Meu nome é Aruá, e carrego nas lembranças o dia em que a luz chegou na nossa rua, a Rua dos Índios, em Porto Real do Colégio. Eu era só um menino, com os pés rachados de correr no barro e os olhos cheios de estrelas. Mas aquele dia ficou gravado no meu peito como se fosse o primeiro nascer do sol que vi na vida.
Antes disso, a noite era dona de tudo.
A aldeia dormia cedo, e os olhos aprendiam a enxergar no escuro. A gente sabia os caminhos pela posição da lua e das árvores, e as vozes dos mais velhos conduziam nossas histórias sob a luz do fogo. A vida era acesa por outros brilhos.
Foi minha avó, Júlia Muirá, quem me contou como tudo começou, muito antes de eu nascer.
— Aruá, tu sabias que a primeira luz nas ruas era fogo em água?
— Fogo em água, vó? Isso existe?
Ela sorriu com aquele jeito calmo de quem sabe mais do que diz.
— Era o gás, meu neto. Nas lamparinas de rua, penduradas nos troncos de madeira. Chamávamos de Hinedzudu, a luz da água de fogo. Hine é luz, dzu é água e du é fogo. Tudo junto, uma novidade naquela época em que a aldeia virou vila colonial, por volta de 1876.
Imaginava aqueles postes como árvores mágicas com olhos de fogo, iluminando caminhos de terra batida.
Com o tempo, a avó disse que vieram os motores a óleo, e a energia passou a vir de fios e geradores. Só funcionavam até as onze da noite. A gente ainda dependia da lua.
— Chamamos de Hinebarú, luz no tronco de pau. Porque era assim mesmo, neto — postes de madeira com as lâmpadas penduradas no alto.
Mas foi só em 1962 que chegou a luz elétrica no centro da cidade, com a CEAL. E na nossa rua... bem, foi só em 1967.
Lembro que era fim de tarde, o céu já começava a mudar de cor, e os homens da companhia estavam terminando a instalação dos postes novos. Eram de cimento, pesados, cinzentos, enormes.
Eu e outras crianças ficamos assistindo de longe. Cada vez que um fio era puxado, parecia um cordão ligando a terra ao céu. Os mais velhos estavam em silêncio. O pajé Suíra, de cocar baixo e passos firmes, observava atento.
Quando os técnicos desceram dos caminhões e acenaram, a rua inteira se juntou. Um homem girou uma chave, e então...
Zzzzzshhhhh — TAC!
Um som correu pelos fios como um trovão contido. Um a um, os postes se acenderam. Uma luz branca, firme, clara, como se o sol tivesse se multiplicado em cada ponto da rua.
As crianças começaram a gritar:
— Olha, olha! Parece estrela no chão!
Os adultos não disseram nada. Era como se estivessem ouvindo algo que só eles podiam entender. O silêncio dos antigos carregava respeito, temor... e encanto.
O pajé Suíra levantou o rosto para o alto e falou, com voz grave e pausada:
— HINEBAKRÓ.
— Hine o quê?, perguntei, puxando a ponta do manto do pajé.
Ele me olhou com os olhos de quem escuta o tempo.
— HINEBAKRÓ, Aruá. Quer dizer “a luz no tronco de pedra”.
— Por causa do poste de cimento?
— Sim, menino. É a luz do novo tempo. Mas lembra: não é só pedra nem só fio. É o espírito da transformação. Se não tiver memória, não é luz — é só claridade vazia.
Fiquei quieto, mas aquelas palavras entraram em mim como semente.
Naquela noite, não quis dormir cedo. Sentei no batente de casa e fiquei olhando o poste mais próximo. A lâmpada parecia olhar de volta. Ao meu lado, minha avó passou a mão na minha cabeça e disse:
— Agora temos luz, Aruá. Mas nunca esqueça de onde vem a nossa verdadeira clareza.
Desde então, nunca mais vi a noite da mesma forma. A luz chegou, sim. Mas o que nunca se apagou foi o brilho das palavras do meu povo.
E sempre que vejo um poste iluminado, me lembro:
Hinebakró — a luz no tronco de pedra —
E no coração da pedra, ainda pulsa a memória da floresta.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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