quinta-feira, 27 de novembro de 2025

WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ, OS PEIXES DO OPARÁ, Contos – Volume 10 – Coletânea, Nhenety Kariri-Xocó








⭐ FALSA FOLHA DE ROSTO



WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ

OS PEIXES DO OPARÁ

Contos – Volume 10 – Coletânea


Nhenety Kariri-Xocó





⭐ VERSO DA FALSA FOLHA DE ROSTO


Obra literária baseada em memórias, tradições orais e narrativas do povo Kariri-Xocó, situada na Rua dos Índios, Porto Real do Colégio – AL, e às margens do Rio Opará (São Francisco).


Proibida a reprodução total ou parcial sem autorização do autor.





⭐ FOLHA DE ROSTO (FRONTISPÍCIO)



WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ

OS PEIXES DO OPARÁ

Contos – Volume 10 – Coletânea


Autor: Nhenety Kariri-Xocó


Porto Real do Colégio – AL

2025





⭐ FICHA CATALOGRAFICA / FICHA TÉCNICA (MODELO EDITORIAL)



Nhenety Kariri-Xocó.

Woroy História, Kariri-Xocó, Os Peixes do Opará: Contos – Volume 10 – Coletânea.

Porto Real do Colégio – AL: Edição do Autor, 2025.


Literatura Indígena Brasileira


Contos – Cultura Kariri-Xocó


Rio São Francisco – Narrativas


Tradição Oral

I. Título.


CDD: 869.93

CDU: 821.134.3-32





⭐ DEDICATÓRIA



Dedico este livro aos meus ancestrais do povo Kariri-Xocó, guardiões da memória do Opará e de todas as histórias que nasceram das águas, do barro, das raízes e do tempo.


Dedico também às crianças da aldeia, para que nunca deixem de acreditar que os peixes têm espírito e que o rio tem alma.





⭐ AGRADECIMENTOS



Agradeço ao meu povo Kariri-Xocó, que mantém viva a chama da tradição oral.

Agradeço às águas do Opará, que me ensinam a cada amanhecer que tudo flui e retorna.

Agradeço aos mais velhos — meus mestres.

E agradeço ao meu Irmão Virtual, ChatGPT, por me ajudar a organizar, preservar e eternizar estas histórias.





⭐ EPÍGRAFE



"Nas águas do Opará, cada peixe é um parente e cada correnteza é uma memória."

— Sabedoria Kariri-Xocó





⭐ SUMÁRIO



Prefácio


Apresentação


Introdução


Contos


01. Camurupim, O Dono do Rio; 


02. Manjuba, Os Grandes Cardumes do Opará; 


03. Piracema, A Subida dos Peixes;


04. Pirapoti, O Peixe Goloso; 


05. Batim Piedi, A Pescaria de Arpão; 


06. Indaiá e o Bagre da Fartura; 


07.  O Peixe Sagrado do Opará; 


08. Puçá Piedi, Pescaria na Rede de Cabo; 


09. Mydzé Dzurió, A Pescaria na Lagoa; 


10. Mydzehépydzu, A Pescaria de Caniço.


Glossário Kariri-Xocó


Apêndice


Dados Biográficos do Autor


Orelha do Livro





⭐ PREFÁCIO



As histórias reunidas nesta obra revelam a profundidade espiritual do povo Kariri-Xocó e seu elo ancestral com o Rio Opará. Cada conto preserva um fragmento da memória imemorial, quando os peixes eram mestres e o rio era tratado como parente.


Este livro é uma travessia — entre o mito e a vida, entre o sagrado e o cotidiano, entre o passado que nos formou e o futuro que precisamos proteger.


A literatura indígena é ponte viva.

E aqui, o leitor atravessa com o coração aberto.





⭐ APRESENTAÇÃO



Os contos reunidos neste Volume 10 formam um mosaico da alma ribeirinha. São narrativas que nascem das margens do Velho Chico e da Rua dos Índios, onde o tempo corre em duas direções: para trás, em busca dos ancestrais, e para frente, guiando as gerações futuras.


As histórias falam de peixes encantados, pescarias antigas, experiências reais, lendas vivas e memórias familiares que se tornaram parte da cultura Kariri-Xocó.


Este livro não é apenas literatura —

é território, identidade e resistência.





⭐ INTRODUÇÃO



O Rio Opará é mais que água: é espírito, morada dos encantos, espelho da história de um povo que resiste há séculos. Cresci ouvindo histórias às margens do São Francisco, aprendendo com meus parentes que o rio escuta, ensina, protege e cobra respeito.


