segunda-feira, 14 de julho de 2025

WAHINÉ, A Imagem Na Luz






Um Conto Sobre o Slide 



Na Rua dos Índios, quando os Kariri-Xocó ainda moravam por lá, algo diferente aconteceu num certo ano de 1974. Chegaram àquela terra quente e viva duas pessoas de longe, de um país chamado Estados Unidos. Eram o senhor Floyd e dona Hida — dois amigos sinceros do nosso povo, que logo se tornaram conhecidos e queridos na aldeia de Porto Real do Colégio, em Alagoas.


Sempre que podiam, vinham nos visitar. Andavam devagar pelas casas de barro e mato, conversavam com nossas ceramistas sábias — Indaiá, Júlia Muirá, Maria Soya, Luiza Binga e tantas outras que moldavam não só o barro, mas também a história com suas mãos.


Mas o que mais nos encantava era aquele objeto que o senhor Floyd carregava: uma caixa mágica que ele chamava de Slide. Nós, Kariri-Xocó, demos-lhe outro nome, mais bonito em nossa língua: Wahiné, “Imagem na luz”. Era feito de luz e memória, nascido do nosso idioma antigo: Waruá — imagem, e Hiné a luz.


À noite, ele ligava o Wahiné na parede branca da escola. A luz acendia, e de dentro dela surgiam imagens: nossas imagens! Crianças pescando, mulheres moldando o barro, homens no rio com as canoas, rostos sorrindo. Nunca tínhamos visto algo assim. Não era como o Warudókli, o espelho que fala — a televisão — que mostrava gente de fora. Nem como o Hinetoklité, a luz que fala no pano — o cinema — que passava histórias de outros lugares.


O Wahiné era diferente. Era nosso.


Ver-se na luz era como se a aldeia ganhasse uma alma nova. Embora as imagens não se mexessem nem falassem, ali estavam nossos passos, nossos risos, nossas vidas guardadas como lembrança de uma noite viva.


Depois, a vida mudou. Fomos para a Fazenda Modelo. O senhor Floyd e dona Hida voltaram para sua terra. Por muitos anos, não os vimos mais.


Mas a amizade não terminou. Muitos anos depois, já idosos, voltaram à aldeia. A senhora Hida reencontrou minha mãe, Indaiá, e se abraçaram com emoção. Eu, Nhenety, quis retribuir aquela amizade antiga com algo precioso: entreguei ao senhor Floyd um vocabulário das línguas Kariri Dzubukuá e Kipeá. Ele recebeu com carinho — como quem acolhe uma herança viva.


Depois disso, voltaram para os Estados Unidos. Mas o Wahiné ficou conosco, como lembrança daquele tempo mágico em que a luz trouxe nossas próprias imagens para dentro da aldeia — e nos ensinou que também podíamos existir na memória do mundo.




Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





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