Um Conto Sobre a Agricultura
Na antiga aldeia Natiá, onde os cantos se misturavam ao vento e os passos seguiam as trilhas da floresta, os espíritos dos ancestrais ainda dançavam entre as árvores. Foi ali que chegaram os primeiros brancos, vindos de além-mar. Trouxeram consigo o brilho encantador do Waruá, o espelho, e o ofereceram como presente aos nossos antepassados. Eles viam, fascinados, suas próprias imagens refletidas como nunca haviam visto. Mas o que parecia um gesto de amizade logo se tornou um ardil.
Com o Merabodzó, o machado de ferro, os brancos derrubaram as florestas que protegiam o coração da terra. Árvore por árvore, a mata foi caindo, e o silêncio ancestral deu lugar ao estalido das derrubadas. Quando o verde já não escondia mais os caminhos, trouxeram a Tasí, a enxada. Com ela, obrigaram os nossos a lavrar a terra para plantar cana-de-açúcar. Multiplicaram-se os Wirapararã, os engenhos, como feridas abertas na terra, moendo o suor dos corpos indígenas.
Mas nós resistimos.
Nos tempos dos jesuítas, fomos reunidos nos aldeamentos, e mais uma vez, nossas mãos empunharam a enxada. Plantamos mandioca, milho, feijão e abóbora para sustentar a Missão do Colégio. Quando os jesuítas se foram, ficaram apenas os nossos – sem terra, sem floresta, sem rumo. E para sobreviver, tivemos que trabalhar para os fazendeiros da região, sustentando nossas famílias com a força do braço e o canto da alma.
Na década de 1920, o algodão se espalhou por Alagoas, e muitos de nós foram para as fazendas dos brancos. Os campos brancos de flor exigiam nossas mãos calejadas. Essa jornada seguiu até 1944, quando foi fundado o Posto Indígena Padre Alfredo Dâmaso. Com um pedacinho de chão na Colônia Indígena, ergueram-se roças comunitárias. Os mutirões ecoavam cânticos de união, de esperança, de fartura.
Em 1978, a conquista da Fazenda Modelo reacendeu o espírito dos antigos. Com a velha Tasí, continuamos a plantar nossas roças. Havia muitos agricultores na aldeia, e cada safra era um ciclo de resistência e memória. Mas o tempo passou. Os que lavraram os campos com amor e suor hoje estão velhos, e muitos já partiram para a Aldeia Sagrada.
Agora, restam poucos agricultores entre nós. O Tasí Uché, o Tempo da Enxada, ficou para trás, mas vive em nossas lembranças, em nossas histórias, em nossas raízes.
Pois cada sulco aberto pela enxada foi também uma linha escrita na terra, registrando a jornada de um povo que nunca deixou de lutar.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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