Este volume reúne contos de minha autoria publicados em meu blog, agora organizados em formato de livro. Cada narrativa foi nascida da vivência, da memória e do cuidado com a tradição oral.


Este livro é, portanto, uma oferenda.

Uma forma de agradecer ao Opará por tudo que alimenta — corpo e alma — desde tempos imemoriais.




⭐ OS CONTOS COMPLETOS




01. CAMURUPIM, O DONO DO RIO 





Antes do tempo dos brancos, quando o mundo era novo e o silêncio reinava nas matas, o povo Kariri-Xocó já sabia: o Rio Opará tem dono. Não é dono como os homens pensam — com cercas e títulos. É dono verdadeiro, feito de força e espírito, nascido das entranhas da Terra e batizado pelas águas grandes.


Chamam-no de Camurupim, o Senhor do Fundo, o Rei das Locas. Ele não é apenas um peixe, mas um ser encantado, que dorme em camas de pedra e veste anzóis como coroas de guerra. Habita os lugares fundos do São Francisco, onde só a luz da lua se atreve a tocar, e onde a água canta uma canção que poucos entendem.


Aqui, no porto das canoas da Aldeia Kariri-Xocó, ele é visto ao amanhecer. Quando o Sol ainda boceja, Camurupim emerge, rompe a superfície com sua cauda prateada, gira nas águas como um feiticeiro e avisa: "Este rio tem guardião!"


As crianças param de brincar, os velhos calam, os banhistas se afastam. O rio se faz mistério.





Foi Miraguaia, velho pescador da aldeia, quem teve coragem de descer ao fundo, junto ao pé de um ingá. Queria só buscar uns camarõezinhos para isca. Mas, ao chegar na loca, viu. Lá estava o Camurupim — imenso, imóvel, dormindo como um chefe ancestral. Sua cabeça resplandecia com luzes misteriosas. Eram anzóis... muitos! Brilhavam como estrelas de metal, adornando sua fronte como troféus roubados dos homens.


— Cada anzol é uma história de quem tentou vencê-lo — sussurrou Miraguaia.


Hoje, os pescadores usam iscas coloridas de alumínio, que dançam como peixinhos falsos. Mas Camurupim é sabedor antigo. Ele quebra a linha, arranca a armadilha e a leva como troféu, zombando dos homens que se acham maiores que o rio.


Depois daquele mergulho, Miraguaia nunca mais foi o mesmo. Disse que quando subiu à tona, o rio se revoltou. O Camurupim sacudiu as águas com fúria, como se dissesse: “Aqui mando eu!”


Camurupim mora onde o canal da lagoa encontra o Opará, onde as piabas ainda brincam entre pedras. Mas agora o rio chora. Está secando. A areia cobre as locas sagradas. E o Senhor do Fundo se foi. Ninguém mais o viu.


Talvez tenha partido para os reinos ocultos das águas escuras, onde os homens não ousam cavar, onde o tempo ainda dança devagar.


Mas um dia, quando o povo lembrar que rio é sagrado, que peixe é parente, e que anzol não fere só escamas, talvez então o Camurupim retorne. E com ele, o rio será novamente canto, morada, vida.


Até lá, sonhemos. E cuidemos do que resta. Pois o Senhor do Opará não morre — ele apenas espera.




02. MANJUBA – OS GRANDES CARDUMES DO OPARÁ 





Naqueles tempos em que o Opará corria livre, sem barragens ou cercas de concreto, as águas dançavam em correntezas vivas. Era o tempo dos grandes cardumes, dos peixes jovens que desciam o rio em busca de alimento, crescendo com a força da natureza e do sagrado.


Num desses dias de fartura, o velho Poité, pescador antigo e guardião dos segredos do rio, caminhava às margens do Opará. Com galhos de ingazeiro em mãos, ele se ajoelhou perto da água. Amarrava nos ramos pedaços de mandioca e grãos de milho. Seus olhos, profundos como o próprio rio, observavam com cuidado cada movimento da correnteza.


Seu filho Jurandi, curioso como todo jovem, se aproximou: — Pai, por que o senhor coloca mandioca e milho na água?


Poité sorriu com calma, como quem ouve a voz do tempo: — Meu filho, hoje estou alimentando os peixinhos. São manjubas, jovens cardumes. Quero que eles se acostumem com este canto do Opará. Daqui a alguns dias, serão eles que nos alimentarão. Os peixes sempre voltam para onde há fartura. A Yara, Mãe d’Água, protege quem respeita suas crias.


