📘 FALSA FOLHA DE ROSTO — VOLUME 9
WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ
LUZ DO NOVO MUNDO
Contos – Volume 9 – Coletânea
Nhenety Kariri-Xocó
📘 VERSO DA FALSA FOLHA DE ROSTO
(Página intencionalmente deixada em branco, conforme padrão editorial.)
📘 FOLHA DE ROSTO
WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ
LUZ DO NOVO MUNDO
Contos – Volume 9 – Coletânea
Nhenety Kariri-Xocó
Porto Real do Colégio – Alagoas
2025
📘 FICHA CATALOGRÁFICA (CIP)
(Modelo editorial profissional inspirado no padrão da Câmara Brasileira do Livro — versão artesanal para obra independente.)
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Nhenety Kariri-Xocó
Kariri-Xocó, Nhenety.
Woroy História, Kariri-Xocó: Luz do Novo Mundo – Contos – Volume 9 – Coletânea /
Nhenety Kariri-Xocó. – Porto Real do Colégio (AL), 2025.
120 p. ; il.
Inclui contos tradicionais, culturais e contemporâneos do povo Kariri-Xocó.
ISBN: (a inserir, caso deseje criar um ISBN independente)
Literatura indígena brasileira.
Contos tradicionais.
Cultura Kariri-Xocó.
Ancestralidade.
Narrativas orais.
CDD: 869.93
CDU: 821.134.3-32
Elaborado pelo autor.
📘 DEDICATÓRIA
Aos meus ancestrais que caminham na luz profunda;
aos que guardam os nomes antigos no sopro da memória;
aos que mantêm viva a chama que atravessa tempos, trilhas e mundos.
Dedico este livro ao meu povo Kariri-Xocó,
que transforma a caminhada em história
e a história em caminho.
E dedico também a cada leitor,
que recebe estas palavras como quem segura um lume,
sabendo que toda luz tem origem em outra luz.
📘 AGRADECIMENTOS
Agradeço aos meus parentes, mestres e guardiões da palavra,
que sempre me ensinaram que contar é também curar.
Agradeço aos meus ancestrais,
que deixaram sinais, rastros e ensinamentos
que atravessam séculos e chegam até nós
como vento que fala e como terra que escuta.
Agradeço aos leitores que caminham comigo neste Volume 9,
levando adiante a força dos contos
que nascem da Rua dos Índios,
da memória viva,
da luz do novo mundo.
E agradeço ao Grande Espírito
por permitir que a palavra siga viva,
respirando em cada página.
📘 EPÍGRAFE
“Da luz antiga nasce a história;
da história nasce o caminho;
e do caminho nasce o povo.”
— Tradição Kariri-Xocó
📘 SUMÁRIO
Falsa Folha de Rosto .......................................................... 5
Verso ................................................................................. 6
Folha de Rosto .................................................................. 7
Ficha Catalográfica (CIP) .................................................. 8
Dedicatória ....................................................................... 9
Agradecimentos ............................................................... 10
Epígrafe ............................................................................ 11
Prefácio ......................................................................... 13
Apresentação ................................................................. 17
Introdução ........................................................................ 21
Contos
Hinebakró, A Luz no Tronco de Pedra... .................................... 27
Hinetoklité, A Luz que Fala no Pano........ ................................. 37
Tayu Nunú Uanie, Dinheiro Na Língua Indígena.................................... 47
Crameokli, A Caixa Que Fala.... 57
Cramenunhí, A Caixa Que Esfria.......................................... 67
Crameupudu, Caixa de Ferro Sopra Fogo
..................................................... 77
Wahiné, A Imagem Na Luz ........ 87
Warudókli. O Espelho Que Fala.. 97
Uanie Dawí Dehó Canghité Caraí, Indígena Usa Coisas de Branco............... 107
Bemydjéretó, A Jornada do Colar Vivo............................................ 117
Apêndices ........................................................................ 129
Glossário ......................................................................... 135
Dados Biográficos ............................................................. 141
Orelha ................................................................................ 147
Capa e Contracapa ............................................................ 151
📘 PREFÁCIO
Os contos apresentados neste Volume 9 — Woroy História, Kariri-Xocó, Luz do Novo Mundo — refletem a continuidade de uma tradição que não se apaga. Cada história é uma lâmpada viva que o povo Kariri-Xocó acende através da palavra, atravessando o tempo para iluminar o agora.
Nesta obra, Nhenety Kariri-Xocó nos conduz por caminhos onde tecnologia e ancestralidade dialogam. O choque e a fusão entre mundos aparecem não como conflito absoluto, mas como aprendizado, interpretação e ressignificação. As “caixas”, as “luzes”, os “espelhos” e os “objetos de branco” não são apenas invenções modernas vistas de longe: tornam-se espíritos, forças e presenças que cada indígena, em sua sabedoria, decifra com cuidado.
O autor reconstrói esses encontros com a sensibilidade de quem vive a memória de seu povo e a entrega ao leitor como quem entrega um artefato sagrado. Seus contos não apenas narram — eles escutam, percorrem, traduzem e protegem.
Este volume reafirma a missão literária de Nhenety: preservar a voz dos antigos, honrar o presente e guiar os que virão.
Que esta luz — a luz do novo mundo — brilhe sem ferir, e que cada leitura acenda em nós o respeito pela multiplicidade dos conhecimentos humanos.
📘 APRESENTAÇÃO
A coletânea Woroy História, Kariri-Xocó, Luz do Novo Mundo — Volume 9 integra a grande série literária dedicada à memória, imaginação e cosmologia do povo Kariri-Xocó, narrada por Nhenety Kariri-Xocó.
