sexta-feira, 11 de julho de 2025

UCHÉ UBÁMERAPUI, No Tempo dos Vapores






Um Conto da Navegação a Vapor


Houve um tempo em que o grande rio Opará sussurrava canções diferentes. Um tempo em que as águas não dançavam apenas ao ritmo das canoas, mas também ao rugido lento e fumegante das Ubámerapui, as “Canoas de Ferro Fumegantes”, como chamávamos os vapores.


Foi no século XIX que essas embarcações surgiram, riscando o espelho do São Francisco com suas trilhas de fumaça e ferro. Os Kariri-Xocó, guardiões das margens e do tempo, viram os vapores aparecerem como bichos grandes, cuspindo fumaça, carregando gentes e mercadorias entre as cidades de Penedo, Propriá, Traipú, Piranhas, e tantas outras aldeias do Opará.


A aldeia de Colégio, onde vivíamos, ficava bem na beira do rio. E não demorou para que nossas crianças corressem à margem quando ouviam o apito cortando o ar. Nós também viajávamos nos vapores. O mundo se movia mais rápido, mas o nosso tempo seguia no compasso dos encantados.


Indaiá, anciã de fala doce e olhos de memória viva, gostava de sentar sob o juazeiro e contar os causos daquele tempo. Ela falava do vapor Encomendador Peixoto, que navegava altivo, como se soubesse seu valor, e do pequeno Penedinho, que se atrevia a cruzar o rio como se fosse uma criança arteira.


— O Encomendador — dizia Indaiá — dançava nas águas durante a procissão do Bom Jesus dos Navegantes, trazendo fé e festa aos corações ribeirinhos. O vapor se enfeitava como um santo, com bandeirolas coloridas e cheiro de flor.


Ela também contava da visita do Imperador Dom Pedro II, que em 1859 veio a bordo do vapor Pirajá, deslizando pelo Opará como quem visita um velho amigo. Parou em Penedo, saudou Propriá, olhou Traipú, e viu, ainda que com olhos de fora, a alma das aldeias Kariri-Xocó e São Pedro.


Nos porões dos vapores iam cargas de tudo: sacas de cereais, carvão negro como noite de breu, tecidos vindos de longe, bichos, ferragens, e sonhos empacotados em baús. O comércio crescia, as cidades se agitavam, mas para nós, os vapores eram também memória viva, testemunhas de uma travessia entre dois tempos.


A última viagem do Encomendador Peixoto foi no fim dos anos 1960. Seu apito ecoou pela última vez como um canto de despedida. E desde então, as águas do Opará voltaram a ser cortadas apenas por canoas, motores menores, e pelas lembranças de quem viveu aquele tempo.


Hoje, quando falamos Uché Ubámerapui — “No Tempo dos Vapores” — um silêncio cheio de saudade nos toma. Não é apenas a lembrança das embarcações, mas o retrato de um tempo em que o mundo parecia deslizar mais lentamente sobre as águas do rio.


E assim seguimos, nós, Kariri-Xocó, navegando entre o ontem e o agora, com o coração ancorado no Opará e a alma lembrando sempre... do tempo dos vapores.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





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