O sol ainda mal despontava por entre as copas das árvores altas quando os primeiros passos pisaram o chão fresco da terra escolhida. Era tempo de Iaɲaté — o mutirão da roça. No coração da aldeia Kariri-Xocó, a comunidade se preparava para mais uma jornada de trabalho coletivo, um costume antigo que ecoava como canto ancestral entre os galhos e as raízes da memória.
Anaciã, mulher de sabedoria firme, já separava o feijão para o almoço comunitário. Seu filho mais velho, Indoá, observava os homens afiando as foices à sombra de um umbuzeiro. A terra, úmida das últimas chuvas, parecia sorrir sob os pés descalços dos que se aproximavam, vindos de várias casas, de várias famílias.
— Hoje é dia de roçar, meu filho — disse o avô Ibinawá, entregando-lhe uma enxada com cabo novo. — Iaɲaté começa com o respeito à terra e à união.
Na área marcada, os homens avançavam em fileiras, derrubando o mato fino, deixando em pé apenas as grandes árvores. As sombras dessas árvores refrescavam o corpo e também a alma. Outros puxavam os tocos teimosos, limpando a área com dedicação. Tudo que era arrancado era levado para o centro da futura roça, onde seria feito o ajuntamento para a coivara.
Ao meio-dia, o aroma da feijoada trazia todos de volta para perto das panelas de barro. Homens, mulheres, jovens — todos sentados em esteiras de palha, dividindo histórias, risadas e o alimento sagrado.
— Esta é a força do nosso povo — disse Anaciã, servindo um prato a um jovem recém-chegado. — Trabalhamos juntos, colhemos juntos, vivemos juntos.
Depois de dias de roçado, veio a coivara. O mato seco crepitava em labaredas controladas, limpando o terreno com respeito ao ritmo da natureza. Em março, as mãos já depositavam sementes na terra: milho, feijão, mandioca. Era o nascimento do Bechié — a roça viva.
Quando abril chegou, os matos indesejados ameaçavam as brotações, e com eles veio outra fase do mutirão: a limpeza da lavoura. Mas agora os cantos de rojão ecoavam. Homens e mulheres formavam duplas, trocando desafios em versos cantados, em vozes fortes, cheias de riso e provocação saudável. O som atravessava as plantações e alcançava os corações como batida de tambor ancestral.
— Vamos ver quem vence na cantoria hoje! — gritava uma mulher, enfrentando o compadre com versos de sabedoria e alegria.
O tempo passou, os meses correram. Junho trouxe a colheita do milho verde, do feijão, da abóbora e da batata. Dezembro chegaria com a mandioca e o algodão, encerrando mais um ciclo da roça viva, da terra mãe.
Apesar das mudanças dos tempos, dos asfaltos que tentam cobrir os caminhos de barro, o mutirão da roça ainda pulsa no peito dos Kariri-Xocó. Iaɲaté Bechié não é apenas um costume — é memória viva, é comunhão. É a certeza de que onde há canto, terra e gente de coração firme, há também resistência.
E ali, no coração do sertão de Alagoas, essa tradição continua. Como diz o povo: “Enquanto houver canto de rojão e mão que planta, a roça viverá.”
— Conto de Nhenety Kariri-Xocó
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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