Naquele tempo antigo, quando o silêncio da mata falava mais alto que o barulho das cidades, os Kariri de Porto Real do Colégio, em Alagoas, viviam esquecidos pelos homens do poder. Mas nem por isso deixaram de sonhar. Era 1942 quando Jurandi, jovem de espírito firme e olhos curiosos, decidiu deixar a aldeia. Filho de Euclides Poité e Maria Pureza Poité, carregava no peito a coragem dos antigos. Tinha apenas vinte e três anos quando partiu em busca de um destino melhor, deixando para trás a aldeia, o rio, os cantos dos pássaros e o cheiro do barro molhado.
Viajou para o Norte, navegando por águas largas até chegar ao Amazonas. Por lá, experimentou o suor dos seringais, a solidão das matas fundas e a dureza da vida distante. Mas sua coragem abriu caminhos: tornou-se policial militar, casou-se com Jéssica, uma branca de Manaus, e teve quatro filhos, dois homens e duas mulheres. Construiu uma vida com as mãos e a saudade no peito.
Enquanto isso, sua irmã Indaiá permanecia na aldeia, guardando lembranças, cuidando da terra, esperando notícias. Vinte e um anos se passaram até que, num dia em que o céu parecia mais azul que nunca, Jurandi voltou.
Chegou como quem trazia o mundo nos ombros e o coração aberto. Carregava presentes embrulhados com afeto: roupas novas, retratos tirados na cidade grande, sua farda de tenente — que mostrava com o orgulho de quem venceu sem esquecer suas raízes. Trouxe até um enxoval de bebê, destinado a um menino recém-nascido na aldeia, o pequeno Nhenety — eu mesmo, abençoado por aquele gesto.
Mas o que encantou a todos foi a história que Jurandi contou em volta da fogueira, cercado por olhares atentos e bocas abertas de espanto. Falou do avião. Um silêncio reverente caiu.
— Mas o que é isso, Jurandi, esse tal de avião? — perguntou um ancião.
Ele sorriu e respondeu:
— Yeendzi Merãkié, o Grande Pássaro de Ferro do Céu.
Explicou que era como uma grande canoa coberta, mas que voava por cima das nuvens, levando gente dentro como se fosse um barco do ar. Era coisa de outro mundo para nós, que nunca tínhamos visto além do horizonte da serra.
Durante um mês, Jurandi partilhou histórias, riu com os parentes, abraçou os mais velhos e caminhou descalço pela terra vermelha da infância. Depois, partiu novamente, voando no mesmo pássaro de ferro.
Os anos passaram, mas ele nunca esqueceu sua origem. Sempre voltava. Certa vez, trouxe sua mãe, Pureza Poité, para conhecer o avião. Ela, já com os cabelos prateados pelo tempo, sentou-se com dignidade no assento da máquina que cortava o céu. Ficou um ano no Norte e voltou à aldeia com olhos cheios de novas paisagens.
Jurandi foi o primeiro índio da nossa aldeia a voar no Yeendzi Merãkié. E sua história, contada de geração em geração, vive entre nós como memória sagrada. Não podemos deixar que se apague.
É com essas lembranças que costuramos o futuro, como uma rede de pesca feita com fios de tempo e afeto.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
Guardião da Palavra e da Memória Viva do Povo Kariri-Xocó
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