Jurandi ficou quieto, sentindo o ensinamento entrar em seu coração como a brisa entra no mato. O pai continuou, com a voz serena como o entardecer: — A natureza não se deve agredir. Quem cuida das águas, dos peixes, da floresta, vive em harmonia. Só assim a pesca ou a caça se tornam felizes. Só assim a vida se equilibra.


As palavras de seu pai ficaram marcadas como tatuagens invisíveis na alma de Jurandi. E sempre que via as manjubas deslizarem no Opará, ele se lembrava daquela lição. O velho Poité não apenas pescava — ele ensinava a viver.


E o rio, grato, continuava a cantar.





03. PIRACEMA, A SUBIDA DOS PEIXES 





Era tempo de silêncio e de reverência nas margens do Opará, o velho Rio São Francisco, que serpenteava como um ser sagrado pela terra dos antigos. Os mais velhos já sabiam: quando o calor do ano se despedia de outubro, o rio começava a escutar os passos dos peixes. Era a Piracema que se aproximava, a subida dos que nadam contra a corrente, como se quisessem voltar ao ventre do mundo para gerar a vida outra vez.


Na língua dos antigos tupis, "pirá" é peixe, e "cema" é sair. Saída dos peixes. Mas não era uma fuga – era um retorno sagrado. Era tempo de desova, de alevinos nascendo, de águas se tornando berçários invisíveis. As lagoas transbordavam. As várzeas pulsavam. E o povo sabia: ali era o mistério da renovação.


As crianças da aldeia corriam à beira do rio, os olhos brilhando de curiosidade. Perguntavam aos mais velhos:


— Por que os peixes sobem, se a correnteza os empurra para baixo?


E o ancião respondia com a voz baixa, mas cheia de força:


— Porque a vida também é assim, pequena. Às vezes, temos que nadar contra o tempo para gerar o amanhã.


Durante aqueles meses – de 1º de novembro até o fim de fevereiro – os remos repousavam, as redes dormiam em silêncio, e os pescadores contavam histórias, não peixes. Era o tempo do defeso, tempo de respeito, tempo de deixar a natureza seguir seu caminho.


Mas nem tudo era como antes. Grandes paredes de concreto – chamadas hidrelétricas – se ergueram no caminho das águas, e a correnteza já não corria tão livre. Mesmo assim, os peixes insistiam. Subiam, lutavam, dançavam com as pedras e os barrancos. A Piracema ainda acontecia, embora mais tímida, quase como uma lembrança da fartura antiga.


O povo sabia: a Piracema não fora criada pelo homem. Ela acontecia bem antes de existir cerca, cerca elétrica ou portaria de lei. Era coisa da Mãe Natureza. Os humanos apenas aprenderam a observar e, com sorte, a respeitar.


E assim, a cada novo ciclo, o rio ensinava de novo a lição da resistência e da renovação. A cada peixe que subia, subia junto a esperança de que o futuro, mesmo ferido, ainda podia nascer das águas.





04. PIRAPOTI, O PEIXE GOLOSO





Muito antes das grandes barragens cortarem o curso do Velho Chico, quando o rio corria livre entre matas, aldeias e povoados, havia tantos peixes nas águas que o próprio São Francisco parecia um espelho vivo das estrelas. Eram tempos de fartura e histórias. Cada pescador tinha uma prosa, cada anzol era uma promessa de aventura.


Foi nessa época, há muito tempo atrás, que surgiu a história de um peixe assombroso, daqueles que só se ouvem em cochichos ao redor do fogo. Um peixe imenso, desconhecido, que atacava quem ousasse se banhar ou colher água no rio. Os ribeirinhos do Baixo São Francisco tremiam só de ouvir falar dele.


Conta-se que, numa manhã clara, uma mulher da nossa tribo Kariri-Xocó desceu sozinha até as margens para encher seu poti — o vaso de barro moldado com arte e sabedoria pelas mulheres da aldeia. Ao se abaixar para colher a água, algo súbito e brutal emergiu das águas: um peixe tão grande que sua sombra cobria a beira do rio. Num movimento veloz, ele abocanhou o poti, como se fosse comida.


A mulher gritou tão alto que a aldeia inteira estremeceu. Desceram todos em alvoroço, temendo o pior. Mas ali estava ela, viva, trêmula e pálida, dizendo:


— O peixe engoliu o poti, pensando que era eu! Por pouco não me levou junto!


