Apresentação
Este conto é inspirado nos saberes do povo Kariri-Xocó. Nele se entrelaçam palavras ancestrais, respeito à terra e a visão de que a Natureza não é apenas um recurso, mas um círculo sagrado de vida.
O termo Bechiantse — Natureza é a Roça — nos ensina que a Roça não é só milho, feijão e mandioca, mas tudo aquilo que o mundo nos oferece em equilíbrio: as águas, os ventos, o barro, os saberes e até os elementos que um povo não cultiva, mas outro valoriza.
Este conto foi escrito para honrar essa visão e compartilhá-la com todos os que desejam ouvir.
BECHIANTSE — A Roça do Mundo
Um conto Kariri-Xocó
Por Nhenety Kariri-Xocó
Escutem bem, crianças, jovens e velhos. Vou lhes contar uma história antiga como o sopro do vento nas folhas da gameleira.
Em tempos passados, quando os pássaros ainda cantavam canções que os homens entendiam, havia uma aldeia Kariri-Xocó às margens do grande rio Opará.
Nessa aldeia nasceu um menino chamado Yüri, cujo nome significava Filho do Caminho da Água. Diziam os anciãos que ele nascera com os olhos do rio: profundos e curiosos.
Sua avó, a velha sábia Jurema, cuidava dele com amor e sabedoria. À noite, ao redor do fogo, ela contava:
— Wohotsé, meu neto. Toda a floresta é um ser vivo que nos alimenta. Somos parte dela, e ela é parte de nós. Não esqueça isso nunca.
Yüri ouvia, encantado. Durante o dia, corria pelos caminhos da mata com seu amigo Kauê, menino risonho e rápido como o vento. Aprendiam juntos os segredos das plantas e dos bichos.
A mandioca ensinava que a terra só dá frutos a quem a respeita. O jenipapo mostrava que a beleza vem também do que se pinta no espírito. O cipó-de-cobra dizia que certas forças precisam distância e reverência.
Mas Jurema sempre lembrava outra lição:
— Há uma palavra antiga, Yüri: mipedda. É tudo aquilo que tiramos do mundo. Não só o que plantamos na roça, mas o barro do rio que tua mãe usa para a cerâmica, a madeira para as casas, o peixe que nada no Opará, as folhas que curam. Tudo é mipedda. Mas cuidado: devemos tirar só o que precisamos, com respeito.
Yüri guardava essas palavras no peito.
Um dia, chegou à aldeia um homem da cidade, montado num cavalo branco. Chamava-se Seu Valdo. Trazia sacos cheios de sementes douradas.
Reuniu os anciãos e disse:
— Com estas sementes, suas roças darão mais milho do que já viram! Vocês terão fartura e eu comprarei tudo por bom preço. Será progresso para o seu povo.
Alguns jovens se entusiasmaram. Mas os mais velhos, como cacique Muruibá e Jurema, desconfiaram.
Naquela noite, Yüri sonhou. No sonho, viu a floresta encolhendo, o rio secando, os pássaros sumindo. Acordou assustado.
— Avó — disse —, sonhei que a mata chorava. Fizemos errado?
Jurema o olhou com ternura.
— Teu espírito já escuta os sinais, meu neto. Lembre-se de outra palavra: kenantse. É nossa criação na natureza. Devemos cultivar apenas aquilo que realmente serve à vida e à nossa necessidade, não ao desejo sem fim.
Mas parte da aldeia não ouviu. Muitos plantaram as sementes do forasteiro em grandes roçados.
Nos primeiros meses, tudo parecia maravilhoso. O milho crescia mais alto que um homem. Mas logo vieram os sinais.
As abelhas desapareceram. As borboletas não visitavam mais as flores. A terra endureceu, seca e cansada.
O rio Opará, antes cheio de peixes, começou a se calar.
Foi quando os anciãos reuniram todos sob a grande gameleira. Jurema falou com voz firme:
— Filhos da aldeia, esquecemos o que nos ensinaram os antigos. Bechiantse: Natureza é a Roça. Não só aquilo que plantamos, mas tudo que vive em harmonia. Quando quebramos esse círculo, tudo sofre.
Yüri pediu a palavra:
— Proponho que peçamos perdão à floresta. Vamos replantar com as sementes dos nossos ancestrais. Vamos restaurar o equilíbrio.
Os anciãos concordaram. Fizeram um grande ritual. Cantaram canções antigas. Pediram aos ventos, às águas, às árvores que aceitassem o pedido de desculpas.
Com cuidado, replantaram o milho nativo, o feijão, a mandioca. Voltaram a colher o barro com reverência. Deixaram espaço para a floresta respirar.
O tempo passou. As abelhas voltaram. Os peixes dançaram de novo no rio. A mata se vestiu de verde.
A terra, renovada, voltou a sorrir.
E Yüri, agora um jovem respeitado, tornou-se contador de histórias. Sob a gameleira, dizia às crianças:
— Escutem, pequenos. Bechiantse: Natureza é a Roça. A Roça é o mundo. O mundo é um círculo. O círculo é vida. Nunca tomem mais do que o necessário. Respeitem sempre o equilíbrio.
E dizem que até hoje, nas noites de lua cheia, se você andar pelas trilhas da mata e ouvir um canto suave, talvez seja Yüri ensinando a uma nova geração a canção do equilíbrio:
"Natureza é a Roça. Roça é o mundo.
O mundo é um círculo. O círculo é vida."
Assim termina esta história. Que ela nunca se perca no vento.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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