Um Conto Sobre os Costumes
Na beira do rio, quando o sol já beijava o horizonte com suas cores de fogo e silêncio, o velho Pescador Aranhen sentou-se no jirau feito de paus retos. Ao seu lado, o pequeno Iamé, neto curioso de olhos brilhantes, esperava o momento em que as palavras do avô viravam caminho.
— Vovô, me conta... como era antes da gente viver na casa de tijolo, nos costumes dos Kariri?
O velho sorriu com o canto da boca e passou a mão no colar bebaté, que ainda usava com orgulho.
— Iamé... antes de tudo isso, vivíamos nas erá, as casas nossas de palha, de barro e alma. Ali, tudo era canghité kenhé, coisa boa do costume. As casas não eram só abrigo — eram parte do nosso corpo.
E o velho começou a contar. As palavras voavam como flechas certeiras:
— Tinha a pité, rede onde o sonho vinha leve como folha de ingazeira. Tinha o bodzó, machado que ajudava a abrir caminhos e cortar madeira boa. No canto da casa, morava o bará, um balaio grande onde a mandioca dormia depois de ralada. E perto dele, a tinhé, a cesta onde tua avó trazia os peixes do rio.
— E o que é dubé, vovô?
— Ah, o aió, dubé, era nosso companheiro nas andanças. Era como se fosse uma mão que carregava o mundo nas costas. O winá, o abano, refrescava o calor de meio-dia e a prebú, nossa cuia, fazia a água cantar na boca.
Iamé arregalava os olhos.
— Tinha mais?
— Oh... muito mais, meu neto. Na parede da erá, o buruhu, fuso da tua bisa, girava fios de algodão. O woncuró, tear do tempo, costurava os panos que cobriam nossas danças. O muhé, rede de pescar, conhecia os segredos dos peixes. E a kiniki, peneira, separava o que era bom do que era casca.
Iamé já podia ver tudo com os olhos do coração.
— E as coisas que a gente já não vê?
— Sim, Iamé... existiam o runhú e o aribá, panela e prato de barro que cozinhavam o alimento sagrado. O paiáwi, cachimbo, era o sopro dos espíritos. As mulheres se enfeitavam com tereré nos cabelos, e os homens caçavam com o seridzé, arco firme, e a yaru, flecha certeira.
O menino suspirava como se ouvisse música. O Pescador continuou:
— A água morava na buiú, vasilha de barro. A carne defumava no merebá, jirau de moquem. E quando queríamos fogo, bastava o nupyté roçar pau no pau que o calor nascia. As mulheres usavam sasá, saias de ouricuri, e sentavam no seby, nossa cadeira feita de sabedoria. E ainda havia buhehó, alguidar; pycá, banco; ruño, pote; eru, ralador; e os brincos de ubadi que tilintavam nas danças da lua.
Iamé fechou os olhos. Parecia ouvir o som do winá, sentir o cheiro do runhú, e quase pôde tocar a kiniki trançada com arte.
— Mas, vovô... por que a gente não tem mais tudo isso?
O velho olhou o céu escurecendo.
— Vieram os brancos, trouxeram outras coisas. Algumas dessas nossas foram proibidas, outras esquecidas, trocadas por plástico, ferro e cimento. Mas não se perdeu tudo. Está aqui — disse ele tocando o peito — e aqui também — disse, tocando a cabeça do menino.
— Porque enquanto um só de nós lembrar, essas coisas continuam vivas.
Iamé se levantou, correu até a rede pité e se deitou sorrindo.
Naquela noite, a casa sonhou junto com ele — e todos os canghité kenhé dançaram em volta do fogo, vivos como nunca.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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