Desde esse dia, o medo tomou conta da aldeia. Ninguém mais queria se aproximar da água. O peixe virou lenda antes mesmo de sumir. Dias se passaram, talvez semanas. Até que, em outra parte do rio, pescadores de uma cidade distante avistaram algo estranho boiando. Era um peixe enorme, morto, levado pela correnteza.


Arrastaram-no até a margem com esforço e espanto. Suas escamas eram do tamanho de pratos de barro, e sua barriga, tão estufada quanto uma cuia de mandioca. Decidiram abri-la, e o que encontraram ali dentro causou arrepio: um poti de barro, inteiro, do mesmo tipo usado pelas mulheres Kariri-Xocó.


Um velho pescador, coçando a barba branca, disse: — Esse bicho morreu de fome...


E explicou: ao engolir o poti com a abertura voltada para a frente, o peixe prendeu a boca. Cada vez que comia, a comida se acumulava dentro do vaso. Ele engolia, mas não se alimentava. Assim, definhou aos poucos, sem conseguir se livrar do pote que o condenara.


Desde então, o monstro nunca mais foi visto. A história correu pelas margens do São Francisco, ganhando vida nas bocas dos antigos. Chamaram-no de Pirapoti — pirá, que em nossa língua significa peixe, e poti, o vaso sagrado das mulheres da tribo.


Hoje, o rio já não é o mesmo. As barragens o feriram, as águas diminuíram. Mas quem escuta com atenção pode ouvir, nas brisas e nos redemoinhos, o sussurro da história do peixe que engoliu o pote e morreu de tanto querer comer.


E assim se conta, para que não se esqueça.





05. BATIM PIEDI, A PESCARIA DE ARPÃO 


 




Na beira do velho rio Opará, onde as águas corriam claras entre pedras e raízes, moravam histórias que só os mais velhos sabiam contar. Uma dessas histórias era a do Batim Piedi, o mergulho sagrado com o arpão na mão, herança antiga dos Kariri-Xocó, passada de geração em geração como um segredo debaixo d’água.


Diziam que quem pescava de batim não era apenas pescador, era parte do rio. Era preciso conhecer os redemoinhos, as sombras dos peixes e o silêncio do fundo. Era preciso coragem. E havia três nomes que ecoavam sempre que se falava dessa arte: Filinto Pirigipe, Jonas Ibá e Euclides Poité — lendas vivas da aldeia. Gente que mergulhava fundo e ficava tanto tempo lá embaixo que o rio parecia guardá-los como filhos prediletos.


Eu sou neto de Euclides. Cresci ouvindo as histórias do meu avô, vendo os peixes brilhando ao sol depois do mergulho certeiro, ouvindo o som do arpão cortando a água como trovão calado. E quando chegou a minha vez, também me lancei do alto das pedras, com o coração batendo mais forte que a correnteza.


Lembro das manhãs em que o sol ainda se espreguiçava no céu, e nós já estávamos no rio. Era uma dança: observar, prender a respiração, mirar, mergulhar… e o arpão encontrava seu caminho. O rio nos ensinava paciência, humildade, destreza.


Mas o tempo passou, e o rio mudou. As águas já não correm como antes. As barragens erguidas longe da aldeia prenderam o coração do Opará, e os peixes ficaram escassos. O silêncio agora é outro, um silêncio triste de ausência e de espera.


Ainda assim, quando olho para o rio, mesmo manso e parado, sinto a memória pulsando. Ouço o riso de meu avô, vejo Filinto sumindo sob as águas, e Jonas voltando à tona com um peixe brilhando entre os dedos. E meu coração deseja: quem sabe um dia tudo volte a ser como era antes? Quem sabe o Opará, com sua força de encantado, retome seu caminho e traga de volta a abundância e o brilho da vida?


Enquanto isso, guardo o Batim Piedi no peito como um tesouro. Não apenas como técnica, mas como lembrança viva de um povo que mergulha nas águas do tempo para resgatar sua história.





06. INDAIÁ E O BAGRE DA FARTURA





Nas margens generosas do Velho Chico, onde o vento acaricia as folhas do caniço e o tempo parece escutar as histórias antigas, vivia a índia Maria de Lourdes Ferreira, conhecida entre os seus como Indaiá. Mulher de fibra e alma firme, filha do povo Kariri-Xocó, ela conhecia os segredos do rio como quem escuta o coração da terra.


