quarta-feira, 9 de julho de 2025

CRAMEUPUDU, Caixa de Ferro Sopra Fogo






Um Conto Sobre o Fogão a Gás 


Naquele tempo, quando a noite descia mansa sobre a aldeia, e as estrelas se deitavam como sementes no pano escuro do céu, os mais velhos chamavam as crianças para junto do fogo. Ali, o calor dançava nas chamas e nas palavras, e as histórias caminhavam de boca em boca, feito rio que conhece seu leito.


Foi assim que ouvi, pela primeira vez, a história do Crameupudu, a misteriosa Caixa de Ferro que Sopra Fogo.


— No princípio — disse o avô Katembé, com os olhos brilhando sob a luz do braseiro — o fogo era feito com paciência. Vinha da madeira seca, do atrito, do sopro do espírito no carvão. Servia para cozinhar, assar, moquear, aquecer o corpo e a alma. O fogo era nosso parente antigo. Vivíamos com ele.


Mesmo depois que o estrangeiro pisou nossa terra e espalhou seus modos, o nosso fogo ficou. Em panela de barro ou na trempe de pedra, ele continuou fiel às mãos da gente. E assim foi por muito tempo...


Mas os ventos da cidade sopraram também sobre a Rua dos Índios — hoje conhecida como Bairro Kariri, em Porto Real do Colégio. Veio a estrada, veio o cimento, veio o barulho das máquinas. E, junto com tudo isso, chegou um novo tipo de fogo: um que não se via até que aparecesse.


— Como assim, avô? — perguntei, arregalando os olhos.


— Chegou o fogão a gás — respondeu com voz grave —. E nós o chamamos Crameupudu. Porque é uma caixa de ferro — cramenu merata — que sopra o fogo — upuh du. Quando a gente gira aquele botão, o invisível sopra, e o fogo se mostra. Como se o espírito da brasa morasse lá dentro, quieto, esperando o chamado.


O Crameupudu veio para os brancos primeiro. Depois, quando os homens da aldeia passaram a trabalhar nas construções da cidade e no projeto de irrigação do arroz em Itiúba, por volta de 1975, o dinheiro entrou e, com ele, o fogão chegou às casas dos Kariri-Xocó.


Não substituiu o velho fogo de lenha, não. Mas fez morada ao lado dele. E ali, no quintal das casas de barro batido, passaram a viver os dois fogos — o ancestral e o novo — lado a lado, como irmãos de tempos diferentes.


O Crameupudu era pesado, com corpo de ferro e alma de vento quente. Mas mesmo sendo uma invenção de fora, ganhou nome na nossa língua. Porque aquilo que é nomeado se torna parte da gente, se encaixa na memória, entra no mundo do sagrado.


Até hoje, muitos cozinham no Crameupudu. Mas ao redor do fogo tradicional, ainda se ouvem as histórias antigas. E é por isso que eu te conto esta, agora. Para que não esqueças. Para que saibas que, mesmo quando a caixa de ferro sopra o fogo invisível, o espírito do calor que une os povos ainda vive.


Autor: Nhenety Kariri-Xocó

Inspirado nos saberes do povo Kariri-Xocó de Porto Real do Colégio (AL)




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 






Nenhum comentário: