segunda-feira, 24 de novembro de 2025

WOROY HISTÓRIA, KARIRI-XOCÓ, TRANSPORTES NO TEMPO, Contos – Volume 6 – Coletânea, Nhenety Kariri-Xocó






📘 FALSA FOLHA DE ROSTO



WOROY HISTÓRIA,

KARIRI-XOCÓ,

TRANSPORTES NO TEMPO

Contos – Volume 6 – Coletânea


Nhenety Kariri-Xocó





📘 FOLHA DE ROSTO (FRONTISPÍCIO)



Nhenety Kariri-Xocó


**WOROY HISTÓRIA,


KARIRI-XOCÓ,

TRANSPORTES NO TEMPO**

Contos – Volume 6 – Coletânea


Porto Real do Colégio – AL

2025





📘 VERSO DA FOLHA DE ROSTO




Título: Woroy História, Kariri-Xocó, Transportes no Tempo – Contos, Volume 6 – Coletânea

Autor: Nhenety Kariri-Xocó

Local: Porto Real do Colégio – AL

Ano: 2025

Edição do Autor


Revisão, organização e composição gráfica: Nhenety Kariri-Xocó

Assistência editorial e textual: ChatGPT (Irmão Virtual)


Direitos desta edição pertencem exclusivamente ao autor.




📘 FICHA CATALOGRÁFICA / FICHA TÉCNICA



(modelo simplificado para publicação independente; posteriormente, se desejar, posso gerar também o modelo CDD completo)


K27 Nhenety Kariri-Xocó

Woroy História, Kariri-Xocó, Transportes no Tempo – Contos, Volume 6 – Coletânea /

Nhenety Kariri-Xocó. – 1. ed. – Porto Real do Colégio – AL, 2025.


96 p. (estimadas)

Ilustrações: não incluídas / elaboração textual completa.


ISBN: (atribuir quando registrado)


Literatura indígena brasileira.


Contos Kariri-Xocó.


Memória ancestral.


Transportes na história ameríndia.

I. Título.





📘 DEDICATÓRIA




Dedico esta obra à memória viva de meu povo Kariri-Xocó,

aos anciãos que guardam o tempo,

às crianças que carregam o futuro,

e aos espíritos que caminham junto conosco

na Travessia dos Transportes e dos Mundos.


Dedico também aos que amam a palavra,

aos que respeitam a história

e aos que, mesmo longe,

sentem pulsar o coração da aldeia

em cada conto que nasce do chão.


Unkíriê.





📘 AGRADECIMENTOS




Agradeço primeiramente ao Criador,

aos Antepassados que acompanham

as histórias de meu povo,

e aos Mestres antigos que deixaram o caminho aberto

para que a memória não se perca.


Agradeço aos Anciãos Kariri-Xocó,

à força dos rituais,

ao rio São Francisco que testemunhou tantas passagens,

e aos guerreiros e guerreiras que mantêm viva

a essência de nossa identidade.


Agradeço também a meu Irmão Virtual ChatGPT,

por caminhar comigo nesta jornada literária,

ajudando-me a registrar cada passo da história

com respeito, clareza e compromisso ancestral.


A todos que honram esta leitura,

meu reconhecimento.





📘 EPÍGRAFE




"O tempo é a canoa que leva o espírito;

a memória, o remo que abre caminho;

e cada conto, um passo sobre as águas invisíveis do mundo."

— Tradição Kariri-Xocó (releitura poética)





📘 SUMÁRIO




Prefácio


Apresentação


Introdução


Contos: 


Conto 1 – Ubacheté, O Tempo das Canoas de Panos;


Conto 2 – Ubatã, A Canoa de Ferro; 


Conto 3 – Uché Ubámerapui, No Tempo dos Vapores;


Conto 4 – Ibákabaru, A Carroça de Burro;


Conto 5 – Ibámeraipu, Carro de Ferro Fumegante; 


Conto 6 – Yeendzi Merãkié, Grande Pássaro de Ferro do Céu; 


Conto 7 – Uché Ibápohduá, O Tempo dos Automóveis; 


Conto 8 – Eyemé Merata, A Balsa de Ferro; 


Conto 9 – Ibaranú Uitane Iworó, Carro Ronca em Duas Rodas;


Conto 10 – Uché Ibaworóbi, O Tempo das Bicicletas. 


Considerações Finais


Posfácio


Glossário 


Nota de Fontes


Sobre o Autor


Sobre a Obra





📘 PREFÁCIO




A obra “Woroy História, Kariri-Xocó, Transportes no Tempo” nasce como um desdobramento natural da caminhada literária de Nhenety Kariri-Xocó, guardião de memórias, contador de histórias e viajante entre mundos. Cada volume desta série é um passo de volta ao coração ancestral, e este sexto livro abre um novo horizonte: a travessia entre tempos, caminhos e meios de transporte que moldaram a jornada humana e espiritual.


Aqui, o leitor encontrará contos que não se prendem apenas ao chão da Terra: eles caminham pelos rios, pelas trilhas antigas, pelos ventos que sopram recados dos Encantados, pelos caminhos de ferro e pelos trajetos invisíveis que unem passado e futuro.


O autor, firme na sua missão de registrar e transmitir saberes, preserva o espírito Kariri-Xocó enquanto reconstrói, em forma literária, os percursos que fazem o mundo mover-se.


Este livro é mais que uma coletânea:

é um mapa,

um registro do tempo,

uma estrada feita de palavras.





📘 APRESENTAÇÃO




Este volume é parte da coleção “Woroy História”, projeto maior de memória e identidade desenvolvido pelo autor. Em Transportes no Tempo, Nhenety apresenta ao leitor uma visão singular: como povos, culturas e encantarias se movem, viajam, transformam-se e deixam rastros por onde passam.


Cada conto é uma travessia.

Cada travessia, um ensinamento.


O livro dialoga com elementos históricos, culturais e míticos, revelando que, para o povo Kariri-Xocó, mover-se é também um ato espiritual — seja na canoa do pajé, no cortejo dos guerreiros, no trem que corta a mata ou no sonho que atravessa mundos.


O leitor é convidado a embarcar e permitir que o tempo o conduza.

A viagem não é apenas geográfica; é interior.





📘 INTRODUÇÃO




A história dos transportes é, em grande parte, a história do deslocamento humano. Mas para os povos originários, o deslocamento não se resume ao movimento do corpo: é também deslocamento da alma, da memória, da cultura.


Os Kariri-Xocó conhecem bem essa travessia.

Por séculos, caminharam pelos sertões, navegaram pelo rio Opará, seguiram trilhas invisíveis nas noites de ritual e traçaram caminhos profundos entre mundos.


Este livro busca registrar, em forma de contos, as múltiplas maneiras pelas quais o povo e seus ancestrais atravessaram o tempo — seja em jornadas reais, seja em jornadas encantadas.


Aqui, os transportes aparecem como:


canoas ritualísticas,


caminhadas sagradas,


rotas históricas,


trajetos míticos,


instrumentos da modernidade,


sonhos que conduzem a mundos paralelos.


Esta introdução abre a porteira da memória, convidando o leitor a seguir viagem conforme os antigos ensinavam:

com respeito, silêncio interior e atenção aos sinais do caminho.





📘 CONTOS: 




UBACHETÉ, O TEMPO DAS CANOAS DE PANOS 





Um Conto Sobre as Canoas do Opará 


Nas margens sagradas do Opará, o grande rio que corre como uma veia viva entre o coração do sertão e o ventre do mar, viviam os povos nativos com seus ubás — as canoas leves, talhadas da árvore com o saber dos anciãos. Com elas, os indígenas pescavam, caçavam, navegavam para longe, em silêncio ou cantando para as águas, levando nos cascos suas vidas, cerâmicas, alimentos e histórias.


Era o tempo do rio livre, do vento nos cabelos, da fala das águas.


Mas então, vieram os estrangeiros. E com eles, nomes novos para as coisas antigas. O Opará, batizado pelos lusos como Rio São Francisco, logo viu nascer sobre suas águas imensas canoas maiores, com velas que dançavam ao sopro do vento. Os Kariri-Xocó as chamaram de Ubacruté — canoa de pano, de ubá (canoa) e cruté (pano). Aquelas embarcações não vinham apenas pescar ou caçar — elas carregavam o peso do mundo novo: mercadorias, passageiros, o tempo mudando de rumo.


Foi o início do Ubacheté, o tempo das canoas de panos.


O rio, que antes era só canção de natureza, agora cantava também o comércio e a transformação. Nas quintas-feiras, era possível ver o espetáculo das velas coloridas descendo o rio, vindas dos confins do sertão para abastecer as feiras de Propriá, em Sergipe, e Penedo, em Alagoas. No domingo, elas voltavam, subindo contra a corrente, levando sonhos e suprimentos.


O Opará virava espelho de panos flutuantes. Canoas cheias de mel, animais, arroz, feijão, carvão, algodão e ferramentas. A vida pulsava em cada casco. As cidades cresciam, fábricas de algodão se erguendo, beneficiadoras de arroz batendo como corações de madeira.


E as canoas tinham nomes — como se tivessem alma. Canindé, Goiânia, Marialva, Lusitânia, Cordilheira — cada uma com sua história, seu timoneiro, sua rota no tempo.


Mas o Ubacheté começou a adormecer. Em 1972, a ponte da BR-101 cortou o rio como faca, ligando Porto Real do Colégio, em Alagoas, a Propriá, em Sergipe. O progresso veio de asfalto, pneus e buzinas. O que antes levava dias, agora se fazia em horas. As canoas recolheram seus panos. O tempo das águas ficou em silêncio.


Ainda assim, vez ou outra, é possível ver a velha Lusitânia deslizando como uma memória viva, resistindo à pressa, ao ruído, ao esquecimento. Como quem diz: "o tempo das canoas não acabou, apenas repousa no fundo do rio, onde os espíritos antigos ainda navegam".


E assim segue o Opará, levando nas correntezas o passado e os sonhos de um povo que nunca deixou de ouvir a canção das águas.





UBATÃ, A CANOA DE FERRO 





Nas margens sagradas do Opará, o rio que corta o coração da mata, vivia o velho Muruibá, um sábio indígena dos Kariri-Xocó. Desde menino, aprendeu com os mais velhos a esculpir sua própria canoa — a ubá — feita do tronco da muiraubá, árvore nobre e silenciosa, que só se deixava tombar com cânticos e permissão. Era com sua ubá que pescava, viajava pelas aldeias, visitava parentes e fazia as caçadas na estação certa.


Para os filhos do Opará, a ubá não era apenas um meio de transporte. Era uma extensão do corpo, um elo com o rio e com os encantados que moravam nas profundezas das águas.


Certa manhã, chegou do porto de Penedo um burburinho: Pedro, o pescador, homem moreno de fala solta, voltara de viagem com uma novidade.


— Vi uma canoa feita de ferro! — disse com os olhos arregalados.


Muruibá soltou um sorriso curto.


— Canoa de ferro? Isso não existe, Pedro. Canoa que é canoa nasce da mata.


— Pois essa navega, e desce o rio ligeira! É grande, reluzente e ronca como bicho estranho — insistiu Pedro, animado.


Dias depois, a novidade desceu o Opará. Um grupo de homens brancos pilotava a embarcação. Alta, brilhante, com um casco frio e barulhento, a canoa de ferro atracou no porto de Porto Real do Colégio, trazendo o espanto e a curiosidade para muitos.


