Muito antes de os homens de cruz e ferro cruzarem os caminhos do sertão, a aldeia Natiá florescia no alto da colina, abrigada pelo abraço generoso das árvores antigas e protegida pelos espíritos da floresta. Lá, o povo Kariri vivia em comunhão com a terra, o rio e o céu, em grandes casas de palha trançada, os picriá, onde as gerações se reuniam para comer, cantar, dançar e aprender as lições do mundo.
O Rio Opará — a artéria viva da terra — corria majestoso, levando os segredos dos ancestrais para além das serras e das planícies. Nele, os Kariri pescavam, se banhavam e realizavam seus rituais, honrando os ciclos da natureza. Era ali, à sombra das árvores e ao som das águas, que o povo conversava em seu doce mewonhé, a língua que os deuses lhes ensinaram.
Mas um dia, o vento mudou de direção.
Vieram homens diferentes, com roupas pesadas, barbas compridas e olhos que pareciam ver, mas não enxergar. Trazendo cruzes de madeira e livros de capa grossa, disseram que portavam a "verdadeira palavra" e a "única salvação". Suas vozes eram mansas, mas seus gestos eram firmes; seus sorrisos, frios como a lâmina de um machado.
Subiram à colina e, com palavras enfeitadas de promessa e poder, convenceram — ou forçaram — os Kariri a deixar suas casas, seus picriá, e descerem para junto de uma capela frágil, feita de folhas de palmeira e barro, que dedicaram a uma santa: Nossa Senhora da Conceição.
Na nova aldeia, aos pés da colina, ergueu-se o que os brancos chamavam de Subatewaerá, o Colégio dos Jesuítas. Ali, o povo Kariri deveria aprender novas palavras, novos costumes, nova religião… e esquecer tudo o que antes fazia deles quem eram.
O velho Piragibá, outrora cacique de muitos feitos e sabedor de velhas histórias, via agora seus dias se alongarem sob o peso da tristeza. Sentia-se como uma árvore cujas raízes haviam sido cortadas, mas que teimava em se manter ereta.
Numa tarde em que o céu ardia em tons de sangue e ouro, ele chamou o neto Maruandá para junto de si. Sentaram-se sob o angico velho, cuja copa ainda se estendia como um abrigo silencioso.
Piragibá olhou para a linha do horizonte, onde o Rio Opará cintilava, e disse com a voz cansada:
— Maruandá... nosso povo sempre viveu junto, nas grandes casas que chamamos de picriá. Ali, compartilhávamos o fogo, os alimentos, os sonhos. Agora, nos separaram, como se quisessem que esquecêssemos que somos um só corpo, uma só alma.
O menino, ainda com a pureza nos olhos, ouviu em silêncio, como quem grava cada sílaba no coração.
— Fomos forçados a morar nessas pequenas casas, que eles chamam de erá. Nos fizeram vestir o croteró, essa roupa de pano que prende nossos corpos e nos distancia da pele da mata.
Piragibá abaixou a cabeça, como quem reverencia a dor, e continuou:
— Eles nos proibiram de falar nosso mewonhé. Dizem que nossa língua é rude, errada… querem que falemos apenas a língua deles: o português.
O ancião ergueu o olhar, agora mais firme:
— Tomaram de mim o nome de nanhe, que meus antepassados me deram com honra e amor. Agora sou chamado de capitão-mor, como se fosse um título, mas que, na verdade, é uma prisão.
Maruandá apertou as mãos do avô, sentindo nelas a força e o cansaço acumulados por gerações.
— Nosso bidzamu, o pajé, que sabia ouvir as árvores, os animais e os espíritos, foi silenciado. No lugar dele, há um padre, que nos fala de um deus que não conhece nossa mata, que nunca ouviu o canto dos nossos pássaros, que não entende o sopro dos nossos ventos.
Piragibá respirou fundo, o peito subindo e descendo lentamente, como as ondas do rio ao longe.
— Estão apagando nossa Warakidzã, nossa religião Kariri, que nos ensinava a respeitar e agradecer a tudo: ao sol, à chuva, à caça, à semente.
O velho deixou que o silêncio pairasse entre eles, preenchido apenas pelo canto distante de uma araponga e pelo farfalhar das folhas.
Depois, com um suspiro, completou:
— Estamos muito tristes, meu neto… Não sabemos como será no uché, o tempo futuro.
Maruandá, com os olhos marejados, abraçou o avô com força, tentando, naquele gesto, costurar novamente as raízes que o vento da colonização tentava arrancar.
Piragibá afagou os cabelos do menino, e, mesmo com o peso das perdas, sorriu.
— Mas eu acredito… acredito que vocês, os mais jovens, vão mudar isso.
O menino assentiu em silêncio, como quem jura diante dos deuses e dos ancestrais.
Ao longe, o Rio Opará seguia seu curso, indiferente e eterno, levando nas suas águas as lágrimas e os sonhos de um povo que, apesar de ferido, jamais seria esquecido.
E sob o angico velho, entre o menino e o ancião, nasceu a semente de uma promessa: a de que a memória Kariri continuaria viva, enquanto houvesse quem a contasse.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
Consultado por meio da ferramenta ChatGPT (OpenAI), inteligência artificial como apoio para elaboração do trabalho da capa no dia 28 de maio de 2025.
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