terça-feira, 15 de julho de 2025

ATSEMIUCAN, Pessoa Leva Coisa Boa Para Vender






Um Conto Sobre Vendedores Ambulantes 


No tempo em que a Rua dos Índios ainda pulsava com o som dos maracás, das panelas batendo e das conversas nas portas, uma caminhante se aproximava da aldeia. Seu nome era Aparecida, mas todos conheciam como Dona Aparecida. Era assim que os mais velhos, como o Cacique Otávio Nidé, a chamavam.

— Lá vem Dona Aparecida! — dizia ele, sorrindo ao ver a mulher surgir do fim da estrada de terra, trazendo uma caminhonete com o coração cheio de histórias. Os indígenas deram o nome às pessoas ambulantes como Atsemiucan — “Pessoa que Leva Coisa Boa Para Vender”.


A palavra não existia antes no idioma, mas os anciões Kariri-Xocó a criaram juntando os saberes da língua:

Atse (Pessoa), Miui (Leva), Canghité (Coisa boa), e Taiu (Dinheiro).

Dona Aparecida carregava não só objetos — carregava o novo tempo.


Com ela vinham panelas de alumínio que brilhavam como lua cheia, talheres que pareciam de prata, cobertores, roupas, chácara, pratos belezas, perfumes fortes que lembravam flor que não nasce por aqui. E tudo era mostrado com alegria:


— Olha aqui, Dona Lurde! Panela que cozinha feijão mais rápido que fogo de lenha!


Ela ria, desconfiada.

— E paga como, mulher?


— Parcelado, minha senhora. Parcelado até a última lua do ano.


Os prestanistas, como eram chamados, não vinham apenas vender — vinham conviver. Eram recebidos com café de beiju e farinha fresca. Com o tempo, ficaram íntimos. Os nomes viraram lembrança na memória de toda uma geração: Dona Glorinha, que trazia vestidos floridos; o Senhor Pessoa, que vendia quadros de fotos e santos; Zeca do Fumo, sempre com um cigarro de palha na boca e uma piada na ponta da língua; e Francisco, que oferecia cadeiras, redes, chapéus até conselhos junto com seus produtos.


Em 1978, os Kariri-Xocó deixaram a Rua dos Índios, mas o espírito de Atsemiucan não foi embora. Hoje, as novas gerações continuam essa tradição. Agora, é o próprio povo indígena que parte para vender: levando cerâmicas, colares, cestos, bonecas de barro — e principalmente a força da sua cultura.


Atsemiucan não é mais só um nome.

É um espírito de troca, de confiança, de aprendizado entre mundos.


Por isso, todo menino que vê um caminhante chegar com um balaio de coisas boas pergunta:


— Vovô, ele é um Atsemiucan?


E o velho Kariri-Xocó, com sabedoria, responde:


— Sim, meu neto. Ele é mais que isso. Ele é parte da nossa história.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





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