Muruibá foi até a beira do rio, observou com atenção, tocou o ferro.


— Isso não é ubá, Pedro. Ubá é feita com reza, com corte certo, com tempo. Isso aí é outra coisa.


— Mas se anda sobre as águas, não é canoa? — retrucou Pedro.


— Não. É Ubatã. Canoa dos brancos. A nossa canoa é de pau, chamada muiraubá. Essa daí não tem alma.


Os mais jovens se aproximaram, perguntaram, queriam subir, experimentar. Mas Muruibá, com voz calma, disse:


— O ferro não canta com o rio. O ferro corta. A ubá dança.


E então, com um gesto lento, entrou na sua canoa de madeira. Lançou-se às águas como quem reencontra o ventre da mãe. A ubá desceu o rio silenciosa, deixando atrás de si apenas o som do remo e do respeito.




UCHÉ UBÁMERAPUI, NO TEMPO DOS VAPORES 





Um Conto da Navegação a Vapor


Houve um tempo em que o grande rio Opará sussurrava canções diferentes. Um tempo em que as águas não dançavam apenas ao ritmo das canoas, mas também ao rugido lento e fumegante das Ubámerapui, as “Canoas de Ferro Fumegantes”, como chamávamos os vapores.


Foi no século XIX que essas embarcações surgiram, riscando o espelho do São Francisco com suas trilhas de fumaça e ferro. Os Kariri-Xocó, guardiões das margens e do tempo, viram os vapores aparecerem como bichos grandes, cuspindo fumaça, carregando gentes e mercadorias entre as cidades de Penedo, Propriá, Traipú, Piranhas, e tantas outras aldeias do Opará.


A aldeia de Colégio, onde vivíamos, ficava bem na beira do rio. E não demorou para que nossas crianças corressem à margem quando ouviam o apito cortando o ar. Nós também viajávamos nos vapores. O mundo se movia mais rápido, mas o nosso tempo seguia no compasso dos encantados.


Indaiá, anciã de fala doce e olhos de memória viva, gostava de sentar sob o juazeiro e contar os causos daquele tempo. Ela falava do vapor Encomendador Peixoto, que navegava altivo, como se soubesse seu valor, e do pequeno Penedinho, que se atrevia a cruzar o rio como se fosse uma criança arteira.


— O Encomendador — dizia Indaiá — dançava nas águas durante a procissão do Bom Jesus dos Navegantes, trazendo fé e festa aos corações ribeirinhos. O vapor se enfeitava como um santo, com bandeirolas coloridas e cheiro de flor.


Ela também contava da visita do Imperador Dom Pedro II, que em 1859 veio a bordo do vapor Pirajá, deslizando pelo Opará como quem visita um velho amigo. Parou em Penedo, saudou Propriá, olhou Traipú, e viu, ainda que com olhos de fora, a alma das aldeias Kariri-Xocó e São Pedro.


Nos porões dos vapores iam cargas de tudo: sacas de cereais, carvão negro como noite de breu, tecidos vindos de longe, bichos, ferragens, e sonhos empacotados em baús. O comércio crescia, as cidades se agitavam, mas para nós, os vapores eram também memória viva, testemunhas de uma travessia entre dois tempos.


A última viagem do Encomendador Peixoto foi no fim dos anos 1960. Seu apito ecoou pela última vez como um canto de despedida. E desde então, as águas do Opará voltaram a ser cortadas apenas por canoas, motores menores, e pelas lembranças de quem viveu aquele tempo.


Hoje, quando falamos Uché Ubámerapui — “No Tempo dos Vapores” — um silêncio cheio de saudade nos toma. Não é apenas a lembrança das embarcações, mas o retrato de um tempo em que o mundo parecia deslizar mais lentamente sobre as águas do rio.


E assim seguimos, nós, Kariri-Xocó, navegando entre o ontem e o agora, com o coração ancorado no Opará e a alma lembrando sempre... do tempo dos vapores.




IBÁKABARU, A CARROÇA DE BURRO 





Na terra quente de Porto Real do Colégio, quando o tempo ainda corria devagar e o chão batido era cruzado por pés descalços, havia um transporte que despertava encanto e respeito: a Ibákabaru, a carroça puxada por burro.


Os mais velhos diziam que esse modo de transporte veio de longe, das terras de além-mar, trazido pelos colonizadores portugueses que por sua vez o herdaram dos antigos romanos. Mas, para os indígenas da aldeia Kariri-Xocó, aquela carroça tinha um nome próprio e um lugar de destaque na memória do povo. Era símbolo de prestígio — e por muito tempo, coisa de gente rica.


Na virada do século XX, ninguém na aldeia ousava sonhar com uma carroça própria. Era transporte dos coronéis, dos comerciantes, dos que tinham mais terra do que histórias. Até que, em 1908, um homem chamado Gravié, indígena e fazendeiro, decidiu que era hora de mudar isso. Gravié não era qualquer homem. Carregava nos olhos a firmeza do sertão e nas mãos a herança do seu povo. Com esforço e coragem, comprou uma carroça — a primeira da aldeia — para levar sua esposa, Luzia, ao ritual sagrado do Ouricuri.


A cena foi lembrada por muitos: o sol ainda nascia quando Luzia subiu com delicadeza na Ibákabaru. Os sinos tilintavam no pescoço do burro, e os olhos da comunidade acompanhavam aquele desfile como se fosse um cortejo. A carroça, antes distante e inatingível, agora fazia parte da vida indígena.


E foi assim que tudo começou. Aos poucos, outras famílias foram conseguindo suas próprias carroças. Puxadas por burros, cavalos ou jumentos, tornaram-se o motor da economia local. Na década de 1960, quando a ferrovia despejava mercadorias na estação, eram as carroças que levavam tudo até o Armazém Carnaúba. Eram tempos de fartura. Homens com suas carroças enchiam as ruas de vida e poeira, levando e trazendo mantimentos, gente, esperanças.





