terça-feira, 15 de julho de 2025

UCHÉ IWORÓ, A Roda do Tempo







Um Conto Sobre o Relógio 



O menino Ayanã se sentou perto da sombra do grande juazeiro, onde o ancião Kamurê costumava contar histórias aos mais jovens. Era um fim de tarde morno, quando o céu parecia acender suas cores de despedida, e as cigarras ensaiavam seus cantos derradeiros.


— Vovô Kamurê, — disse Ayanã com olhos brilhantes — como era que os antigos sabiam as horas, antes de existir o relógio?


Kamurê olhou o menino com um sorriso calmo, aquele que só os que sabem escutar o tempo sabem oferecer. Alisou sua bengala feita de angico e respondeu:


— Ah, netinho... antes do relógio dos brancos, o nosso povo já conhecia o Uché, o Tempo. A gente ouvia o que a Natureza — que chamamos de Antse — nos contava.


— E como ela falava com a gente? — perguntou Ayanã, curioso.


— O Tempo se dividia nos passos da própria vida. O Kaie, o Dia, começava na Kayadé, a Meia-Noite, quando o silêncio era tão grande que dava pra ouvir o coração do mundo batendo. Depois vinha a Ycaye, a Madrugada, de onde brotavam os primeiros cantos dos passarinhos, até que o céu clareava e nascia a Caye, a Manhã. Era tempo de preparar o mingau, lavar o rosto no rio e escutar o sol.


— E depois?


— Depois, chegava o Karaí, o Meio-Dia, quando o sol ficava lá no alto feito um olho de fogo. Aí vinha a Kaiapli, a Tarde, quando as sombras começavam a crescer. Por fim, a Kayá, a Noite, trazia o descanso e os sonhos. Assim a gente media o tempo, com o que víamos, ouvíamos e sentíamos.


Ayanã pensava maravilhado. Então Kamurê continuou, com a voz mais baixa, como quem contava segredo:


— Mas um dia, os portugueses chegaram com um objeto estranho... um aparelho que fazia “tic-tac”. Diziam que era para medir o tempo. Chamavam de relógio. Nosso povo passou a chamá-lo de Uché Iworó, que quer dizer "Roda do Tempo", porque ele tinha ponteiros que rodavam feito a dança das estrelas.


— E quem foi o primeiro a ter um? — perguntou o menino.


— Ah, essa história minha mãe contava... Lá na Rua dos Índios, a primeira mulher da aldeia a pendurar um relógio de parede foi Maria Matildes, isso no ano de 1932. Dizem que ela era muito respeitada, rica para o nosso modo de viver, e o relógio dela brilhava na parede como se fosse um olho de jaguar.


Kamurê fez uma pausa, depois riu:


— E em 1969, quando eu era menino como você, lá na Escola Kariri, já tinha um relógio de parede. Era o José Tononé, indígena da FUNAI, que todo dia dava corda nele com uma chave. Era bonito de ver... o tempo girando ali dentro, feito encantamento.


— E os relógios de pulso? — perguntou Ayanã, apontando para o próprio braço vazio.


— Ah, esses vieram depois. Nos anos 70, quando nossos parentes começaram a trabalhar em obras da cidade, compravam relógios Orient e Seiko, de pulso ou de bolso. Chamamos de Uchéwo Mysã, relógio de pulso. Eram caros, mas eram tesouros de quem suava com dignidade. Cada relógio era um pedaço da luta estampado no pulso.


Kamurê apontou então para o celular de Ayanã, que ele carregava no bolso da camisa.


— Hoje, o tempo vive ali dentro. No celular, na TV, no relógio digital. Mas nunca se esqueça, meu netinho: o verdadeiro Uché ainda vive no voo do beija-flor, no calor do sol, no orvalho da madrugada. O relógio só marca o tempo. Quem sente ele passando é a gente.


Ayanã ficou quieto, olhando as nuvens rosadas no céu.


Kamurê fechou os olhos e sussurrou:


— O tempo é como o vento. Você não vê, mas sente. E quando escuta com o coração, ele ensina mais do que qualquer relógio.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 




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