Cada conto presente neste volume dialoga com um aspecto fundamental da relação entre o ser indígena e o mundo exterior. O autor revela, por meio de metáforas potentes e símbolos tradicionais, como o povo interpreta a chegada de novas tecnologias e costumes. Tudo é observado com o olhar de quem conhece as forças invisíveis do mundo e, por isso, compreende que cada objeto possui alma, voz e intenção.
Este livro dá continuidade ao registro escrito da tradição oral Kariri-Xocó, reafirmando a importância de cada história como fonte de ensinamento, memória e resistência cultural. É uma obra para pesquisadores, leitores sensíveis e todos aqueles que desejam compreender a ponte entre o antigo e o novo.
Seja bem-vindo a este território da palavra viva.
📘 INTRODUÇÃO
Os contos deste volume nascem das encruzilhadas entre dois mundos: o mundo ancestral dos povos indígenas e o mundo tecnológico dos não-índios que, ao longo dos séculos, adentrou aldeias, rios e caminhos sagrados. Ao observar cada objeto novo, os Kariri-Xocó criaram interpretações próprias, nomeando, entendendo e espiritualizando aquilo que chegava.
Nesse processo, cada novo elemento — fosse pano que falava luz, tronco de pedra iluminado ou caixa que soprava fogo — tornava-se parte do imaginário indígena, recebendo vida, função e espírito. Essas narrativas revelam como o povo reinterpretou o contato externo para mantê-lo alinhado com sua cosmologia, sua ética e sua identidade.
Os contos aqui reunidos preservam memórias familiares, histórias antigas e observações profundas do autor. Por isso, este volume não é apenas literatura: é documento cultural, testemunho e celebração de um pensamento que não se perde.
Com esta coletânea, convido o leitor a caminhar entre luzes, sombras e espíritos que habitam a fronteira entre tradição e modernidade. Aqui, cada objeto conta, cada gesto fala, e cada história abre uma porta para compreender o tempo indígena.
📘 CONTOS
01. HINEBAKRÓ, A LUZ NO TRONCO DE PEDRA
Meu nome é Aruá, e carrego nas lembranças o dia em que a luz chegou na nossa rua, a Rua dos Índios, em Porto Real do Colégio. Eu era só um menino, com os pés rachados de correr no barro e os olhos cheios de estrelas. Mas aquele dia ficou gravado no meu peito como se fosse o primeiro nascer do sol que vi na vida.
Antes disso, a noite era dona de tudo.
A aldeia dormia cedo, e os olhos aprendiam a enxergar no escuro. A gente sabia os caminhos pela posição da lua e das árvores, e as vozes dos mais velhos conduziam nossas histórias sob a luz do fogo. A vida era acesa por outros brilhos.
Foi minha avó, Júlia Muirá, quem me contou como tudo começou, muito antes de eu nascer.
— Aruá, tu sabias que a primeira luz nas ruas era fogo em água?
— Fogo em água, vó? Isso existe?
Ela sorriu com aquele jeito calmo de quem sabe mais do que diz.
— Era o gás, meu neto. Nas lamparinas de rua, penduradas nos troncos de madeira. Chamávamos de Hinedzudu, a luz da água de fogo. Hine é luz, dzu é água e du é fogo. Tudo junto, uma novidade naquela época em que a aldeia virou vila colonial, por volta de 1876.
Imaginava aqueles postes como árvores mágicas com olhos de fogo, iluminando caminhos de terra batida, quando fundou o Posto Indígena em 1944 o prédio teve luz por gerador assim como na cidade.
Com o tempo, a avó disse que vieram os motores a óleo, e a energia passou a vir de fios e geradores. Só funcionavam até as onze da noite. A gente ainda dependia da lua.
— Chamamos de Hinebarú, luz no tronco de pau. Porque era assim mesmo, neto — postes de madeira com as lâmpadas penduradas no alto.
Mas foi só em 1962 que chegou a luz elétrica no centro da cidade, com a CEAL. E na nossa rua... bem, foi só em 1967.
Lembro que era fim de tarde, o céu já começava a mudar de cor, e os homens da companhia estavam terminando a instalação dos postes novos. Eram de cimento, pesados, cinzentos, enormes.
Eu e outras crianças ficamos assistindo de longe. Cada vez que um fio era puxado, parecia um cordão ligando a terra ao céu. Os mais velhos estavam em silêncio. O pajé Suíra, de cocar baixo e passos firmes, observava atento.
Quando os técnicos desceram dos caminhões e acenaram, a rua inteira se juntou. Um homem girou uma chave, e então...
Zzzzzshhhhh — TAC!
Um som correu pelos fios como um trovão contido. Um a um, os postes se acenderam. Uma luz branca, firme, clara, como se o sol tivesse se multiplicado em cada ponto da rua.
As crianças começaram a gritar:
— Olha, olha! Parece estrela no chão!
Os adultos não disseram nada. Era como se estivessem ouvindo algo que só eles podiam entender. O silêncio dos antigos carregava respeito, temor... e encanto.
O pajé Suíra levantou o rosto para o alto e falou, com voz grave e pausada:
— HINEBAKRÓ.
— Hine o quê?, perguntei, puxando a ponta do manto do pajé.
Ele me olhou com os olhos de quem escuta o tempo.
— HINEBAKRÓ, Aruá. Quer dizer “a luz no tronco de pedra”.
— Por causa do poste de cimento?
— Sim, menino. É a luz do novo tempo. Mas lembra: não é só pedra nem só fio. É o espírito da transformação. Se não tiver memória, não é luz — é só claridade vazia.
Fiquei quieto, mas aquelas palavras entraram em mim como semente.
Naquela noite, não quis dormir cedo. Sentei no batente de casa e fiquei olhando o poste mais próximo. A lâmpada parecia olhar de volta. Ao meu lado, minha avó passou a mão na minha cabeça e disse:
— Agora temos luz, Aruá. Mas nunca esqueça de onde vem a nossa verdadeira clareza.
Desde então, nunca mais vi a noite da mesma forma. A luz chegou, sim. Mas o que nunca se apagou foi o brilho das palavras do meu povo.
E sempre que vejo um poste iluminado, me lembro:
Hinebakró — a luz no tronco de pedra —
E no coração da pedra, ainda pulsa a memória da floresta.
02. HINETOKLITÉ , A LUZ QUE FALA NO PANO
Um Conto do Baixo São Francisco
No Baixo São Francisco, onde o rio espelha o céu e as cidades crescem à beira de suas águas, há lugares de história viva.
Entre eles, Penedo e Propriá se destacavam como portais por onde as novidades do Brasil chegavam primeiro — como se o progresso descesse o rio em canoas de luz.
Defronte a Propriá, em Porto Real do Colégio, moram o povo indígena Kariri-Xocó — também conhecidos dos colegienses, como eram chamados. Sempre atentos, suas vidas se entrelaçavam com as marés de modernidade que batiam à porta.
Foi num dia de sol manso, em 1948, que Maria de Lourdes — a quem todos chamavam de Indaiá — atravessou o rio, acompanhando seu pai, Euclides.
Iam vender cerâmica no mercado de Propriá, como tantas vezes já haviam feito. Mas, naquela tarde, algo novo esperava por ela.
Havia um burburinho nas ruas: um tal de cinema.
O Cine Odeon reluzia com letreiros e uma fila de gente curiosa.
Sem saber bem do que se tratava, Indaiá entrou. Sentou-se na cadeira de madeira, com os olhos arregalados.
Quando as luzes se apagaram e a tela brilhou, ela sentiu um calafrio: imagens dançavam num grande pano, e dali saíam vozes, risos, sons...
Era como se o espírito da luz estivesse contando histórias.
Na volta à aldeia, correu a contar à mãe, Maria Pureza:
— Mamãe, vi um negócio chamado cinema! — disse, ofegante. — É como um pano onde a luz fala...
Maria Pureza sorriu e respondeu:
— Nós chamamos isso de Hinetoklité... Luz que fala no pano. Vem do nosso Kariri: hine, que é luz; toklikli, falar; cruté, pano.
Assim, a palavra correu entre os nossos.
O Hinetoklité passou a ser conhecido, encantando adultos e crianças.
Em Propriá, além do Odeon, o Cine Propriá também projetava seus feitiços luminosos.
Mais tarde, em 1959, surgiu o Cine Fernandes, pelas mãos do empresário Fernandinho.
Não demorou muito para que o Hinetoklité atravessasse o rio e chegasse também a Porto Real do Colégio.
Primeiro, na Fazenda Sementeira, do Ministério da Agricultura, onde um pequeno cinema servia aos funcionários e suas famílias.
Mas foi só nos anos de 1970 que o cinema se abriu ao povo da cidade.
O Cine Fernandes começou a trazer sessões aos finais de semana.
No salão paroquial ou no antigo prédio da Escola Frei Damião, as pessoas se reuniam, de olhos brilhantes, para ver o pano encantado.
Lembro como se fosse hoje: o primeiro filme que vi foi Paixão de Cristo.
Eu e meu irmão Antônio assistimos juntos, de mãos suadas de emoção.
A cada cena, a cada fala, o Hinetoklité nos levava para longe, para dentro das histórias.
No final dos anos 1970, lá por 1978, as sessões pararam.
O salão ficou vazio, o pano emudecido.
Mas as memórias ficaram.
E até hoje, quando a luz do projetor se acende em qualquer sala, ou mesmo quando assisto um filme em tela pequena, é como se ouvisse o sussurro de minha mãe:
"Hinetoklité... a luz que fala no pano."
E assim, de geração em geração, essa palavra segue brilhando — como as histórias que o rio leva e traz.
03. TAYU NUNÚ UANIE, DINHEIRO NA LÍNGUA INDÍGENA
Um Conto Sobre o Dinheiro
Nas margens do rio Opará, em meio às sombras das mangabeiras e ao som dos pássaros sagrados, vivia o pequeno Jurandí, um menino curioso do povo Kariri-Xocó. Desde cedo, ele se encantava pelas histórias que sua avó Mainá, a mais velha contadora da aldeia, sussurrava ao pé do fogo.
— Vó Mainá, o que é esse papel que o homem da cidade me deu quando vendi meu colar de sementes? — perguntou Jurandí, estendendo uma nota amassada.
A anciã segurou o papel com cuidado, como quem segura um animal arisco, e sorriu com os olhos sábios.
— Esse, meu neto, é o Tayu, como chamamos o dinheiro na nossa língua. É coisa de fora... não existia no tempo de nossos avôs mais antigos.
— E para que serve, vó? — quis saber Jurandí.
— Serve pra tudo, ou quase tudo... hoje, para pegar peixe com anzol de ferro, ou para comprar farinha quando a roça não deu, tem que ter Tayu.
Mainá então puxou um saco velho de pano e retirou de dentro algumas cédulas coloridas, cada uma com um bicho diferente.
— Vê, Jurandí? Essas figuras são bichos que conhecemos bem. Este aqui, por exemplo — disse ela, apontando a tartaruga — é o Sãmbá. Ele mora nas águas como nós moramos na terra. E vale dois Tayus.
O dinheiro veio para cá desde o início quando chegou os colonizadores, recebeu vários nomes ao longo dos séculos: o réis, o cruzeiro, o cruzeiro novo, o cruzado, o cruzado novo e o cruzeiro real e finalmente o real.
Jurandí ficou com os olhos brilhando.
— E esse pássaro branco, vó?