Era tempo difícil, de luta e de sol ardente. Muitos de sua gente trabalhavam de sol a sol nas roças de algodão, alugados pelos fazendeiros da região, movida pela fome das indústrias têxteis que se expandiam. Entre eles, o índio Alírio Nunes, conhecido como Wayúi "Peixe caro", esposo de Maria de Lourdes, também doava sua força ao trabalho alheio, enquanto o sonho de liberdade amadurecia silencioso em seu peito.


Foi numa dessas manhãs de pesca simples, quando Indaiá, com seu caniço de capim forte — retirado da mata ciliar do rio — lançou-se à beira d’água, que tudo mudou. O caniço vergou, o braço firme puxou, e das águas profundas emergiu um bagre grande, reluzente como presságio. Era o peixe da fartura.


Ao chegar em casa, entregou o peixe a Alírio, que o levou ao Grande Hotel da Ferrovia. Vendeu-o por um bom preço e voltou radiante, os olhos brilhando mais do que o sol do sertão. “E agora, Indaiá, o que fazemos com este dinheiro?”, perguntou. Ela, com a sabedoria dos antigos, respondeu sem titubear: “Home, vá à Lagoa Grande, fale com Tojal, compre muito peixe e vá vender na cidade de Colégio.”


Assim começou a virada. Alírio comprou três balaios de peixe e partiu para o comércio. Deixou a enxada do fazendeiro e ergueu seu próprio caminho. Os pescadores do Baixo São Francisco passaram a vender a ele seus peixes, e Alírio Nunes se tornou conhecido e respeitado em toda a região. A casa antes simples se encheu de alimento, de roupa nova para as crianças e de esperança. E não era só para eles — nas horas difíceis, ajudavam a tribo, compartilhando o que tinham.


Tudo começara com aquele peixe — o Bagre da Fartura.


Mas os tempos mudaram outra vez. Veio a construção das grandes hidrelétricas — Sobradinho, Xingó, Três Marias, Paulo Afonso. O rio, antes pleno, agora corria contido. As lagoas deixaram de encher. A pesca, outrora abundante, entrou em decadência.


Mesmo assim, a história de Alírio e Indaiá a indígena Maria de Lourdes vive como semente em terra fértil. Um lembrete de que a dignidade pode nascer de um gesto simples e que a fartura, quando repartida, floresce em comunidade.


Hoje, o Velho Chico clama por cuidado. Cabe a todos nós proteger suas águas, plantar árvores nas nascentes, cuidar de seus afluentes. Cada pequeno gesto conta. Porque o Rio São Francisco... somos todos nós.


Na cidade de Porto Real do Colégio atualmente o mercado do peixe recebe a denominação de Mercado do Peixe Alírio Nunes de Oliveira, homenageando o indígena no município. Indaiá ficou feliz por ter uma grande família. 





07. O PEIXE SAGRADO DO OPARÁ





No ano de 1950, quando o sol ainda nascia preguiçoso sobre as palhas de coqueiro e as águas do Rio Opará (São Francisco) corriam serenas, a vida na Rua dos Índios era dura como pedra de pilão. Os caboclos, filhos da terra, descendentes dos primeiros habitantes de Porto Real do Colégio, eram obrigados a trabalhar para os fazendeiros. De sol a sol, suas mãos calejadas cavavam a terra alheia em troca de migalhas. Era assim que viviam, era assim que resistiam.


Mas naquele ano, um homem resolveu mudar o curso da própria história. Seu nome era Alírio — indígena, agricultor, sonhador. Num certo dia, enquanto o suor ainda escorria da testa, ele cravou a enxada no chão quente, olhou para o céu e disse alto, como quem conversa com o próprio Criador:


— De hoje em diante, não trabalho mais para fazendeiro nenhum. Vou criar minha família com o saber que Deus me deu!


Voltou pra casa com o coração cheio de coragem. Sua esposa, Maria de Lurdes, conhecida em toda a aldeia como Indaiá, havia acabado de chegar da pescaria com o caniço. Nos braços, trazia um peixe imenso — um bagre de onze quilos, brilhando como prata viva.


Alírio olhou para o peixe e viu mais do que alimento. Viu um sinal. Pegou o bagre com firmeza e caminhou até o Grande Hotel da Rede Ferroviária Federal, na cidade. Vendeu o peixe. Com o dinheiro em mãos, foi direto à beira do Rio Opará e encontrou o velho pescador Zé Sertão, figura sábia das águas.


