Um Conto de Memória Digital Indígena
Era o tempo em que os livros começavam a perder o cheiro da tinta e ganhavam o brilho das telas. E mesmo assim, os povos da floresta, da beira do rio e da aldeia não deixavam de escrever — apenas aprendiam a escrever de outras maneiras.
Em Kariri-Xocó, as primeiras sementes desse novo tempo foram lançadas no ano de 2004, quando surgiu a Rede Índios Online, criada com o apoio da ONG Thydewá. Ali, os saberes dos povos originários passaram a viajar por caminhos invisíveis, atravessando cidades, cabos e satélites, chegando a lugares onde os pés ainda não podiam pisar.
Mas publicar livros ainda era difícil. Papel custava, impressão era demorada. Então o presidente da ONG, Sebastian, criou um novo espaço de guardar e compartilhar saberes: o site thydewa.org, no dia 13 de julho de 2011 — um terreiro digital onde a palavra indígena poderia crescer livre.
Foi nesse mesmo espírito que Nhenety Kariri-Xocó, também membro da Thydewá, lançou o E-book “Dois Irmãos no Mundo”, em 16 de abril de 2015, nas terras de Olivença, Ilhéus, sul da Bahia. Mas como dizer “E-book” na língua Kariri-Xocó, se esse termo vinha de longe e não tinha raiz nas palavras ancestrais?
Então Nhenety criou um novo nome. Um nome que brotasse da terra e da língua do seu povo:
Chamou-o de Toramysã.
De Torarã, que é livro.
E de Mysã, que é mão.
Toramysã: o livro de mão.
Ou ainda: o livro digital, que mora nas mãos e nas telas.
Outros livros viriam também, como o Arco Digital, lançado em 2007 em Maceió, e que mais tarde também se tornou E-book. Todos eles, guardados como sementes de palavras vivas no campo fértil do site da Thydewá.
Mas esse não é apenas um conto sobre livros. É um conto sobre transformação.
Sobre como a língua dos povos indígenas precisa ser atualizada, recriada, fortalecida — para continuar contando o mundo que muda ao redor, sem deixar de ser ela mesma.
Porque Toramysã é mais que um nome novo.
É um gesto de resistência,
Um abraço entre o antigo e o moderno,
Um elo entre a memória e o toque digital.
O livro agora mora na palma da mão,
Mas sua alma continua na aldeia.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
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