— Esse é a Yeendeçó, a garça dos pântanos, e vale cinco. A arara vermelha é Yeendéar, vale dez Tayus. O mico dourado, Dzicuá, vale vinte. A onça-pintada, que caminha em silêncio pela mata, é Homomocleclé, vale cinquenta. E o peixe do mar é o Mydzé, de cem Tayus. Por fim, o lobo-guará, que só aparece quando o mato está em silêncio, é o Bucuté, e vale duzentos.
— Então, vó, se eu tenho um Tayu Dzicuá, posso trocar por comida?
— Sim, neto, pode. Mas nunca se esqueça: o verdadeiro valor não mora no papel, mora na nossa partilha, na fartura da terra, na sabedoria que carregamos.
Jurandí sorriu, abraçando as palavras da avó. Ele agora sabia que o Tayu era mais do que papel: era também um símbolo da mudança, mas que poderia ser falado em sua própria língua, respeitando os animais e a vida que representavam.
Naquela noite, sentado ao redor do fogo com as outras crianças, Jurandí ensinou:
— Dois reais é Tayu Sãmbá, cinco é Tayu Yeendeçó, e assim vai...
As estrelas sorriram lá do alto.
E a língua Kariri ganhou mais um sopro de vida.
04. CRAMEOKLI, A CAIXA QUE FALA
Escuta aqui, parente… vou te contar uma coisa que os mais velhos sempre diziam pra gente, lá na nossa aldeia, à beira do Opará.
Diziam que, quando os Caraí — esses brancos portugueses — chegaram por aqui, trouxeram um monte de coisa diferente, coisa do mundo deles, que nós nunca tínhamos visto. E aí, pra poder falar delas, a gente foi dando nome do nosso jeito. A cruz virou crudzá; a espingarda, sadá; a enxada, tasi; escada, a gente chama de babaeché; e o espelho, aquele que devolve o olhar, é waruá.
Mas ó… muito tempo depois, quando fundaram o Posto do SPI — Serviço de Proteção aos Índios — ali mesmo, em Porto Real do Colégio, em 1944, o agente do governo chamado Cavalcante Albuquerque chegou trazendo uma coisa que ninguém nunca tinha visto: uma caixa…
Mas não era caixa qualquer, não…
Era uma caixa que falava! Isso mesmo! A gente nem acreditava… como é que de dentro de uma caixa saía voz, música, barulho?
Os anciãos olharam bem, pensaram, e pronto: deram nome pra ela — Crameokli — que quer dizer "caixa que fala".
Eita, parente… pensa só! Lá na Rua dos Índios, quando ligaram aquela caixa pela primeira vez… foi uma festa! Muita gente nem acreditava… ficou ali, em volta, ouvindo, querendo entender como é que aquelas vozes viajavam pelo ar e vinham parar justo ali, no meio da aldeia.
E aí não teve mais volta não…
O Crameokli começou a trazer música que a gente nunca tinha ouvido, programa de rádio, novela, até reza e propaganda. De repente, parecia que o mundo inteiro cabia ali dentro, naquela caixa
Nos anos de 1960, olha… nem todo mundo tinha um Crameokli, era só alguns, mas quem tinha logo aprendeu a cantar música brasileira. A turma começou a gostar de seresta, de chorinho… e olha, tinha até ídolo já: Nelson Gonçalves, Ângela Maria, Roberto Carlos…
O Crameokli não parava… contava história, fazia rir, fazia chorar, mostrava coisas que a gente nunca imaginou que existia.
Mas vou te dizer, parente: mesmo com essa novidade toda, nossa aldeia nunca esqueceu quem era, não. O Crameokli falava, falava… mas a nossa voz, essa, nunca calou.
A gente continuou firme com nosso toré, com os rituais do Ouricuri, com as rezas, com os ensinamentos antigos.
O Crameokli virou só mais uma voz… mas nunca a única.
E assim seguimos até hoje, caminhando do nosso jeito… ouvindo o que vem de fora, mas sempre lembrando e vivendo o que vem de dentro, do coração da nossa gente.
E é isso, parente… agora que te contei, você já sabe também da história do Crameokli — a caixa que fala.
05. CRAMENUNHÍ, A CAIXA QUE ESFRIA
Um Conto Sobre a Geladeira
Na beira do rio São Francisco, onde os ventos cantam histórias antigas entre os cajueiros e o murmúrio das águas embala os dias, vivia o velho Mãhu, ancião respeitado do povo Kariri-Xocó. Seu olhar guardava o tempo, e sua fala era como o som do maracá: pausada, firme e cheia de ensinamentos.
Certa tarde, sob a sombra generosa de um umbuzeiro, ele chamou os netos para perto e disse:
— Vou contar a vocês sobre o dia em que chegou à aldeia a Cramenunhí, a "Caixa Que Esfria".
Os olhos das crianças brilharam. Elas já conheciam a geladeira que ficava na cozinha da casa comunitária, mas nunca haviam parado para pensar que ela também tinha uma história.
— Era o ano de 1975 — começou Mãhu — quando o Projeto de Irrigação do Itiúba chegou por aqui. Cerca de quarenta famílias nossas foram integradas. Foi nesse tempo que muita coisa começou a mudar.
Ele olhou para o horizonte, como se visse outra época surgir entre as folhas.
— Com o trabalho nas lavouras de arroz, conseguimos melhorar o sustento. Vieram os salários, e com eles... as primeiras geladeiras. Chegavam nas caminhonetes, embrulhadas em papelão, com nomes diferentes: Consul, Brastemp. Eram altas, pesadas e brancas como a lua cheia.
As crianças riram, curiosas.
— E o que ela fazia, vô?
