🌿 A Fábula das Aves da Noite
Quando o sol mergulhou no rio vermelho do entardecer, a floresta inteira se cobriu de silêncio. Era a hora em que o manto da Noite (Kûaray-ûasu) descia para abraçar a Terra. Mas o silêncio não durava muito, pois vinham os guardiões que cantavam entre os galhos, abrindo o portal entre mundos.
Primeiro apareceu o Caburé (kaburé), a pequena coruja da mata. Ele pousou na ponta de um tronco e disse:
— Eu sou o vigia humilde. Meus olhos pequenos carregam a luz escondida das estrelas. Sou o primeiro a anunciar que a noite chegou para guardar os homens e os animais.
Do outro lado, o Urutau (uru-taú), a ave do lamento, respondeu com seu canto triste:
— Eu sou a saudade. Minha voz é o choro que lembra aos homens os que já partiram. Mas não trago medo, trago memória. Quem me escuta, lembra dos ancestrais e dos amores que ainda vivem dentro do coração.
Logo o Kurukuku fez ecoar sua cantoria repetida:
— Sou a lembrança da roda do tempo. Repito o som para ensinar que tudo volta, tudo gira, e a noite de hoje já foi vivida pelos antigos.
Então veio o Jacurutu, imponente como sombra grande:
— Eu sou a força. Minha asa cobre o medo. Quem me encontra sabe que a noite também tem guerreiros, e que a coragem não dorme.
Na beira da capoeira, a Suindara, a senhora do grito estridente, abriu as asas brancas como véu de lua:
— Eu sou o aviso. Minha voz rasga o silêncio porque a mudança vem, seja vida, seja morte. Sou ponte entre o que está e o que chega.
Mais adiante, ecoou a voz do Akauã, o grito alto da mata:
— Sou mensageiro. Meu canto atravessa o espaço para avisar que o ciclo da vida nunca termina. Onde há partida, há chegada.
E todas as aves, reunidas sob o céu estrelado, cantaram juntas. O povo da aldeia, ao ouvir, compreendeu:
a Noite não é só escuridão, mas um caminho de vozes que protegem, lembram, ensinam e anunciam.
Assim nasceu o respeito às aves da noite. E até hoje, quando alguém escuta o urutau chorando, a suindara gritando ou o caburé cantando, lembra que não estamos sozinhos na escuridão — pois os guardiões do invisível seguem a nos acompanhar.
🌿 Mensagem da Fábula
A noite não é apenas o medo, mas também memória, aviso, proteção e ligação com o invisível.
As Aves da Noite são guardiãs do trânsito entre mundos, vozes da ancestralidade que ecoam no coração humano.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó
KÛARAY-ÛASU REMI'Õ, As Cantoras da Noite
(Cordel)
Quando o sol vai se deitar
E a mata fica calada,
Surge um manto lá do céu,
Cobrindo a Terra sagrada.
É a Noite que se abre,
Com sua forma encantada.
Na beira da capoeira,
Chega o pequeno Caburé,
Com olhos como estrelas,
Vigia tudo o que é.
Guarda homens e animais,
Sem que ninguém saiba porquê.
No tronco seco da mata,
O Urutau vem lamentar,
Seu canto triste é memória,
É saudade a relembrar.
Dos que partiram da aldeia,
Mas continuam a habitar.
O Kurukuku ressoa,
Com canto sempre a girar,
Repete o tempo da vida,
Que volta sem descansar.
Tudo é roda que ensina
Que o ontem pode voltar.
Grande sombra da floresta,
O Jacurutu se ergueu,
Com sua asa imponente
Mostrou coragem que é seu.
Na escuridão da noite,
O medo logo se perdeu.
A Suindara, altaneira,
De asas brancas, chegou,
Seu grito forte avisa:
Algo novo despertou.
Entre a vida e a partida,
Ela o caminho mostrou.
Por fim cantou o Akauã,
Grito alto, retumbante:
“Eu sou ciclo que não cessa,
Sou a voz do caminhante.
Onde há fim, nasce começo,
No eterno giro constante.”
E juntas as aves cantaram,
Num coro cheio de luz,
Mostrando ao povo da aldeia
Que a Noite também conduz:
É mestra, guia e caminho,
É sombra que sempre seduz.
Por isso quem hoje escuta
Um canto de ave noturna,
Não deve sentir apenas
A presença que importuna.
Mas sim saber que é guardião
Que protege e que alumia.
✨🌿
O cordel ecoa o mesmo sentido da fábula, mas agora com ritmo de cantoria, para ser lido, recitado ou até mesmo cantado como na tradição oral.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó

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