No silêncio sagrado da noite, o fogo crepitava no centro do círculo formado por corpos cansados e memórias antigas. As estrelas brilhavam sobre o vale do Opará — o Rio São Francisco como chamam agora — mas para os povos originários, era o eterno Opará, serpente viva que atravessava o coração da terra.
Ali, no terreiro batido pelo tempo e pela história, os anciãos se reuniam. Suas vozes baixas teciam histórias como se fiapos do tempo fossem costurados na noite. O velho Wãmy, de olhar profundo como a própria correnteza do rio, conduzia a roda. As palavras fluíam como água: falava-se dos tempos antigos, dos tempos de floresta alta, de caça abundante, das roças férteis e do barro bom para modelar a vida.
Mas também se falava do lamento.
— O homem branco cortou a pele do Opará — murmurou Wãmy, olhando as chamas dançarem.
— Primeiro foi Paulo Afonso, em 1955... — disse outro ancião, contando nos dedos os golpes.
— Depois Três Marias, em 1962... — completou outro, com a voz embargada.
— Sobradinho, 1979... Xingó, 1994... — sussurrou Wãmy.
O silêncio pesou. A dor do rio era dor do povo. Cada barragem erguida era como uma cicatriz aberta na memória coletiva.
Foi quando se ouviu a voz curiosa de Juaerã, o jovem aprendiz, que sentava sempre ao lado do avô:
— Wãmy... como se diz “hidrelétrica” na nossa língua?
O velho sorriu, como quem sente o peso da pergunta e a alegria da continuidade.
— Ah, Juaerã... quando o homem branco traz coisas novas, a gente se aperta todo pra achar um nome. Mas cada palavra nossa é uma história, e nenhuma história deixa de ter seu tempo.
Ele pensou um pouco, como quem colhe no ar as palavras antigas. E então, falou com firmeza:
— Em nossa língua Kariri, “cerca” é maená, “pedra” é cró, “cortar” é tçate e “rio” é iwo. Então, se a cerca feita de pedra corta o rio, podemos chamá-la de Maecrótçawo.
No Rio Opará viviam muitos povos indígenas: Aramuru, Natu, Romaris, Caxagó, Tupinambá, Caetés. Atualmente vivem alguns: Kariri-Xocó, Trucá, Tumbalalá, Xocó, Kariri-Xocó, Rodelas e outros mais.
O fogo iluminou o rosto de Juaerã. Havia tristeza nos olhos — a tristeza por um rio ferido — mas também uma luz de entendimento.
— Nada passa fora do tempo, Juaerã — concluiu Wãmy, olhando para o céu — a tradição registra tudo, até mesmo aquilo que tenta nos calar.
E naquela noite, sob o canto dos grilos e o sussurro do Opará, a palavra Maecrótçawo foi acolhida pela memória viva do povo. O rio podia ser cortado, mas a língua era ponte. E enquanto a palavra vivesse, o rio também viveria.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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