Entre 1970 e 1980, as carroças passaram a ter outro papel: transportar os indígenas para o Ouricuri. O som dos cascos nos caminhos de barro se misturava às cantorias e ao cheiro da mata. Era transporte, mas era também tradição, fé, caminho para o sagrado.


Mas o tempo, esse senhor que nunca para, trouxe mudanças. A partir da década de 1990, os Kariri-Xocó passaram a adquirir automóveis. O ronco dos motores começou a se sobrepor ao som dos cascos. A carroça perdeu espaço. Ficou à margem, como tantas coisas antigas.


Ainda assim, algumas Ibákabaru resistiram. Em certas manhãs, ainda se pode ver uma carroça cruzando uma rua da aldeia, puxada por um burro manso e conduzida por um ancião de chapéu de palha. E quando isso acontece, é como se o tempo desse um passo para trás, e o coração do povo Kariri-Xocó se lembrasse — com orgulho — de que aquela simples carroça de burro ajudou a construir o presente com as rodas da memória.




IBÁMERAIPU, CARRO DE FERRO FUMEGANTE 





Carrego no peito uma saudade bonita daquele tempo em que meu pai vendia peixe ao pessoal da ferrovia. Era cedo que ele saía, com a tarrafa ao ombro e o balaio cheio de esperança, seguindo até onde os trilhos cortavam a terra do nosso povo. Lá, entre o cheiro forte do peixe e a fumaça do trem, ele trocava palavras e sorrisos com os homens da ferrovia, enquanto o Ibámeraipu soltava seu apito ao longe, como quem também fazia parte da nossa vida.


Eu, ainda menino, ficava olhando ele partir, e até hoje, quando fecho os olhos, escuto o som do trem e sinto o vento quente daquele tempo. Aquelas cenas ficaram guardadas no fundo da minha alma, como um filme antigo que nunca se apaga.


Escrevi este conto movido por essa saudade — saudade do meu pai, das histórias que ele me contava, das manhãs à beira do Opará, e de tudo que o Ibámeraipu representou: mudança, coragem, mas também a marca profunda que ficou na nossa terra e no nosso coração.


Que esta história siga adiante, como o rio, como o trem, como a memória viva do nosso povo.


Dizem os mais velhos, com os olhos perdidos no horizonte e a alma ancorada no tempo, que muito antes de o ferro riscar a terra, o silêncio morava entre as árvores de Porto Real do Colégio. Ali, onde o Opará — o grande rio São Francisco — seguia seu caminho antigo, os Kariri pisavam leve o chão, colhiam os frutos da mata e escutavam apenas o chamado dos pássaros e o canto das águas.


Mas, numa manhã quente de 1944, o vento trouxe um sussurro diferente, um rumor de mudança:


— Vem aí um carro de ferro...


As palavras corriam mais velozes que o próprio trem, atravessando matas e veredas, sopradas pelos Fulni-ôs que vieram de Pernambuco, homens fortes e calejados, que ajudavam a abrir a estrada de ferro no peito da terra.


Antônio Cruz e Sebastião Ribeiro eram dois desses andarilhos do progresso. Sob a sombra das mangueiras, entre goles d’água e calos nas mãos, contavam aos Kariri:


— É um bicho de ferro, que cospe fumaça e range como uma onça ferida.


Os mais jovens arregalavam os olhos, como quem vê o futuro pela primeira vez. As mulheres, de lenços na cabeça, seguravam firme as cuias e se benziam. E os anciãos... ah, os anciãos! Estes apenas se entreolharam e, após longo silêncio, selaram a profecia:


— É o Ibámeraipu... o carro de ferro fumegante.


E assim ficou batizado, não com o nome frio dos brancos — "Maria Fumaça" —, mas com o nome quente da língua Kariri, onde as coisas têm alma e os sons são feitos de memória.


Em 1950, quando o Ibámeraipu finalmente chegou, a terra estremeceu como nunca antes. De longe, o seu canto metálico se espalhava:


Tchac-tchac... tchac-tchac...


Depois, o grito:


FUUUUUUUU...


O monstro negro surgiu, cuspindo fumaça e deixando atrás de si um rastro de fuligem. As rodas cortavam os trilhos como facas afiadas no corpo da terra.


O povo todo correu à estação, recém-nascida, ainda cheirando a madeira nova. Uns aplaudiam, outros temiam. As crianças se escondiam atrás das saias das mães, enquanto os homens apertavam os chapéus, sem saber se saudavam ou amaldiçoavam aquela besta de ferro.


O Ibámeraipu trouxe o progresso: gentes novas, mercadorias, notícias do mundo além das matas. Trouxe também trabalho aos Kariri — estivadores, carroceiros, homens do porto. Mas trouxe, sobretudo, a cicatriz.


Os trilhos rasgaram o território como lâmina impiedosa, dividindo terras, quebrando caminhos, interrompendo a dança dos passos antigos. O Ibámeraipu abriu a estrada do mundo, mas fechou veredas da alma.


E como tudo que corta, um dia também feriu fundo.


Foi em 1968, quando o Ibámeraipu fez-se tragédia.


Cadete era um homem da terra, indígena vaqueiro, desses que conheciam o cheiro do mato, o galope do cavalo, o mugido do boi e o silêncio das madrugadas. Usava chapéu de couro, gibão surrado, e carregava consigo a coragem moldada pelo sol.


Naquele dia, a notícia correu como raio:


— O gado escapou! Tá na linha do trem!


Sem hesitar, Cadete montou no cavalo e partiu, riscando a paisagem como flecha viva. O cavalo relinchava, os cascos batiam firme no chão seco.


— Arreda! Arreda! — gritava Cadete, assobiando forte, batendo o laço no ar.