— Ah, ela esfriava! — respondeu sorrindo. — Guardava o peixe do rio, a carne do gado, os legumes da roça. Também guardava coisas novas que nunca tínhamos visto antes: latas com rótulos coloridos, garrafas com líquido espumante, pedaços de carne embutida que vinham de muito longe.
— Era mágica? — perguntou o pequeno Itã, arregalando os olhos.
— Para muitos, parecia que sim — disse Mãhu. — Demos a ela um nome nosso: Cramenunhí. Vem de cramenu, que é "caixa", e cunhí, que é "frio". Nunca existira algo assim na língua, mas nossa língua é viva, meu neto, e ela cresce com o que vivemos.
Mãhu fez uma pausa, e depois falou mais sério:
— Mas a chegada da Cramenunhí também trouxe mudanças. O Ruño, nosso pote de barro, começou a ficar de lado. Ele que por tanto tempo conservava a água fresca, passou a ser visto como coisa velha pelos brancos, e até por alguns dos nossos.
As crianças se calaram. Sentiram a tristeza leve que vinha com o silêncio do avô.
— Hoje — continuou ele — toda família Kariri-Xocó tem uma geladeira em casa. A Cramenunhí virou parte da nossa vida. Mas o Ruño ainda está ali. Em muitos cantos da aldeia, ao lado da geladeira, firme, de barro, cheio de histórias.
Mãhu pegou um pequeno maracá e o sacudiu suavemente.
— A tradição e a mudança não precisam brigar. Elas podem caminhar juntas, como as águas do rio e o barro das margens.
Os netos sorriram. E naquela tarde quente, o velho Mãhu sabia que uma nova história acabava de nascer.
06. CRAMEUPUDU, CAIXA DE FERRO SOPRA FOGO
Um Conto Sobre o Fogão a Gás
Naquele tempo, quando a noite descia mansa sobre a aldeia, e as estrelas se deitavam como sementes no pano escuro do céu, os mais velhos chamavam as crianças para junto do fogo. Ali, o calor dançava nas chamas e nas palavras, e as histórias caminhavam de boca em boca, feito rio que conhece seu leito.
Foi assim que ouvi, pela primeira vez, a história do Crameupudu, a misteriosa Caixa de Ferro que Sopra Fogo.
— No princípio — disse o avô Katembé, com os olhos brilhando sob a luz do braseiro — o fogo era feito com paciência. Vinha da madeira seca, do atrito, do sopro do espírito no carvão. Servia para cozinhar, assar, moquear, aquecer o corpo e a alma. O fogo era nosso parente antigo. Vivíamos com ele.
Mesmo depois que o estrangeiro pisou nossa terra e espalhou seus modos, o nosso fogo ficou. Em panela de barro ou na trempe de pedra, ele continuou fiel às mãos da gente. E assim foi por muito tempo...
Mas os ventos da cidade sopraram também sobre a Rua dos Índios — hoje conhecida como Bairro Kariri, em Porto Real do Colégio. Veio a estrada, veio o cimento, veio o barulho das máquinas. E, junto com tudo isso, chegou um novo tipo de fogo: um que não se via até que aparecesse.
— Como assim, avô? — perguntei, arregalando os olhos.
— Chegou o fogão a gás — respondeu com voz grave —. E nós o chamamos Crameupudu. Porque é uma caixa de ferro — cramenu merata — que sopra o fogo — upuh du. Quando a gente gira aquele botão, o invisível sopra, e o fogo se mostra. Como se o espírito da brasa morasse lá dentro, quieto, esperando o chamado.
O Crameupudu veio para os brancos primeiro. Depois, quando os homens da aldeia passaram a trabalhar nas construções da cidade e no projeto de irrigação do arroz em Itiúba, por volta de 1975, o dinheiro entrou e, com ele, o fogão chegou às casas dos Kariri-Xocó.
Não substituiu o velho fogo de lenha, não. Mas fez morada ao lado dele. E ali, no quintal das casas de barro batido, passaram a viver os dois fogos — o ancestral e o novo — lado a lado, como irmãos de tempos diferentes.
O Crameupudu era pesado, com corpo de ferro e alma de vento quente. Mas mesmo sendo uma invenção de fora, ganhou nome na nossa língua. Porque aquilo que é nomeado se torna parte da gente, se encaixa na memória, entra no mundo do sagrado.
Até hoje, muitos cozinham no Crameupudu. Mas ao redor do fogo tradicional, ainda se ouvem as histórias antigas. E é por isso que eu te conto esta, agora. Para que não esqueças. Para que saibas que, mesmo quando a caixa de ferro sopra o fogo invisível, o espírito do calor que une os povos ainda vive.
07. WAHINÉ, A IMAGEM NA LUZ
Um Conto Sobre o Slide
Na Rua dos Índios, quando os Kariri-Xocó ainda moravam por lá, algo diferente aconteceu num certo ano de 1974. Chegaram àquela terra quente e viva duas pessoas de longe, de um país chamado Estados Unidos. Eram o senhor Floyd e dona Hida — dois amigos sinceros do nosso povo, que logo se tornaram conhecidos e queridos na aldeia de Porto Real do Colégio, em Alagoas.
Sempre que podiam, vinham nos visitar. Andavam devagar pelas casas de barro e mato, conversavam com nossas ceramistas sábias — Indaiá, Júlia Muirá, Maria Soya, Luiza Binga e tantas outras que moldavam não só o barro, mas também a história com suas mãos.
Mas o que mais nos encantava era aquele objeto que o senhor Floyd carregava: uma caixa mágica que ele chamava de Slide. Nós, Kariri-Xocó, demos-lhe outro nome, mais bonito em nossa língua: Wahiné, “Imagem na luz”. Era feito de luz e memória, nascido do nosso idioma antigo: Waruá — imagem, e Hiné a luz.
