Um Conto Sobre o Futebol na Aldeia
Na beira do Rio São Francisco, onde o vento sopra histórias antigas e o tempo caminha com passos de espírito, nasceu uma paixão que balança os corações como folhas nas árvores da aldeia: o Byghitó, “Jogar Pé na Coisa Redonda”.
Foi nos anos de 1950 que a novidade chegou com força a Porto Real do Colégio, cidade marcada pela presença ancestral dos Kariri. O povo ainda vivia reunido na Rua dos Índios, mas mesmo com a luta diária por respeito e identidade, seus olhos brilhavam diante daquela coisa redonda que rolava pelo chão e fazia os pés dançarem.
Na língua Kariri, chamaram o novo jogo de Byghitó — nome bonito e verdadeiro:
By, que é o "Pé".
Canghité, a "Coisa".
Totó, o "Redondo".
Naquele tempo, formou-se o primeiro time da cidade: o Colegiense. Entre os que vestiram a camisa, estava Miguel Suíra, indígena de coragem, que driblava como se estivesse traçando caminhos no mato e corria como quem foge de espírito antepassado. Não demorou para Miguel se destacar. Seus pés, acostumados com o chão batido da aldeia, fizeram história também nos campos profissionais de Alagoas.
Os anos passaram como o rio, sempre em movimento. Vieram outros times, outras camisas, e os Kariri estavam lá — firmes, chutando com força e alma. Nasceu o Cruzeiro da Rua da Aurora, onde muitos indígenas mostraram sua força. Depois veio o Kariri Esporte Clube, fundado em 1975, feito com suor, sonho e união. Mais tarde, em 1980, foi a vez do Esporte Clube Guarani, fundado por filhos da terra e do tronco ancestral.
E a paixão virou tradição.
O Guarani conquistou três campeonatos municipais — tricampeão com orgulho. O Kariri também levantou taça. E até o time PSG da Aldeia, com nome moderno, mostrou que os pés da aldeia ainda dançam bem com a bola.
Hoje, aos domingos, o campo de futebol da aldeia enche-se de vida. Crianças, jovens e anciãos se reúnem. Não é apenas um jogo. É um ritual de alegria. Um momento em que a cultura ancestral encontra o presente. Cada chute é memória. Cada gol é vitória sobre o esquecimento.
Porque para os Kariri-Xocó, o Byghitó não é só esporte.
É parte do coração.
É identidade correndo no campo.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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