Um Conto Sobre a Geladeira
Na beira do rio São Francisco, onde os ventos cantam histórias antigas entre os cajueiros e o murmúrio das águas embala os dias, vivia o velho Mãhu, ancião respeitado do povo Kariri-Xocó. Seu olhar guardava o tempo, e sua fala era como o som do maracá: pausada, firme e cheia de ensinamentos.
Certa tarde, sob a sombra generosa de um umbuzeiro, ele chamou os netos para perto e disse:
— Vou contar a vocês sobre o dia em que chegou à aldeia a Cramenunhí, a "Caixa Que Esfria".
Os olhos das crianças brilharam. Elas já conheciam a geladeira que ficava na cozinha da casa comunitária, mas nunca haviam parado para pensar que ela também tinha uma história.
— Era o ano de 1975 — começou Mãhu — quando o Projeto de Irrigação do Itiúba chegou por aqui. Cerca de quarenta famílias nossas foram integradas. Foi nesse tempo que muita coisa começou a mudar.
Ele olhou para o horizonte, como se visse outra época surgir entre as folhas.
— Com o trabalho nas lavouras de arroz, conseguimos melhorar o sustento. Vieram os salários, e com eles... as primeiras geladeiras. Chegavam nas caminhonetes, embrulhadas em papelão, com nomes diferentes: Consul, Brastemp. Eram altas, pesadas e brancas como a lua cheia.
As crianças riram, curiosas.
— E o que ela fazia, vô?
— Ah, ela esfriava! — respondeu sorrindo. — Guardava o peixe do rio, a carne do gado, os legumes da roça. Também guardava coisas novas que nunca tínhamos visto antes: latas com rótulos coloridos, garrafas com líquido espumante, pedaços de carne embutida que vinham de muito longe.
— Era mágica? — perguntou o pequeno Itã, arregalando os olhos.
— Para muitos, parecia que sim — disse Mãhu. — Demos a ela um nome nosso: Cramenunhí. Vem de cramenu, que é "caixa", e cunhí, que é "frio". Nunca existira algo assim na língua, mas nossa língua é viva, meu neto, e ela cresce com o que vivemos.
Mãhu fez uma pausa, e depois falou mais sério:
— Mas a chegada da Cramenunhí também trouxe mudanças. O Ruño, nosso pote de barro, começou a ficar de lado. Ele que por tanto tempo conservava a água fresca, passou a ser visto como coisa velha pelos brancos, e até por alguns dos nossos.
As crianças se calaram. Sentiram a tristeza leve que vinha com o silêncio do avô.
— Hoje — continuou ele — toda família Kariri-Xocó tem uma geladeira em casa. A Cramenunhí virou parte da nossa vida. Mas o Ruño ainda está ali. Em muitos cantos da aldeia, ao lado da geladeira, firme, de barro, cheio de histórias.
Mãhu pegou um pequeno maracá e o sacudiu suavemente.
— A tradição e a mudança não precisam brigar. Elas podem caminhar juntas, como as águas do rio e o barro das margens.
Os netos sorriram. E naquela tarde quente, o velho Mãhu sabia que uma nova história acabava de nascer.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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