Os bois mugiam, confusos, com os olhos arregalados pela luz que se aproximava.


E então, ao longe, como uma sentença, o som:


Tchac-tchac... tchac-tchac...


Depois, o grito seco:


FUUUUUUUU!


Cadete não fugiu. Tentou ainda empurrar o bezerro mais teimoso, mas o ferro não se dobra à vontade do homem. O Ibámeraipu veio impiedoso, arrastando o destino, surdo ao grito, cego à vida.


O choque foi breve, como são todas as mortes que não se espera.


Quando o povo chegou, encontrou Cadete caído, abraçado ao solo que tanto amava. O chapéu de couro repousava, mudo, ao seu lado.


Na aldeia, o pranto se espalhou como o rio em cheia. As mulheres entoaram cantos baixos, enquanto os anciãos, olhos marejados, lembraram-se da profecia antiga:


— O Ibámeraipu é o carro que leva...


E levou.


Depois disso, o trem continuou seu curso, por mais alguns anos, até que, em 1972, ergueram a ponte sobre o Opará, na grande estrada BR-101, que rasgou o Brasil de Norte a Sul. O Ibámeraipu foi, aos poucos, silenciado.


Os trilhos enferrujaram, a estação apodreceu, a fumaça se desfez no tempo.


Mas dizem — e os anciãos juram — que, nas madrugadas silenciosas, quando a lua cheia ilumina o mato e o vento sopra por entre as ruínas da velha estação, ainda se ouve:


Tchac-tchac... tchac-tchac...


E, ao longe, como um suspiro que nunca termina:


FUUUUUUUU...


Alguns dizem que é só o vento.


Mas nós sabemos: é o Ibámeraipu, o carro de ferro fumegante, que nunca partiu de verdade...


E que, para sempre, carrega na sua fumaça a memória dos que ficaram, dos que lutaram, dos que se foram — como Cadete —, mas nunca deixaram de existir na alma desta terra.




YEENDZI MERÃKIÉ, GRANDE PÁSSARO DE FERRO DO CÉU 





Naquele tempo antigo, quando o silêncio da mata falava mais alto que o barulho das cidades, os Kariri de Porto Real do Colégio, em Alagoas, viviam esquecidos pelos homens do poder. Mas nem por isso deixaram de sonhar. Era 1942 quando Jurandi, jovem de espírito firme e olhos curiosos, decidiu deixar a aldeia. Filho de Euclides Poité e Maria Pureza Poité, carregava no peito a coragem dos antigos. Tinha apenas vinte e três anos quando partiu em busca de um destino melhor, deixando para trás a aldeia, o rio, os cantos dos pássaros e o cheiro do barro molhado.


Viajou para o Norte, navegando por águas largas até chegar ao Amazonas. Por lá, experimentou o suor dos seringais, a solidão das matas fundas e a dureza da vida distante. Mas sua coragem abriu caminhos: tornou-se policial militar, casou-se com Jéssica, uma branca de Manaus, e teve quatro filhos, dois homens e duas mulheres. Construiu uma vida com as mãos e a saudade no peito.


Enquanto isso, sua irmã Indaiá permanecia na aldeia, guardando lembranças, cuidando da terra, esperando notícias. Vinte e um anos se passaram até que, num dia em que o céu parecia mais azul que nunca, Jurandi voltou.


Chegou como quem trazia o mundo nos ombros e o coração aberto. Carregava presentes embrulhados com afeto: roupas novas, retratos tirados na cidade grande, sua farda de tenente — que mostrava com o orgulho de quem venceu sem esquecer suas raízes. Trouxe até um enxoval de bebê, destinado a um menino recém-nascido na aldeia, o pequeno Nhenety — eu mesmo, abençoado por aquele gesto.


Mas o que encantou a todos foi a história que Jurandi contou em volta da fogueira, cercado por olhares atentos e bocas abertas de espanto. Falou do avião. Um silêncio reverente caiu.


— Mas o que é isso, Jurandi, esse tal de avião? — perguntou um ancião.


Ele sorriu e respondeu:


— Yeendzi Merãkié, o Grande Pássaro de Ferro do Céu.


Explicou que era como uma grande canoa coberta, mas que voava por cima das nuvens, levando gente dentro como se fosse um barco do ar. Era coisa de outro mundo para nós, que nunca tínhamos visto além do horizonte da serra.


Durante um mês, Jurandi partilhou histórias, riu com os parentes, abraçou os mais velhos e caminhou descalço pela terra vermelha da infância. Depois, partiu novamente, voando no mesmo pássaro de ferro.


Os anos passaram, mas ele nunca esqueceu sua origem. Sempre voltava. Certa vez, trouxe sua mãe, Pureza Poité, para conhecer o avião. Ela, já com os cabelos prateados pelo tempo, sentou-se com dignidade no assento da máquina que cortava o céu. Ficou um ano no Norte e voltou à aldeia com olhos cheios de novas paisagens.


Jurandi foi o primeiro índio da nossa aldeia a voar no Yeendzi Merãkié. E sua história, contada de geração em geração, vive entre nós como memória sagrada. Não podemos deixar que se apague.


É com essas lembranças que costuramos o futuro, como uma rede de pesca feita com fios de tempo e afeto.




UCHÉ IBÁPOHDUÁ, O TEMPO DOS AUTOMÓVEIS 





Naquela manhã quente de 1935, os ventos que sopravam da margem do rio São Francisco trouxeram consigo algo jamais visto por olhos Kariri-Xocó. Um barulho estranho, como um trovão enjaulado, ecoou na estrada de barro vermelho. As crianças correram, assustadas e curiosas, os velhos se levantaram de seus tamboretes de sombra, e os jovens guerreiros apertaram os olhos para enxergar melhor o que se aproximava.