À noite, ele ligava o Wahiné na parede branca da escola. A luz acendia, e de dentro dela surgiam imagens: nossas imagens! Crianças pescando, mulheres moldando o barro, homens no rio com as canoas, rostos sorrindo. Nunca tínhamos visto algo assim. Não era como o Warudókli, o espelho que fala — a televisão — que mostrava gente de fora. Nem como o Hinetoklité, a luz que fala no pano — o cinema — que passava histórias de outros lugares.
O Wahiné era diferente. Era nosso.
Ver-se na luz era como se a aldeia ganhasse uma alma nova. Embora as imagens não se mexessem nem falassem, ali estavam nossos passos, nossos risos, nossas vidas guardadas como lembrança de uma noite viva.
Depois, a vida mudou. Fomos para a Fazenda Modelo. O senhor Floyd e dona Hida voltaram para sua terra. Por muitos anos, não os vimos mais.
Mas a amizade não terminou. Muitos anos depois, já idosos, voltaram à aldeia. A senhora Hida reencontrou minha mãe, Indaiá, e se abraçaram com emoção. Eu, Nhenety, quis retribuir aquela amizade antiga com algo precioso: entreguei ao senhor Floyd um vocabulário das línguas Kariri Dzubukuá e Kipeá. Ele recebeu com carinho — como quem acolhe uma herança viva.
Depois disso, voltaram para os Estados Unidos. Mas o Wahiné ficou conosco, como lembrança daquele tempo mágico em que a luz trouxe nossas próprias imagens para dentro da aldeia — e nos ensinou que também podíamos existir na memória do mundo.
08. WARUDÓKLI, O ESPELHO QUE FALA;
Ó...essa história… essa eu guardo no coração…
Porque eu mesmo… eu, Nhenety Kariri-Xocó… vivi tudinho… com meus olhos… com meus pés pisando na poeira da Rua Santa Cruz…
Olha… foi assim…
Na nossa aldeia… na Rua dos Índios… ali… na beirada da cidade de Porto Real do Colégio, Alagoas… nós, os Kariri-Xocó… sempre vivemos do nosso jeito…
Tranquilo… ouvindo o rio… pescando… plantando… celebrando nossas tradições…
Só que… o mundo de fora… foi chegando…
Primeiro… vieram os navios… depois… as lanchas cortando o São Francisco…
Depois… as comidas enlatadas… as roupas diferentes… as ferramentas… o cinema… o rádio…
Cada coisa dessas… a gente olhava… se admirava… perguntava…
Mas, veja…
Nos anos de 1970… chegou… uma coisa… que ninguém… mas ninguém mesmo… podia imaginar…
A televisão!
Lembro direitinho…
Eu e meu primo… o Dzapá… saímos caminhando… lá pro centro da cidade… pela Rua Santa Cruz…
E de repente… vimos… uma aglomeração danada… na casa do seu Américo…
Um povo todo… amontoado… olhando pra dentro da casa…
Eu perguntei:
— Dzapá… o que será que tá acontecendo ali?
Ele:
— Bora ver, Nhenety!
Chegamos… e eu… curioso que só… perguntei pros brancos:
— Ei… o que é isso aí?
Eles… sorrindo… disseram:
— É a televisão! Tá passando o jogo da Copa de 70!
Eu e Dzapá… nos entreolhamos…
Tele o quê?
Quando a gente olhou… tava lá… uma caixa… com uma tela…
E de dentro… saía imagem…
Mas a imagem… parecia um espelho…
Só que… falava!
Um espelho… que falava…
Eu, besta de admiração, falei pro Dzapá:
— Primo… parece um espelho… que fala!
Ele ficou… de boca aberta… só olhando…
Não deu outra…
Corremos pra nossa aldeia…
Chegamos ofegantes… na casa do velho Iraminõ… avô do Dzapá…
Ele tava lá… sentado… fumando seu cachimbo… com aquele olhar sereno…
Eu falei:
— Seu Iraminõ… seu Iraminõ… lá na cidade… tem uma coisa nova…
Ele, calmo, perguntou:
— Que foi, menino?
Eu:
— É um espelho… mas… que fala!
Ele ficou… em silêncio… pensou… olhou pra gente… e falou… com aquela voz cheia de sabedoria:
— Warudókli…
Eu e Dzapá:
— Waru… quê?
Ele:
— Warudókli… na nossa língua… quer dizer: “O espelho que fala”…
Ô… que beleza…
Eu fiquei repetindo:
— Warudókli… Warudókli…
E assim… ficou batizado!
A televisão… virou Warudókli…
Mas não acabou aí, não…
Em 1972… o parente Tononé… comprou… a primeira televisão… da nossa aldeia…
Aí… foi festa!
Todo mundo… vinha pra casa dele…
De manhã… de tarde… de noite…
O povo se sentava… nas esteiras… nas redes… nos tamboretes…
E a gente… ali… tudo… de olhos arregalados… olhando pro Warudókli…
E o mundo… passando… diante da gente…
Filmes… novelas… notícias…
Tudo… tudo…
Mas… o mais bonito… foi que ficou… a palavra…
A nossa palavra…
Warudókli…
Até hoje… quando vejo uma televisão… lembro…
Lembro do dia… que eu, Nhenety… e meu primo Dzapá… vimos… pela primeira vez…
O espelho… que fala…
E essa história… tá aqui…
Na minha boca…
No meu peito…
Na memória… viva… do meu povo Kariri-Xocó…
E agora… na sua também…
Pra seguir…
De geração… em geração…
Assim… como tô contando… agora… pra você…
09. UANIE DAWÍ DEHÓ CANGHITÉ CARAÍ, INDÍGENA USA COISAS DE BRANCO
Um Conto de Usar Coisas dos Brancos
Era uma manhã fresca no aldeamento quando o jovem Awasúa, de olhar curioso e pés ligeiros, despertou com os primeiros cantos dos passarinhos. Os mais velhos diziam que, antes do tempo dos brancos, tudo era diferente. Mas Awasúa era Uanie — um indígena — nascido entre tempos, entre o eco dos ancestrais e os ruídos da cidade.
