sexta-feira, 6 de junho de 2025

MARIA MATILDES, A Protetora dos Índios







Conto baseado em fatos da história Kariri-Xocó



Por Nhenety Kariri-Xocó


No calor do sertão alagoano, nos tempos em que o trem mal alcançava Porto Real do Colégio, ecoavam nas noites de lua cheia as histórias do povo Kariri-Xocó. Entre elas, uma se contava com respeito e reverência: a de Maria Matildes, a mulher que se tornou escudo e esperança para os indígenas da Rua dos Índios.


Gabriel Gonçalves, conhecido como Gravié, era um homem de posses, índio respeitado e dono de terras, casas e rebanhos. Seu nome era falado em voz baixa, não por medo, mas por admiração. Morava com sua esposa Luzia, irmã do pajé Manoel Paulo, e juntos mantinham viva a tradição de seu povo com rituais e encontros sagrados.


Mas o destino, com sua vara torta, veio pousar sobre Luzia, deixando-a paralisada por uma enfermidade sem nome. Foi então que Maria Matildes chegou àquela casa, trazida não por acaso, mas pelo sopro do espírito ancestral. Contratada para cuidar da enferma, logo se tornou mais que uma ajudante — tornou-se presença, silêncio, afeto.


Quando Luzia partiu, em 1912, a tristeza vestiu a casa por longos meses. Gravié recolheu-se, e, no tempo em que o luto cicatrizava a dor, o coração se reabriu: ele e Matildes tornaram-se companheiros de jornada.


A força de Matildes ia além do amor. Ela caminhava entre os brancos com firmeza, mas era entre os seus que se fazia rocha. Ao lado de Gravié, oferecia assistência ao povo Kariri e aos Xocó, mantinha vivo o espírito dos rituais, garantia espaço, respeito e acolhimento na Rua dos Índios.


Quando Gravié faleceu em 1932, não deixou apenas lembranças: deixou a ela tudo que possuía. Terra fértil, casas de tijolo, bois de chifre longo, moedas de prata. Maria Matildes tornou-se senhora de si e do destino de muitos. Ao redor de sua casa viviam parentes: o irmão Luiz Teipó, os primos Quinca, João Menino e Zeca. E todos sabiam: com ela, nenhum indígena estava só.


Matildes enfrentava autoridades, enfrentava o preconceito, e se impunha com o peso do respeito que conquistara. Era a voz dos que não podiam falar, o escudo dos que apanhavam calados.


Enquanto ela fazia valer os direitos dos seus, o pajé Francisquinho atravessava o sertão rumo a Bom Conselho, em Pernambuco, buscando apoio do padre Alfredo Dâmaso. Sonhavam com reconhecimento, com um lugar onde o povo não precisasse pedir permissão para existir.


Em 1944, Maria Matildes fez sua última travessia, deixando um rastro de lágrimas e saudade na comunidade. Muitos sentiram-se órfãos. Mas dizem os mais velhos — e em cada canto da aldeia isso ecoa — que parte da sua fortuna ajudou a erguer o Posto Indígena Padre Alfredo Dâmaso naquele mesmo ano. Lá surgiram a sede, a enfermaria e uma escola, tudo erguido com a força de um legado.


O que restou foi dividido entre os familiares, como era justo. Mas o maior bem que deixou foi a memória viva de uma mulher que amou e lutou como poucas. Até hoje, quando os mais antigos se reúnem à beira do fogo, alguém sempre diz:

— Ela ainda caminha por aqui... na força de nossa luta.





Autor: Nhenety Kariri-Xocó 



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