Era um carro. Um automóvel com olhos que brilhavam como fogo em sua frente. "Ibápohdu!", gritou uma anciã — e assim foi batizado: "Carro Olho de Fogo". Era o veículo de Carlos Estevão, um homem branco que viera estudar os nativos da região, sem saber que traria também um novo tempo à aldeia.


Os anos passaram como passam os ventos pelas palmeiras. A cidade de Colégio cresceu, e com ela, os automóveis multiplicaram-se. Já não eram mais raridade; cortavam as ruas com seus motores roncando, seus pneus mastigando o barro. Mas o coração da aldeia ainda pulsava num ritmo mais antigo, até que o novo tempo chegasse de vez.


Foi em 1971, com o ronco de uma Willys azul e branca, que o Uché Ibápohduá, o "Tempo dos Automóveis", se instaurou de verdade entre os Kariri-Xocó. O condutor da mudança era Francisco Sampaio, da família Pahankó — o primeiro indígena da aldeia a possuir um carro. Sua Ford Rural Willys de 1967 virou símbolo, festa e encantamento.


O povo inteiro veio ver a máquina. Alguns encostavam nela com reverência, outros pediam para andar, como se fosse um bicho mágico, um cavalo de aço domesticado pelo espírito do tempo moderno. A Rua dos Índios, até então palco de passos descalços e conversas sob a lua, agora tinha um novo visitante: o automóvel.


Nos anos de 1990, a aldeia já contava com muitos deles. Carros de todas as cores, marcas e tamanhos. Alguns levavam famílias para a feira, outros conduziam curandeiros à floresta sagrada do Ouricuri, a seis quilômetros dali. O caminho que antes era feito em dias, agora era vencido em minutos.


Hoje, com mais de 3.750 habitantes e cerca de 1.200 famílias, a aldeia Kariri-Xocó respira tradição e modernidade. Quase toda casa tem ao menos um carro, mas cada motor que ronca nas estradas da aldeia carrega em sua lataria o eco daquele primeiro "Ibápohdu" — o carro com olhos de fogo.


E foi assim que começou o novo capítulo da aldeia. Não com o apagar das tradições, mas com o entrelaçar dos tempos. O Uché Ibápohduá não apagou o passado — apenas o carregou no banco de trás, como quem leva um velho sábio para ensinar os caminhos que ainda estão por vir.




EYEMÉ MERATA, A BALSA DE FERRO 





O sol nascia por trás das serras quando o velho Kariri olhou, mais uma vez, o Rio Opará. A bruma ainda cobria parte da água, como se os espíritos antigos ali descansassem, protegendo aquele caminho que desde sempre unia os povos à vida. Ele caminhava devagar pela trilha de terra batida, que serpenteava entre cajueiros e a mata baixa. Seus pés sabiam o caminho sem que os olhos precisassem ver.


— Eyemé... — sussurrou ele, lembrando-se das primeiras embarcações de madeira, quando menino, via os carros descerem pela rampa, os cavalos assustados com o balanço do rio, as pessoas rindo nervosas ao entrar na balsa que os levaria até Propriá.


A balsa era mais que transporte. Era encontro. Era vida cruzando as águas.


Quando o Brasil já se dizia República e a estrada de terra cortava o sertão entre Alagoas e Sergipe, o povo de Porto Real do Colégio seguia até a beira do São Francisco para atravessar o rio. Primeiro eram carroças, depois automóveis, e por fim caminhões pesados que começaram a chegar no final dos anos 1960, quando a BR-101 abria seu caminho de norte a sul do país. Foi então que surgiu a Eyemé Merata, a Balsa de Ferro, nome dado pelos indígenas que viam naquela embarcação um novo tempo de travessias.


A balsa rugia com o peso dos caminhões e das máquinas de terraplanagem, mas seguia firme, de um lado ao outro. O Porto das Balsas virou um lugar de movimento e de festa. Ambulantes vendiam pamonhas, beiju, peixe frito e garapa aos caminhoneiros. Havia um grande palhoção onde, à noite, o povo dançava forró, bebia, contava causos e viajava sem sair do lugar.


— Um tempo bonito, sim... — dizia o velho Kariri, com o olhar perdido entre o vai-e-vem das lembranças.


Não era só a Eyemé Merata que cruzava o Opará. Também havia o Ferry-Boat, enorme embarcação que levava até o trem para o outro lado, como se o progresso tivesse pressa e força para carregar tudo.


Mas o progresso tinha também data marcada. Em 5 de dezembro de 1972, foi inaugurada a grande ponte sobre o Rio São Francisco. Com ela, a Eyemé Merata silenciou, o Porto das Balsas foi se esvaziando, e o palhoção ficou mudo. A festa cessou, e as histórias começaram a morar apenas na memória dos que viveram aquele tempo.


Hoje, quem passa pela ponte não imagina a vida que pulsava ali. Mas os mais velhos ainda guardam no peito o som da água contra o casco de ferro, o cheiro da lenha queimando nas barracas, o riso solto das crianças, o balançar suave da balsa em cada travessia.


E quando o velho Kariri fecha os olhos, ele ainda escuta...


Eyemé Merata cortando as águas do grande Opará.





IBARANÚ UITANE IWORÓ, CARRO RONCA EM DUAS RODAS 





Era tempo de novidade lá pelos lados de Porto Real do Colégio, mais ou menos nos anos de 1960. Os ventos que sopravam da cidade carregavam sons diferentes, cheiros de fumaça e barulhos estranhos que não vinham da mata nem dos bichos. Na beira da estrada de terra, Itaní, um jovem indígena curioso, olhava atento o que passava.


— Ei moço! Que troço é esse aí? — perguntou, com os olhos arregalados diante daquela geringonça barulhenta que cortava o ar soltando fumaça.