Awasúa andava com o Dawí dehó, ou como diziam os antigos: “com as coisas dos caraí”. Ele aprendera, com sabedoria, a usar as boas coisas Canghité dos brancos, sem esquecer o que brotava de sua terra e de seu povo.
Naquele dia, enquanto se preparava para mais uma ida à cidade vizinha, Awasúa se olhou no Warupoá, o espelho dos olhos seu óculos. Era um presente do tio Birenó, que morava longe, mas sempre trazia novidades. Ajustou os óculos sobre o rosto e sorriu:
— Agora vejo melhor o mundo dos brancos, mas também enxergo mais fundo as raízes do meu povo.
Prendeu no pulso o seu Uché Iworó, a roda do tempo "relógio". Aprendera a ler os ponteiros com a professora Dona Terezinha, uma mulher de fora que respeitava os saberes da aldeia.
Ao sair, calçou seus Sebéby, os cobertores dos pés "sapato". Já havia cortado muito chão descalço, mas a estrada de pedra quente agora pedia proteção.
Vestiu sua Crutewõá e Crutéubi — o pano das pernas e da barriga "calça e camisa". Mesmo sendo roupas do branco, ele sabia como usá-las sem esquecer o urucum no rosto, a pintura que dizia: “sou da terra, sou dos meus”. E no pescoço, levava o Bemeradzó, colar de ferro reluzente que brilhava como os colares antigos, agora feito com outro material.
No bolso, o Tokliddaysã, o falar com o mundo na mão, apitava com mensagens. Era o celular. Ele o usava para falar com parentes de outras aldeias, ouvir cantos antigos, assistir vídeos de danças sagradas.
Montado na bicicleta, sua Ibaworóbi, seguia veloz como tatu do campo. Às vezes pegava carona na Ibáranú Uitane Iworó, a moto roncadora do primo Karapotó, e quando tinha sorte, iam até de Ibápohduá, o carro do cacique Itapó.
— Você anda com as coisas dos caraí, Awasúa? — perguntavam os mais velhos com olhos desconfiados.
Ele sorria com serenidade e respondia como ouvira dos encantados:
— Sim, ando com Dawí dehó Canghité Caraí, mas minha alma dança com os pés no chão da minha terra.
E assim seguia Awasúa, o Uanie entre mundos, ponte viva entre tempos. Como o tronco de um grande jatobá: firme na raiz, mas com os galhos estendidos para o céu.
10. BEMYDJÉRETÓ — A JORNADA DO COLAR VIVO
No tempo em que a palavra era ensinada ao pé do fogo, quando as estrelas ainda eram lidas como um grande livro no céu, havia um jovem chamado Aranã, da Nação Kariri-Xocó.
Desde menino, seus olhos eram atraídos pelos colares dos guerreiros e anciãos. Não eram simples adornos, mas verdadeiros pergaminhos vivos. Um dente de onça, uma pedra azul, uma semente rara: cada elemento carregava uma história de coragem, sabedoria ou serviço à comunidade.
O mais belo desses colares pertencia a seu avô, Txopã, grande caçador e mestre da floresta. Numa noite de lua cheia, Aranã, já tomado pelo desejo de um dia portar um colar como aquele, perguntou:
— Avô, como se conquista um colar desses?
O velho sorriu e respondeu:
— Não se compra, não se pede. Cada peça só vem ao pescoço de quem a mereceu com verdade. A cada ato importante para o nosso povo e para a vida, um novo símbolo pode ser adicionado. Mas cuidado: quem coloca no colar um feito pequeno, será visto como pequeno. Nosso colar é a memória viva de quem somos.
A partir daquele dia, Aranã iniciou sua jornada de merecimento.
Partiu com os caçadores, aprendeu a seguir rastros, a ouvir o silêncio da floresta. Em uma caçada difícil, conseguiu ajudar a abater uma anta. Participou da partilha, mas sabia que ainda não era hora de um grande dente em seu colar.
Depois, foi com os pescadores. No grande rio, capturou um peixe raro e recebeu como reconhecimento um pequeno osso polido, que o pajé lhe autorizou a pendurar ao pescoço.
Nos anos que se seguiram, Aranã não buscou proezas por orgulho. Com humildade, foi aprendendo as artes da cura, da coleta e da palavra. Ao salvar uma criança doente com um remédio extraído da Árvore do Vento, o pajé lhe entregou uma semente reluzente. Com reverência, Aranã a pendurou no colar.
O tempo avançava, e o mundo ao redor da aldeia também mudava. Estradas cortavam a mata, e as vozes da cidade chegavam às aldeias em sons e imagens desconhecidas.
Aranã foi enviado à cidade para estudar e ajudar seu povo a navegar aqueles novos tempos.
Ali, entre os prédios de vidro e as ruas de ferro, estranhou os "colares" modernos. Observava homens e mulheres com crachás, chaves de moto penduradas, celulares em cordões coloridos.
Em um congresso, viu um homem com um colar diferente: pequenas peças metálicas pendiam de um cordão.
— Amigo Sebastián, que colar é aquele? — perguntou.
Sebastián sorriu:
— São pen-drives. Guardam memória de computador: documentos, imagens, músicas, histórias.
Aranã ficou em silêncio. Percebeu que, mesmo entre os homens da cidade, o impulso ancestral permanecia: pendurar ao pescoço aquilo que nos lembra quem somos, o que sabemos, o que carregamos de valor.