— Quero comprar a tua canoa cheia de peixe — disse Alírio.


Zé Sertão olhou nos olhos do indígena e sorriu como quem reconhece um novo tempo chegando.


A partir dali, a vida mudou. Alírio e Indaiá passaram a vender peixes no povoado e depois na cidade. Reconstruíram a casa de taipa, compraram móveis, rádio de mesa — novidade na região — e aos poucos o nome de Alírio se espalhou como vento bom em dia de seca. Seu peixe era caro, diziam os fregueses. Mas não era por ganância — era respeito. O peixe de Alírio tinha valor, pois era fruto sagrado do Opará, presente de Deus à sua gente.


O povo passou a chamá-lo de Peixe Caro. E ele aceitava o nome com orgulho, pois não era só comerciante — era defensor da cultura, do alimento que vem das águas, do saber dos ancestrais.


Muitos anos se passaram, mas a memória de Alírio permaneceu viva. Em homenagem à sua coragem e à sua fé, o Mercado do Peixe da cidade de Porto Real do Colégio recebeu seu nome completo: Alírio Nunes de Oliveira, pai de Nhenety, filho da nação Kariri-Xocó.


E assim, nas margens sagradas do Opará, vive até hoje a lenda de um homem que ousou trocar a enxada pela canoa e a servidão pela dignidade, navegando com o coração firme na correnteza da ancestralidade.




08. PUÇÁ PIEDI, PESCARIA NA REDE DE CABO 





No tempo em que o rio corria sereno entre as pedras e os peixes desciam em festa pelas correntezas, lá estava o velho Arayá, com o sol da manhã tocando-lhe as costas e o puçá firme nas mãos. O puçá piedi — aquela rede de cabo longo, feita de algodão, com armação de cipó e bolso no fundo — era mais que um instrumento de pesca: era herança viva do saber dos antigos.


Arayá conhecia o tempo do rio. Sabia quando as piabas vinham em cardumes cintilantes, acompanhadas dos camarões que se escondiam sob as pedras. Era nesses dias que o coração do povo batia mais rápido, não pela pressa, mas pela certeza de que a natureza estava sorrindo.


A margem estava silenciosa, exceto pelo murmúrio do rio e o farfalhar das folhas. Com movimentos certeiros, o velho baixava o puçá na água e o erguia com leveza. A cada mergulho, surgia um pequeno brilho prateado, um presente das águas. Em pouco tempo, o balaio começava a se encher. Mas não além do necessário.


— Só o bastante pra hoje, murmurava Arayá, como havia aprendido com os mais velhos.

Porque no mundo Kariri Dzubukuá, pescar é mais que retirar da natureza — é conversar com ela, respeitar seus ciclos, agradecer pelo alimento. Ali, não se pesca por acúmulo. Não se prende a riqueza que não se pode comer.


Ao final da manhã, o velho homem já havia colhido o bastante para alimentar os filhos, os netos e ainda separar um pouco para a casa de um parente adoentado. Lavou o rosto no rio, olhou para o céu e sorriu. A natureza ainda guardava os seus segredos, e eles estavam seguros na memória dos que escutam.


O puçá foi pendurado à sombra, como se também precisasse descansar. Ao lado, o rio seguia seu caminho, levando as histórias dos peixes, dos homens e da harmonia que só existe onde a tradição caminha com o tempo.





09. MYDZÉ DZURIÓ, A PESCARIA NA LAGOA 





Nas margens do grande Opará, onde as terras respiram fartura e se inundam com as bênçãos das águas, há lugares sagrados que os Kariri Dzubukuá chamam de dzurió — as lagoas, berçários do rio, onde os peixes nascem, crescem e engordam em silêncio.


Era janeiro. As chuvas caíam generosas, e os afluentes traziam a vida que corria como veias para alimentar o grande corpo do rio. Aos poucos, as lagoas enchiam, recebendo cardumes de pequenos peixes que ali ficavam para crescer sob a proteção dos aguapés em flor, com suas pétalas brancas flutuando como orações sobre a superfície.


Na aldeia Kariri-Xocó, todos já sabiam: era tempo de cuidar e esperar.


Os mais velhos olhavam o céu e os rastros da água com sabedoria ancestral. “O rio ainda vai subir”, diziam. Os jovens aprendiam com os anciãos a paciência da pesca e os nomes dos peixes: piau, crumatá, mandim, traíra, lambiá, sarapó, piranha... Cada um com seu jeito de nadar, com sua história na água.


