Por Nhenety Kariri-Xocó
Na borda leste da floresta sagrada do Ouricuri, viviam algumas famílias indígenas de Porto Real do Colégio, em Alagoas. Tinham deixado a Rua dos Índios, onde o espaço estreito sufocava o plantar da mandioca e o criar seus animais domésticos como: galinhas, patos e porcos. Ali, próximos da antiga estrada real — caminho pisado desde os tempos do Brasil Império — buscavam paz, terra e sombra.
Era um tempo de silêncio entre os troncos, de cheiro de fumaça branda no entardecer, e de histórias contadas ao redor da fogueira. Mas certo dia, em 1935, a mata tremeu. Um barulho estranho cortou o sossego da manhã. Um bicho de ferro, cuspindo fumaça e com olhos de fogo, surgiu da curva da estrada.
Era um automóvel — o primeiro que se via por aquelas bandas. Conduzido por um homem branco chamado Carlos Estevão, vindo do Museu Goeldi, o carro deslizava sobre a estrada vermelha feito coisa de outro mundo.
Na mata, a velha anciã Aninha de Cristina colhia lenha. Quando viu a criatura, arregalou os olhos, o feixe de gravetos caiu de suas mãos. O pavor tomou-lhe as pernas, e ela correu mata adentro, sumindo como um pássaro assustado.
Horas depois, Luiz Teipó, caçador e também indígena, a encontrou agachada entre as folhas.
— Dona Ana, o que a senhora faz aqui, sozinha? — perguntou, surpreso.
— Eu vi chegar um bicho feio… o Ibápohdu, o Carro Olho de Fogo que o homem branco trouxe! — respondeu, com os olhos ainda arregalados.
Luiz sorriu com doçura.
— Não tenha medo, Dona Ana. Já ouvi falar desse bicho… Lá pras bandas de Propriá, em Sergipe, dizem que já tem. Mas não é bicho não… É um aparelho de transporte. Leva gente dentro dele, como uma canoa sobre terra firme.
Com paciência, Luiz conduziu a velha de volta até a casa de sua filha, Cristina. Quando chegaram, o Ibápohdu já havia sumido na poeira da estrada. O estudioso tirara algumas fotos e seguira caminho em direção à cidade, passando pela Rua dos Índios, de onde muitos haviam partido.
Foi João Baca quem disse o nome do homem: Carlos Estevão, pesquisador dos costumes e saberes dos povos originários. Ele passou, viu, e registrou.
Essa história chegou até mim pela boca de minha mãe, Indaiá, que ouvira de quem viveu: a própria Aninha de Cristina, a anciã que viu o bicho de olhos de fogo, e Luiz Antigo, o conhecido Luiz Teipó, que a trouxe de volta com coragem e palavra calma.
E assim, entre o medo e a curiosidade, o Ibápohdu virou história, contada à sombra do Ouricuri, onde o tempo escuta e a memória vive.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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