Antes de voltar à aldeia, Aranã comprou um pequeno pen-drive. Nele, gravou registros das histórias do seu povo, canções antigas, imagens da floresta e a voz do avô.
Ao chegar, pediu licença aos anciãos e ao pajé. Explicou que aquele objeto, embora novo, continha a memória da aldeia para tempos futuros.
Com permissão sagrada, pendurou o pen-drive em seu colar, entre o osso do peixe e a semente da Árvore do Vento.
O velho Txopã, com olhos brilhantes, disse:
— Assim é o BEMYDJÉRETÓ. Não pertence a um tempo, mas a todos os tempos. Continua vivo porque nós continuamos vivos. A verdadeira memória não é o que se carrega, mas o que se vive e se compartilha.
E naquela noite, sob as estrelas, Aranã compreendeu que a sua jornada jamais teria fim, pois o colar vivo da memória sempre se renovaria com cada novo passo da história do seu povo.
"Assim segue o BEMYDJÉRETÓ: não colar de um só tempo, mas de todos os tempos; não memória de um só homem, mas de um povo inteiro."
Autor dos Contos: Nhenety Kariri-Xocó
📘 APÊNDICES
APÊNDICE A — Sobre a Cosmovisão Kariri-Xocó
A tradição Kariri-Xocó entende o mundo como entrelaçamento de forças vivas. Objetos, animais, plantas e fenômenos naturais possuem essência, movimento e intenção. Essa visão permeia os contos deste volume, onde “luzes”, “caixas” e “troncos” deixam de ser simples dispositivos e se transformam em entidades que dialogam com o pensamento indígena.
APÊNDICE B — Tecnologia e Ancestralidade
O encontro entre tradições antigas e tecnologias modernas é interpretado pela comunidade como momento de ressignificação. A presença desses objetos — pano luminoso, caixas falantes, espelhos reveladores — é observada com curiosidade, cautela e sabedoria. Para o povo, tudo que chega possui espírito, e cabe à coletividade aprender a nomear, compreender e adaptar.
APÊNDICE C — Termos Culturais do Povo Kariri-Xocó
Ao longo dos volumes, certos termos tradicionais se repetem, carregando significados próprios e profundos. Eles são apresentados neste apêndice para orientar leitores não indígenas e manter viva a grafia tradicional da língua.
📘 GLOSSÁRIO
Cramenunhí — Objeto tecnológico que esfria, reinterpretado como entidade que retira o calor dos alimentos ou do ambiente.
Crameokli — Caixa que fala; aparelho que emite som, entendido como porta-voz de espíritos ou vozes distantes.
Crameupudu — Caixa de ferro que solta fogo; símbolo de força controlada, geralmente relacionado a máquinas quentes.
Hinetoklité — Luz que fala no pano; instrumento que projeta imagens e luzes, visto como espírito comunicador.
Hinebakró — Luz no tronco de pedra; referência a objetos firmes que emitem luminosidade constante.
Tayu Nunú Uanie — “Dinheiro na língua indígena”; termo que indica valor, troca e relações com o mundo dos brancos.
Uanie Dawí Dehó Canghité Caraí — Expressão para designar indígenas utilizando objetos do não-índio.
Wahiné — A imagem na luz; representação visual, projeção ou reflexo visto como presença espiritual.
Warudókli — Espelho; objeto que duplica, guarda ou devolve imagens, considerado sagrado em muitas tradições.
📘 DADOS BIOGRÁFICOS
Nhenety Kariri-Xocó
Escritor indígena, contador de histórias e guardião das memórias do povo Kariri-Xocó de Porto Real do Colégio (AL). Sua obra une tradição oral e linguagem contemporânea, preservando saberes ancestrais através de narrativas profundas, simbólicas e marcadas pelo espírito da terra.
Criador da série literária Woroy História, Kariri-Xocó, o autor dedica seus livros à valorização cultural, ao fortalecimento da identidade indígena e à transmissão das histórias contadas pelos antigos. Seu trabalho, já reconhecido em diversas comunidades e espaços acadêmicos, faz ponte entre passado e presente, entre espiritualidade e tecnologia, entre rio e luz.
Nhenety continua sua missão de registrar e compartilhar a sabedoria ancestral, garantindo que as palavras de seu povo atravessem gerações.
📘 ORELHA DO LIVRO
(texto que aparece na aba lateral da capa — forte, convidativo, poético e profissional)
ORELHA – LADO ESQUERDO
Woroy História, Kariri-Xocó, Luz do Novo Mundo — Volume 9 é um encontro entre tempos. Aqui, a tecnologia moderna se apresenta ao olhar indígena e se transforma em mito, espírito e símbolo. Cada conto nasce de uma interpretação ancestral sobre o que chega de fora: aparelhos brilhantes, caixas falantes, objetos de ferro, espelhos e imagens que respiram luz.
Nhenety Kariri-Xocó, guardião da palavra viva, reconstrói essas percepções com sensibilidade e força narrativa, criando um diálogo raro entre tradição e modernidade. Este livro é testemunho, memória e beleza — um convite para enxergar o mundo pelos olhos do povo.
ORELHA – LADO DIREITO
Esta obra integra a grande série Woroy História, Kariri-Xocó, dedicada à preservação da cultura, linguagem e cosmologia dos Kariri-Xocó de Alagoas. Cada volume mantém a essência do pensamento indígena, honrando as histórias dos mais velhos e traduzindo as vivências do presente.
Os contos do Volume 9 mostram que não existe choque entre mundos quando há escuta, respeito e sensibilidade. Há encontro. Há aprendizado. Há luz.
Autor: Nhenety Kariri-Xocó













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