quatro cantos: “Eles permanecerão!”
E assim permanece, até os dias de hoje, a sombra protetora do velho pé de angico dos Kariri, onde a memória, a resistência e a espiritualidade continuam enraizadas, firmes como as raízes daquela árvore sagrada.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
Consultado por meio da ferramenta ChatGPT (OpenAI), inteligência artificial como apoio para elaboração do trabalho da capa no dia 26 de maio de 2025.
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