terça-feira, 3 de junho de 2025

NHEÊPERÉ, A Voz Ancestral Que Fala com Poder

 










Na aurora dos tempos, quando o Opará ainda sussurrava segredos apenas aos que sabiam escutá-lo, existia, firme como o tronco do jenipapeiro, a antiga Aldeia de Colégio. Ali, entre as águas abundantes e a mata generosa, vivia a grande família Pirigipe — os “Pescadores”, conhecidos por todos como Baca, o “Povo da Flecha”.


O nome Pirigipe vinha do casamento das palavras pirá, o peixe, e gibe, a nadadeira, revelando os que sabiam nadar entre os cardumes e capturá-los com maestria. Já Baca vinha de abá, o povo, e aca, o bico da flecha, os que transformavam o arco e a flecha em extensão de seu próprio corpo, pescadores e guerreiros do rio.


Dessa linhagem destemida nasceu aquela cujo nome seria gravado na eternidade: Nheêperé — a “Palavra Mágica”, “Aquela que fala com poder”. Seu nascimento foi saudado pelas águas do Opará e pelos ventos da mata; os anciãos logo perceberam que ali estava uma mulher escolhida pelos seres sagrados, dotada do dom raro de fazer da fala um caminho de sabedoria e força.


Naquela aldeia, que era abrigo para muitos, encontravam-se povos irmãos: Kariri, Karapotó, Aconã, Natu e Xocó. Fugidos das dores impostas pelos colonizadores, haviam tecido uma só teia, um só canto, uma só resistência. E entre eles, Nheêperé erguia-se como a mais sábia, guardiã das histórias, detentora das palavras que curavam e orientavam.


Contam os mais velhos que Nheêperé, com seu ornado de flores no cabelo e seu olhar que atravessava o tempo, estava presente quando, em 1859, o Imperador D. Pedro II visitou a aldeia. Lá, sua presença silenciosa, mas cheia de dignidade, testemunhou os encontros e os desencontros entre os mundos.


Era filha do valente indígena Manoel Altanásio, cabo de esquadra que andava lado a lado com o Capitão-Mor Pedro Lolaço, seu parente e companheiro nas andanças pelos sertões e pelas lutas que garantiram a sobrevivência de sua gente.


Os ciclos do tempo giraram, como gira a correnteza do Opará. Nheêperé viveu cento e quinze anos, vendo a aldeia transformar-se em cidade, em 1876, e com o coração sangrando, prometeu: “Minha palavra não descansará até que meu povo seja reconhecido.”


E assim foi. Já anciã, com a força das raízes profundas, em 1935, conversou com o estudioso Carlos Estevão, do Museu Goeldi. Sua fala firme e verdadeira permitiu que ele a reconhecesse como pertencente à etnia Natu. Esse encontro foi como o disparo certeiro de uma flecha: cruzou os ventos do tempo e preparou o caminho para a proteção de seu povo.


Por sua voz, em 1944, foi criado o Posto Indígena Padre Alfredo Dâmaso, pelo Serviço de Proteção aos Índios — o SPI —, marco de resistência e sobrevivência para aqueles que a terra e o rio geraram.


Nheêperé, a incansável, viveu para ver seu povo novamente protegido, para ver a promessa cumprida. Partiu em 1953, deixando atrás de si não apenas uma história, mas um legado, como uma árvore que, ao cair, espalha sementes por toda a floresta.


E assim, até hoje, nas margens do Opará, quando o vento balança as folhas e as águas sussurram, os mais atentos podem ouvir: é a voz de Nheêperé, a Palavra Mágica, a Anciã que fala com poder, ensinando que enquanto houver memória, há resistência, e enquanto houver palavra, há vida.




Autor: Nhenety KX 




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