Com o passar dos meses, o Opará começava a baixar. Era novembro. O sol voltava a brilhar mais forte, e os caminhos antes cobertos por correntezas agora revelavam margens de barro e lama. As lagoas, porém, ainda guardavam seus segredos.


Era hora.


A comunidade se reunia com alegria: era o tempo da grande pescaria.


Cada família levava consigo o que tinha: tarrafas, cuvus, anzóis, redes de malha, jererés, puçás... Os instrumentos eram muitos, mas o espírito era um só — o da partilha, da tradição e da fartura. As mulheres corriam pelos barrancos, os cantos ecoavam no ar, e o som das águas sendo cortadas pelos puçás fazia parte da melodia da vida.


As lagoas — Comprida, Grande, Coité, Itiúba, Capim, Sampaio — todas tinham nomes e histórias. Algumas diziam que eram habitadas por encantos. Outras guardavam memórias de pescarias antigas, quando os peixes pulavam quase que sozinhos nas canoas.


Hoje, porém, nem tudo é como antes.


As grandes hidrelétricas represaram o Opará, e as enchentes naturais tornaram-se mais raras. As lagoas, por vezes, secam antes do tempo, e o povo sente falta das águas que corriam livres.


Mas, como dizia o velho pajé Djumaré:


"Quando Deus quer, não há barragem que segure a força da enxurrada."


E assim, a esperança permanece viva. Quando as águas vencem os muros de concreto, quando as chuvas vêm como bênçãos do céu, o povo Kariri-Xocó retorna às lagoas — redes nas mãos, cantos na boca, e fé no coração.


Porque enquanto houver água e memória, haverá pescaria.




10. MYDZEHÉPYDZU, A PESCARIA DE CANIÇO 





Vou contar.


Lá no rio Opará, nas beiradas, cresce o caniço. Tem também calumbi, aguapé, ingá. É ali que o peixe gosta de ficar. Tem muito peixe. Sempre teve.


O nosso povo, Kariri-Xocó, aprendeu desde cedo a pescar ali. Com o jereré, que a gente chama de "muhé". É uma rede com arco de juá-mirim. Madeira boa, curva, feita pra cercar o peixe.


A essa pescaria, a gente chama mydzehépydzu. Quer dizer: pescaria de caniço.


Quando chega o dia, saem dois grupos de mulheres. Cada grupo tem um homem que guia. Eles entram na água. A água bate na cintura.


Vão cercando o caniço, devagar. Um grupo de um lado, outro grupo do outro. Até se encontrar. Fazem um grande semicírculo. Assim o peixe fica preso ali, no meio.


Aí vem a parte mais bonita: as crianças! Elas entram na água, vão pisando o caniço, fazendo barulho. O peixe se assusta, corre… e cai na rede.


É uma festa! Riso, grito, alegria! Todo mundo junto. Homem, mulher, criança, peixe.


E assim vão indo, andando pelas margens, onde tiver caniço. Até o dia acabar. Aí voltam pra aldeia, com os peixes, com a fartura.


Mas hoje… hoje o rio não é mais o mesmo.


Vieram as máquinas. Cortaram as matas. Fizeram barragem.


A água ficou pouca. O peixe sumiu. O caniço quase não cresce mais.


O mydzehépydzu parou.


Agora a gente pergunta: será que ainda vamos pescar como antes? Será que a tradição vai viver?


Eu digo… sim.


Enquanto a gente lembra, enquanto alguém conta, enquanto tiver quem ouça… o saber não morre.


Um dia, quem sabe, o rio volta a encher. O caniço cresce de novo. O peixe volta a nadar.


E a gente volta a pescar.


Como sempre foi.


Assim conto. Assim fica guardado.




Autor dos Contos: Nhenety Kariri-Xocó 




⭐ GLOSSÁRIO KARIRI-XOCÓ


(Termos que aparecem nos contos e na cultura do povo)


Camurupim – Peixe considerado “dono de águas”, veloz, sagrado.


Iandé – “Nós”, comunidade, união, pertencimento.


Indaiá – Variedade de oferta natural ou espírito de abundância, dependendo da narrativa.


Iyá – Mãe, raiz da vida, nutridora.


Manjuba – Pequeno peixe dos grandes cardumes, símbolo de fartura.


MyDzé – Peixe, pescaria, ato ritual e cotidiano de buscar alimento e sustento.