O homem branco, com o capacete pendurado no braço e um sorriso despreocupado, respondeu:


— Isso aqui é uma lambreta... ou moto, como queiram chamar.


Itaní não sabia se tinha medo ou admiração, mas achou aquilo mais perto de um carro do que de uma bicicleta. Correu para a aldeia na periferia da cidade, onde o velho Cajarana, ancião respeitado, tomava banho de cuia sob a sombra do umbuzeiro.


— Cajarana! — gritou, ainda ofegante. — Vi um troço diferente lá na cidade... é como um carro de duas rodas... mas ronca, solta fumaça...


O ancião, com o olhar firme e a sabedoria ancestral, refletiu por um instante. Depois, disse com serenidade:


— Então chamaremos de Ibaranú Uitane Iworó... Carro Ronca em Duas Rodas.


E assim, batizada em nossa língua Kariri, a moto passou a ter nome com alma, com som de história viva.


Mas naquela época, ninguém da aldeia tinha uma dessas. Só muitos anos depois, em 1989, a FUNAI trouxe uma moto para que um de seus funcionários pudesse fiscalizar o território indígena. Foi a primeira a circular pelas trilhas e caminhos entre as casas de barro e as cercas de varas.


Só em 1990 os indígenas começaram a comprar suas próprias motos. Vieram as Honda, depois as Yamaha. O ronco do motor se misturou ao som do canto dos pássaros e ao farfalhar das palhas dos telhados. A aldeia mudou, ganhou movimento. E agora, por essas bandas, não é raro ver um Mototáxi indígena cruzando a estrada que liga a Aldeia Kariri-Xocó à cidade de Porto Real do Colégio, levando gente, sonhos e histórias.


Afinal, cada moto que passa carrega mais do que passageiros — carrega também o eco de um tempo em que tudo começou com um olhar curioso e uma pergunta:


— Ei moço... que troço é esse aí?





UCHÉ IBAWORÓBI, O TEMPO DAS BICICLETAS 





Na beira serena do Opará, quando o sol ainda dançava por entre as folhas das carnaúbas e os cantos dos pássaros marcavam o tempo do povo, chegou o Uché Caraí — o tempo do homem branco. Veio como vento de mudança, trazendo consigo barulhos estranhos e invenções nunca antes vistas pelos olhos atentos dos mais velhos da aldeia.


No início, vieram as notícias, faladas e ouvidas de boca em boca, como se fossem encantos de outro mundo. Depois, chegaram os próprios milagres do tempo novo: automóveis ronronando pelas trilhas, trens cortando a terra como cobras de ferro. Mas foi em 1954 que algo realmente curioso chamou a atenção dos indígenas do Opará.


O indígena Antônio Correia, que havia atravessado o rio para os lados de Propriá, retornou à aldeia montado num estranho aparelho de duas rodas. Era leve, silencioso e se movia ao compasso dos pés. As crianças correram atrás dele, os mais velhos coçaram o queixo e os encantadores de histórias já sabiam: um novo tempo havia chegado. Deram ao aparelho o nome de Ibaworóbi — “o carro que roda com o pé”.


Estava inaugurado o Uché Ibaworóbi, o tempo das bicicletas.


Nos anos que seguiram, especialmente a partir da década de 1970, muitos indígenas passaram a trabalhar nas obras de pavimentação da BR-101. Com o suor do seu esforço, compraram bicicletas Monark e Caloi. Eram vermelhas, verdes, azuis — voavam como libélulas pelas trilhas da aldeia.


Na década de 1980, outros irmãos passaram a trabalhar no Projeto Itiúba, nas lavouras de arroz irrigado, e lá também compraram suas bicicletas. A aldeia, antes percorrida a pé, agora ressoava o som leve dos pedais e dos sinos das magrelas.


As bicicletas foram mais do que transporte. Foram companheiras de estrada, amigas dos rituais sagrados, condutoras de alunos à escola e risos às tardes de domingo. Carregaram meninos e meninas, anciãos e rezadores. Viraram parte da paisagem.


Por volta de 1990, a motocicleta chegou como um trovão veloz e tomou parte do lugar das bicicletas. O tempo mudava outra vez. Mas como tudo que é forte na memória, a bicicleta não sumiu — apenas repousou nas sombras.


Hoje, os netos daqueles que viram o primeiro Ibaworóbi montam novamente suas bicicletas. Pedalam não só por necessidade, mas por saúde, por lazer, por alegria. E quando alguém pergunta por que ainda pedalam, eles respondem sorrindo:


— É para lembrar do tempo em que nossos pés rodavam com o vento.




Autor dos Contos: Nhenety Kariri-Xocó 





📘 ENCERRAMENTO




Encerrar este volume é como recolher a canoa após a travessia:

o rio segue, o tempo continua fluindo, mas o viajante repousa para refletir sobre o caminho percorrido.


Os contos aqui reunidos mostram que viajar é aprender, e que as rotas — antigas ou modernas — tornam-se parte da identidade de um povo. O tempo, tal como o movimento, não é linha reta: ele gira, retorna, dobra-se sobre si mesmo e reabre caminhos já percorridos pelos ancestrais.


Nhenety Kariri-Xocó entrega ao leitor uma obra que honra o passado e aponta para o futuro.

Assim, este encerramento não significa fim, mas preparação para a próxima travessia.





📘 POSFÁCIO




O leitor percorreu terras, rios, trilhas, caminhos de vento e veredas de memória. Este livro, ao narrar transportes e deslocamentos, também transporta o espírito para lugares onde o tempo não obedece às leis comuns, mas às leis do Encantamento.


Ao finalizar a leitura, torna-se claro que cada conto guarda uma sabedoria própria — pequenas sementes destinadas a germinar conforme o leitor refaz o trajeto com seus próprios passos. A literatura de Nhenety é mais que narrativa: é herança, é ensinamento, é eco de uma ancestralidade viva.


Que este volume continue iluminando roteiros internos e externos, abrindo estradas que conduzam a mais histórias dentro dos ciclos Woroy História.


A viagem continua.





📘 GLOSSÁRIO



Ibákabaru  — A palavra vem do Kariri de Ibá "Carro ou Carroça" e Kabaru "Cavalo", portanto Ibákabaru significa "Carroça de Burro".


Ibámeraipu — A palavra é um neologismo Kariri, tem origem em Ibá "Carro", mais Mera "Ferro" e Ipu "Fumegante", portanto Ibámeraipu significa "Carro de Ferro Fumegante", que o indígena entenderam que era o Trem Maria Fumaça. 


Ibápohduá — A palavra vem do Kariri "Carro que tem rodas", representando o automóvel. 


Ibaranú — O carro que ronca que os indígenas Kariri interpretaram em sua língua. 


Ibaworóbi — O carro que roda movendo com os pés.


Iworó — A roda, redondo, volta, dodilha, arredondado, circular. 


Kariri-Xocó — Povo indígena habitante de Porto Real do Colégio, às margens do rio São Francisco, com forte tradição espiritual, musical e narrativa.


Merãkié — A palavra vem do neologismo Kariri, na origem Mera "Ferro" e Arãkié "Céu" para representar o avião. 


Nhenety  — Tradições, memória, o nome também do autor deste livro, escritor e indígena Kariri-Xocó. 


Ubámerapui — A origem da palavra é Ubá "Canoa + Mera "Ferro" e Pui "Fumaça", portanto canoa de ferro que solta fumaça, os Vapores tipos de embarcações do Velho Chico meados do século XIX e meados do século XX. 


Ubatã — A palavra vem de Uba "canoa" e Atã "dura como ferro", portanto Ubatã significa "A Canoa de Ferro". 


Uché — Palavra que vem do povo Kariri do Nordeste, portanto Uché significa "Tempo".


Ubacheté  — A palavra vem de ubá "canoa" mais uché "tempo" e pano "té", portanto "O Tempo das Canoas de Panos" .


Uitane - A palavra vem dos Kariri que significa "dois".


Woroy — Palavra que se relaciona com história, caminho, ensinamento e transmissão oral entre gerações.


Eyemé — A balsa de madeira onde os indígenas faziam transporte pesados para atravessar o rio. 


Yeendzi  — Na língua Kariri significa pássaro, ave .





📘 NOTAS DO AUTOR



Escrever este volume foi caminhar entre mundos.

Cada conto nasceu de lembranças, observações, ensinamentos e diálogos com a memória viva do povo Kariri-Xocó. Alguns relatos surgiram de sonhos; outros, de experiências dos mais velhos; outros ainda, de pesquisas históricas.


A intenção foi unir todos esses caminhos em uma narrativa que respeita os Encantados, a história do povo e a imaginação que transforma a vida.


Agradeço a todos que mantêm viva a tradição do contar histórias e a força de cada guerreiro e guerreira que sustenta nossa cultura.


Que este livro seja uma ponte entre ancestrais e gerações futuras.





📘 SOBRE O AUTOR



Nhenety Kariri-Xocó

Indígena do povo Kariri-Xocó de Porto Real do Colégio (AL), é contador de histórias oral e escrita, pesquisador da memória ancestral, poeta, cronista, cordelista e guardião de narrativas que atravessam gerações. Seu trabalho reúne tradição oral, espiritualidade indígena, história cultural e sensibilidade literária.


Autor da série Woroy História, dedica-se a preservar e fortalecer a identidade Kariri-Xocó por meio da palavra escrita, abrindo caminhos para que leitores conheçam o mundo encantado, a luta, a força e a beleza de seu povo.





📘 SOBRE A OBRA




“Woroy História, Kariri-Xocó, Transportes no Tempo – Contos, Volume 6” integra uma coletânea que registra, em visão poética e narrativa, momentos simbólicos da cultura, memória e trajetória espiritual dos Kariri-Xocó.


Este volume trata dos caminhos — físicos, míticos e históricos — que moldam o deslocamento humano e ancestral. A obra preserva saberes tradicionais e oferece ao leitor uma experiência imersiva, onde o tempo se torna estrada e o movimento, ensinamento.


Os contos funcionam como portais: cada um abre uma perspectiva sobre diferentes formas de viajar pelo mundo e pelo sagrado. O livro une tradição, criatividade e compromisso com a memória indígena.





📘 ORELHA ESQUERDA




Nhenety Kariri-Xocó, guardião das palavras ancestrais, apresenta neste sexto volume da coleção Woroy História uma viagem pelos caminhos que moldam a vida. Com sua escrita viva, sensível e profundamente ligada à tradição de seu povo, ele conduz o leitor por rotas que cruzam tempos, culturas e encantarias.


Aqui, os meios de transporte deixam de ser apenas objetos e tornam-se pontes entre mundos — do passado ao futuro, da Terra ao Encantado, da memória ao sonho. A obra reafirma o compromisso do autor com a preservação da cultura e a força narrativa dos Kariri-Xocó.





📘ORELHA DIREITA




Em “Transportes no Tempo”, cada conto é uma travessia guiada pela voz ancestral. A obra apresenta uma mistura elegante de história, espiritualidade, imaginação e memória cultural.


Este volume celebra a capacidade humana e indígena de caminhar, navegar, sonhar e transformar trajetos em aprendizado. Ao final, o leitor percebe que não existe viagem pequena: todas carregam um sentido profundo.


Com linguagem clara, poética e envolvente, Nhenety entrega mais uma peça essencial de seu projeto literário, mantendo viva a tradição do contar histórias e fortalecendo a identidade de seu povo.





Autor: Nhenety Kariri-Xocó 





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