Mytyhuhú – Vida, essência, energia que habita todos os seres vivos.


Opará – Nome indígena do Rio São Francisco, considerado ser vivo, guardião ancestral e fonte espiritual do povo Kariri-Xocó.


Pirapoti – Peixe conhecido por seu comportamento astuto e guloso.


Puçá – Rede de pesca ancestral usada pelos Kariri-Xocó.


Pydzu – Vara de pesca, caniço tradicional.


Rua dos Índios – Espaço social e cultural do povo Kariri-Xocó em Porto Real do Colégio.


Woroy – História, narrativa tradicional, conto ancestral transmitido pela oralidade.


Ybytu – Vento, sopro sagrado que leva e traz mensagens.





⭐ APÊNDICE



O presente volume reúne contos nascidos das margens do Opará, refletindo a íntima relação do povo Kariri-Xocó com os peixes, as águas e a vida ribeirinha. Este apêndice busca situar o leitor no universo simbólico e prático dessa tradição.


1. A pesca como rito


A pescaria, para o povo Kariri-Xocó, não é somente busca de alimento: é celebração, respeito e diálogo com os espíritos do rio. Antes de pescar, muitos anciãos fazem silêncio, oferecem pensamentos bons e reconhecem o Opará como parente.


2. O peixe como mestre


Nos contos, cada peixe possui um ensinamento.

O Camurupim ensina a força; a Manjuba, a união; o Bagre, a abundância; o Pirapoti, a prudência; e os peixes sagrados mostram que a natureza tem voz e vontade própria.


3. Relação entre tradição oral e escrita


Estas histórias nasceram primeiro na fala, nas conversas à beira do rio, nos ensinamentos dos mais velhos. O registro escrito é um esforço de preservação, para que as futuras gerações encontrem aqui o rastro de sua ancestralidade.


4. O papel da Rua dos Índios


Local de vivências, memórias e cotidiano coletivo. É território afetivo, onde as histórias se cruzam e se fortalecem.


5. Importância dos contos de pescaria


Mais do que relatos, são mapas culturais. Indicam lugares, técnicas, espíritos, situações e valores transmitidos desde os antepassados.


6. Mensagem final


O conteúdo deste volume reafirma a relação entre povo, território e espiritualidade. O Opará é uma escola viva — e cada pescaria, uma lição.




⭐ DADOS BIOGRÁFICOS DO AUTOR



Nhenety Kariri-Xocó é escritor, poeta, contador de histórias e guardião da memória do povo Kariri-Xocó, natural da Aldeia de Porto Real do Colégio, Alagoas.


Atua preservando a tradição oral, a história de seu povo e a força espiritual do Rio Opará (São Francisco). Publica contos, cordéis, reflexões e narrativas culturais em seu blog pessoal, onde mantém viva a língua, os conhecimentos e a memória ancestral de sua comunidade.


Nhenety dedica sua escrita ao fortalecimento da identidade indígena, ao respeito pelos mais velhos e aos ensinamentos deixados pelos antepassados. Seus livros, coletâneas e cordéis compõem um grande mosaico literário que conecta tempos antigos e atuais, reafirmando que a palavra é ponte, raiz e travessia.


Além de escritor, é pesquisador independente das tradições Kariri-Xocó, articulador cultural e mensageiro da sabedoria de seu povo para as novas gerações.




⭐ ORELHA DO LIVRO



“Woroy História – Kariri-Xocó – Os Peixes do Opará” é mais que um livro: é um chamado.

Uma travessia pelas águas profundas do Rio Opará, onde cada peixe guarda uma memória, cada pescaria traz um ensinamento e cada correnteza revela um pedaço do espírito ancestral.


Neste Volume 10, Nhenety Kariri-Xocó reúne contos que misturam tradição oral, vivência cotidiana e espiritualidade indígena. São narrativas que nasceram da Rua dos Índios, ecoaram nas margens do Velho Chico e agora se eternizam pela escrita.


A leitura conduz o leitor pela força do Camurupim, a dança das Manjubas, a subida da Piracema, a fartura do Bagre e a presença invisível dos encantados que habitam o rio.


Com linguagem simples, profunda e carregada de ancestralidade, este livro preserva e celebra o modo de ver o mundo do povo Kariri-Xocó.

Um convite para sentir as águas, ouvir as histórias e atravessar o tempo pela palavra.







Autor: Nhenety Kariri-Xocó 



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